Continuando as resenhas de Persuasão, na quinta-feira assisti ao filme de 1995 (BBC) e ao de 2007 (ITV). A ideia era resenhá-los antes da estreia da versão da Netflix, mas a resenha da adaptação de 2022 acabou saindo antes. Já abro este texto dizendo que não gosto do filme de 2007, revê-lo terminou por reforçar os motivos. Ele tem uma câmera frenética demais, me causa um certo desconforto, cujo intuito é dar agilidade a um filme que é somente corrido. Com 92 minutos, ele não fica tão atrás do filme de 1995, que teve 104 minutos e ainda criou uma introdução para situar a audiência sobre a derrota de Napoleão e o (aparente) fim da longa guerra com a França.
Este filme de 2007 foi feito sob a influência direta de Orgulho & Preconceito (2005), a ideia é seguir em seus passos, mas faltou um pouco de competência na execução, eu diria, alguns acrescentariam de recursos, mas a ITV costuma investir em suas produções. Desta onda da mesma época, quem acabou se saindo melhor foi Razão & Sensibilidade (2008) e Emma (2009 - Parte 1 e Parte 2),minisséries da BBC, mas mesmo Northanger Abbey (2007), que também é um filme também da ITV, teve um resultado bem mais equilibrado. Só para informar, se há link, há resenha no blog. Tenho várias lacunas a preencher ainda. Vamos para o resumo geral do início do filme:
Anne Elliot (Sally Hawkins) é uma jovem de vinte e sete anos e sua família passa por graves problemas financeiros, porque seu pai, Sir Walter Elliot (Anthony Head) e sua irmã mais velha, Elizabeth (Julia Davis), gastam demais. Ambos ignoram os conselhos de Anne, mas precisam aceitar as orientações de Lady Russell (Alice Krige), amiga próxima da família, e do advogado de Sir Walter, e se mudar para reduzir custos, alugando a propriedade onde moram. Após grande resistência de Sir Walter, a propriedade é alugada para o Almirante Croft (Peter Wight) e sua esposa (Marion Bailey).
Mrs. Croft, como será logo descoberto, é irmã de Frederick Wentworth (Rupert Penry-Jones), que ficou noivo de Anne em 1806, e cujo relacionamento foi rompido quando a adolescente foi persuadida por seus amigos e familiares, em especial, Lady Russell, de que ele, um homem sem fortuna e conexões, não era um marido adequado para ela. Sete anos depois, Anne e o agora rico capitão Wentworth se reencontram. Ambos continuam solteiros e ela lamenta tê-lo rejeitado, enquanto o militar parece carregar dentro de si uma mágoa tão grande que o impedirá de perdoá-la e dar uma segunda chance ao seu amor. Mais tarde, entra em cena o primo de Anne, herdeiro da propriedade e título de nobreza de seu pai, William Elliot (Tobias Menzies) e que mostra por ela um interesse que pode precipitar as decisões do Capitão Wentworth.
A seguir, vemos a dinâmica problemática em Kellynch Hall, residência dos Elliot, com Anne se esforçando para manter as coisas em ordem, enquanto o pai, Elizabeth parecem alienados em relação a sua situação de falência. Aliás, todas as adaptações de Persuasão que assisti sempre são muito competentes em escalar Sit Walter, é difícil apontar qual é o melhor deles. Nesta versão, Anne oscila muito entre o senso prático e a tentativa de manter a casa em ordem, algo que está além das suas possibilidades, e uma timidez e complexo de inferioridade que a fazem parecer muito frágil. Há duas cenas logo na abertura que marcam bem isso.
Quando Lady Russell e o advogado da família, Mr. Shepherd (Michael Fenton Stevens), tentam convencer Sir Walter a aceitar o Almirante como inquilino, é citado o parentesco com Wentworth. Anne se sobressalta, mas não estão falando do capitão e, sim, do pastor, que deve ser o irmão do meio e por intermédio de quem Anne e Frederick Wentworth se conheceram. Como um desdobramento, Lady Russell, ciente do motivo do embaraço e constrangimento de Anne, retoma o seu noivado desfeito em uma cena que tem como função apresentar para a audiência a personalidade aparentemente influenciada de Anne. Diferentemente da bobajada da Netflix, aqui, Lady Russell elogia falsamente Wentworth por ter entendido que o melhor seria não insistir no noivado com Anne, já que ele tinha nada a oferecer a ela.
Anne, então, mostra que acompanha de perto a carreira do jovem (*isso vem do livro e está em todas as adaptações*) e observa que ele agora é um homem rico. Curiosamente, está é a única versão que não explora adequadamente esta informação, algo importante na época. Lá no final do filme, Sir Walter e Elizabeth ainda parecem não estar cientes de que Wentworth era um homem de posses e se referem a ele como "nobody" (ninguém). Mesmo quando Wetworth é disputado pelas irmãs Musgrove, Louisa (Jennifer Higham) e Henrietta (Rosamund Stephen), e aprovado pela família delas, neste filme fica parecendo que é por conta da embalagem maravilhosa que é o Rupert Penry-Jones, quando, na verdade, o fato dele ser um solteiro elegível repousava nos bens que amealhara nas guerras napoleônicas.
No fim das contas, Sir Walter termina convencido e parte para Bath acompanhado de Elizabeth e Mrs. Clay, sua acompanhante, que é filha de Mr. Shepherd. Mrs. Clay é uma puxa-saco subserviente, que deseja seduzir Sir Walter e casar-se com ele com o intuito de produzir o filho varão que permitiria que as terras e o título de baronete ficassem na família. Para quem não é familiar com a obra de Jane Austen, em muitos casos, na Inglaterra, a herança da terra e de títulos nobiliárquicos se fazia somente pela linha paterna, nenhuma das filhas de Sir Walter poderiam herdar esta parte do legado do pai. Já Anne é mandada para Uppercross, pois sua irmã caçula, Mary (Amanda Hale), está novamente doente. Na verdade, ela é hipocondríaca e tem desprezo pela família do marido, considerando-os inferiores aos Elliot. Em nenhuma adaptação, ou mesmo no livro, fica explicado por qual motivo Mary aceitou um casamento desigual, mas o fato é que Anne e Elizabeth ficaram encalhadas, enquanto ela tem marido e dois filhos homens, o que lhe garante certa proteção no futuro.
Não tarda e o Capitão Wentworth está em cena e, nesta versão, ele é muito mais frio e distante com Anne e com todos de uma certa forma. Pode ser o tom da interpretação, mas o que me parece é que Rupert Penry-Jones tem muito menos recursos dramáticos, daí, se ancorar nessa imagem de homem distante e superior, pelo menos até o meio do filme. Já Anne, como pontuei, alterna fragilidade e senso prático. Nesta versão, por exemplo, é ela quem recoloca a clavícula do sobrinho, que caiu da árvore, no lugar, mostrado um sangue frio que destoa com o do cunhado, Charles (Sam Hazeldine), e da sua irmã escandalosa. Já na presença do Capitão, ela está sempre retraída e temos a longuíssima sequência da caminhada.
Em todas as versões, Louisa e Henrietta querem ir andando até a casa do quase noivo da última. É um longo percurso, Mary, que não foi convidada, quer ir junto e obriga Anne a ir. No caminho, elas encontram Wentworth e Charles. Neste filme, esta sequência é demasiado longa e rouba tempo que poderia ser aproveitado em outras partes do filme. A ideia, presumo, é destacar o quanto Anne é esquecida, porque nenhum dos homens, como ocorre em outras versões, se oferece para lhe estender a mão e ajudá-la nas passagens mais complicadas do caminho. E há o tombo, que é replicado de forma grotesca no filme da Netflix e Anne fica mancando. Como no livro e em outras versões, Wentworth pede que a irmã e o cunhado, que passam em uma charrete bem batida por acaso (*na Netflix é em uma carruagem quase luxuosa*), para lhe dar carona. Ela tenta recusar, mas ele não discute e a ergue feito uma pluma e coloca no banco de trás. A diferença de altura entre os dois e de porte físico fica bem marcada nesta cena.
Depois desta longuíssima sequência, todos seguem para o balneário de Lyme. E, aqui, há algo que me deixa um tanto irritada no filme. O clima estava ruim, isso nem deve ser muito incomum na Inglaterra, mas será que as pessoas ficariam andando à beira mar e até tendo conversas reservadas com um mar revolto jogando água em cima de você? Não me parece muito razoável, mas este filme insiste nisso, talvez, para servir de metáfora para os sentimentos turbulentos das próprias persoangens. Nesta parte da história, somos apresentados aos amigos de Wentworth, os capitães Harville (Joseph Mawle) e Benwick (Finlay Robertson). Harville já sabe quem é Anne e o filme começa a investir no desmonte da aparência de frieza de Wentworth. Como também começa a se tornar evidente nas produções de época neste momento, é um homem sensível e vulnerável. Ele está entre o Mr. Darcy de 1995, a primeira tentativa eficaz em desnudar a alma de um dos protagonistas masculinos de Austen, e o chorão Mr. Knightley do novo Emma.
E é um bom meio termo, mas as cenas dele se abrindo com Harville, falando das suas angustias amorosas com o amigo, são todas criadas para esta adaptação e ocupam tempo que o filme não tem para conduzir a história de forma mais eficaz. Claro, melhor seria reduzir a caminhada lá nos sertões de Uppercross e investir aqui, mas o fato é que o final do filme acaba ficando corrido. Enfim, Anne fica amiga de todos, especialmente, de Benwick, que era noivo da irmã de Harville, mas a jovem morreu e o fez cair em depressão. Temos o acidente de Louisa na escadaria de Lyme e a chance de Anne mostrar de novo seu sangue frio e competência em atender a moça, acalmar parentes e dar as ordens necessárias para que Benwick busque um médico.
Neste ponto, Wentworth está rendido e meio que em uma situação delicada. Ele ama Anne, mas se sente preso por dever à Louisa, afinal, estava cortejando a moça e não foi capaz de impedir o acidente. Esta é a única versão que dá destaque grande a esse impasse e aos sentimentos de Wentworth e sua honra. Assim, a audiência já não tem dúvidas do que o está prendendo, ele mesmo criou uma situação que saiu do controle e descobrir que Anne não é orgulhosa e sonhar com uma nova chance só o deixa mais angustiado. Obviamente, tudo isso poderia render melhor com mais uns 15 minutos bem utilizados (*que fique claro*) de filme.
Anne e Wentworth voltam com Henrietta para Uppercross, precisam dar a notícia aos pais da moça e a mocinha segue para Bath. É neste momento que eles conseguem trocar algumas palavras e ele já não é tão duro e distante com ela. Temos a visão de Wentworth se afastando à cavalo, vestido de preto se despedindo de Anne. Seria o último adeus? E, claro, se você tem um homem desse em cena, você o coloca em situações assim para engrandecer a aparência do produto.
Anne vai para Bath e reencontra o pai e a irmã, além de Mr. Elliot, o primo que ela vira de passagem em Lyme. Tobias Menzies é um ator competente, mas ele tem tão pouco tempo de tela, que ele nao consegue mostrar a que veio. Neste ponto, este filme perde não somente para o de 1995, mas, também, para o de 2022. Há um desequilíbrio na película e toda a parte de Bath é corrida demais. Não conseguimos ver Mr. Elliot em ação e como ele planeja fazer as pazes com Sir Walter (*porque ele tinah casado com uma mulher rica, mas de nascimento inferior e, não com Elizabeth*), melar os planos de Mrs. Clay, seduzindo-a, e encaminhar seu casamento com Anne, por quem supostamente se apaixonara. O Capitão Wentworth vem atrás de Anne já informado por Harville, seu confidente, em outra cena dos dois, que não precisará casar com Louisa, porque a moça e Benwick se apaixonaram e a família dela vê com bons olhos o arranjo dos dois.
A cena da confeitaria, quando Wentworth e Mr. Elliot ficam cara à cara é menos grandiosa do que a do filme de 1995, o mesmo vale para o concerto em italiano. E, como pontuei lá em cima, o pai de Anne e Elizabeth continuam a tratá-lo como um ninguém, quando ele é, na verdade, um homem rico. E começa a fofoca, que é estimulada por Lady Russell, de que Anne irá se casar com Mr. Elliot. Mesmo a correria, o filme não mutila a cena em que Wentworth vai levar a mensagem do cunhado de que sairia de Kellynch Hall agora que Anne iria se casar com o primo e herdeiro do lugar. Anne fica perplexa e ele pede um "sim" ou "não", voltando ao seu modo frio lá da primeira metade do filme apra esconder o nervosismo. Neste ponto, Anne está mais assertiva, afinal, ela tinha enfrentado o pai e ido se encontrar com a amiga de colégio, Mrs. Smith (Maisie Dimbleby), ao invés de uma reunião com a parenta distante viscondessa (Tilly Tremayne), porém, Sally Hawkins sempre parece muito mais insegura e frágil do que Amanda Root em 1995.
Segue-se o desenrolar do filme em uma correria que é literal mesmo. Wentworth ouve a conversa de Harville e Anne sobre mulheres serem mais inconstantes no amor e ela rebatendo o capitão e afirmando que os homens, os autores dos livros e tratados, é que inventaram isso. As mulheres amariam de forma mais constante e por mais tempo. Harville está meio amargurado, porque acredita que Benwick esqueceu muito rápido a sua irmã. Wentworth ouve a conversa e escreve a carta declaração de amor e de perdão mais bonita da literatura. Ele sai e Anne encontra a carta deixada estrategicamente para ela e sai como uma louca correndo pela cidade.
Sim, eu detesto esta parte do filme, porque a protagonista corre uma maratona, encontra com várias personagens pelo caminho, inclusive Mrs. Smith que desvela a personalidade maquiavélica de Mr. Elliot e o fato dele estar falido em uma calçada de Bath. A cena, que deveria ser dramática, parece ridícula aos meus olhos. Tudo isso, porque não esticaram o filme por mais dez minutos e gastaram tempo demais naquela caminhada pelo campo. Mas Anne encontra o seu capitão, os dois se beijam e temos nosso final feliz com o homem que ama, que é bonito, rico e gentil com ela.
Falando do figurino, este Persuasão acerta em vários aspectos. Se o filme de 1995 optou por vestir as mulheres de forma simples, modesta, aqui, temos um figurino mais vistoso. Os homens da marinha não ficam andando de uniforme para cima e para baixo quando estão de folga. O problema é que ninguém usa calças curtas, só compridas e Wentworth usa botas o tempo inteiro, inclusive no concerto, o que é muito inapropriado. Como o filme corre muito, não há tempo, nem interesse, eu diria, em desenvolver discussões sobre gênero, ou classe, tudo passa muito batido, o investimento maior é em dar uma dimensão de fragilidade ao Capitão Wentworth, mostrando que ele é um homem sensível e que foi ferido.
É isso. Não sei se irei resenhar a versão de 1971 (ITV), porque só tenho um compacto de aproximadamente 3 horas e a série teve cinco capítulos com cerca de 50 minutos. Não seria muito justo analisar um produto mutilado. O fato é que se você quiser ver Persuasão em uma adaptação respeitosa em relação ao original e, ao mesmo tempo, com uma pegada mais moderna, este é o filme. Não precisa ir até 1995, ainda que eu recomende. O que eu desejo mesmo é que você vá ao livro, conheça Austen, que as produções para outras mídias de obras da autora lhe abram a janela para conhecer o quão maravilhosa Jane Austen é.
Concluindo, porque não quero escrever outro post, agora pela manhã, um amigo me mandou um artigo do L.A. Times com a roteirista do filme da Netflix, ela se mostra grande fã de Austen, assim como a diretora, diz que foi fiel ao original, mas que desejava apresentar algo que fosse atrair a geração Z para os livros. Bem, ontem vi uma moça comentando minha resenha, que eu sei que ela não leu, e dizendo que o filme era excelente, enquanto o livro era chato. Se é este o público que ela quer agradar, acertou em cheio, mas ele não irá atrás do original, porque é preguiçoso demais para isso. Por outro lado, eu dou aula para adolescentes, gente da tal geração Z, e seu que eles podem ser muito mais inteligentes, sensíveis e capazes que isso. Eles podem ir ao original e se deliciar com adaptações que mereçam o nome e respeitem a inteligência da audiência.
Lembro da aluna que me perguntou sobre Orgulho & Paixão, anovela da Globo livremente inspirada (*não era adaptação como o filme da Netflix*) e eu falei com ela de Orgulho & Preconceito, porque achei que ela já conhecia, e na segunda-feira, a aula tinha sido na sexta, ela já estava com o livro lido e querendo mais. Ela não era uma das aluna smais brilhantes da turma e, exatamente por isso, eu tenho esperança de que esse pessoal que acha que quem não gostou do filme da Netflix tem é que ler o livro chato, não representa a maioria. De qualquer forma, se Persuasão da Netflix for um sucesso, e cliques terá, vejam bem, de quem amou e de quem odiou, porque Jane Austen chama mesmo. A mesma equipe já está nos ameaçando com Orgulho & Preconceito e Razão & Sensibilidade. O termo é ameaçando mesmo, porque é ruim aquele negócio.
1 pessoas comentaram:
Ótima leitura! Concordo com tudo que você pensa, inclusive em relação ao trecho sobre a geração Z e ao filme da Netflix. Detestei esta versão!
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