Dia desses vi uma cena isolada do filme Frozen Flower (쌍화점/Ssanghwajeom/Flor Congelada) e fiquei curiosa. Fui até o verbete do filme na Wikipedia e vi que ele era inspirado em eventos reais, fui seguindo os links para as personagens históricas envolvidas e pensei "Bem, duvido que o filme consiga ser tão doido quanto essa tragédia que esse rei criou.". De fato, o filme faz algumas alterações, mas o básico da história está lá e com um bônus delicioso, que foi ver um coadjuvante humilde virando a mesa no final e pegando o protagonismo para si. Raramente, vi um personagem tão inteligente e com tanto senso de preservação em cena. Mas vamos lá, vou dar as linhas gerais do início da trama.
O rei (Joo Jin-mo) de Goryeo é casado com uma princesa da dinastia Yuan (Song Ji-hyo), que reina na China e impôs o seu à Coreia. Eles não têm filhos, porque o rei não tem interesse por mulheres e mantém um romance de muitos anos com o chefe de sua guarda pessoal, Hong-rim (Jo In-sung). Depois de quase perder a vida em um atentado promovido pelos japoneses e pressionado pela China, que exige que o rei tenha um herdeiro, ou reconheça como seu sucessor alguém escolhido pela dinastia Yuan, o monarca tem uma ideia desesperada. Depois de reafirmar para a rainha que é incapaz de se deitar com uma mulher, ele propõe que ela aceite Hong-rim como um substituto e que o filho que eles gerarem, será seu. Hong-rim fica chocado com a ordem do rei, escolhido para servir ao monarca ainda menino, ele nunca havia se deitado com uma mulher, mas se submete. Já a rainha, acreditava odiar o jovem, porque o rei o preferia em sua cama e era a razão da sua infelicidade. Hong-rim e a rainha terminam cumprindo com as determinações e, depois de muito constrangimento, acabam se entendendo na cama e se apaixonando. Quando o rei percebe que eles estão cruzando a linha do dever, já é tarde demais, e a história caminha para uma grande tragédia.
Antes de seguir para a discussão do filme, deixo claro que não sei quase nada de História da Coreia que não esteja do final do século XIX para cá. Antes disso, a gente mal fala da região em aulas de História, na época que eu fiz a faculdade, nem de oriente se falava na UFRJ fora do contexto da dominação imperialista. Mas o fato é que a região nem sempre esteve unificada e sofreu a ingerência da China e a cobiça do Japão por vários séculos. O filme se inspira na vida do rei Gongmin (1330-1374) e o fato de, após perder sua amada esposa de parto, ter decidido que não tocaria mais em nenhuma mulher e obrigado um grupo de guardas selecionados a se deitarem com suas esposas secundárias e gerarem um herdeiro que ele assumiria como seu. Nem todas as suas esposas secundárias aceitaram, mas uma de nome Han Ik-Bi se submeteu e engravidou de um guarda chamado Hong-Ryun. A partir daí, ele decide eliminar Hong-Ryun e todos que sabiam do seu plano. Só que Han Ik-Bi foi mais rápida e conseguiu armar um contra-ataque junto com Hong-Ryun e outras vítimas da lista do monarca. O rei foi morto, os demais parecem ter seguido com suas vidas.
O filme não é fiel aos eventos históricos, mas se mantém perto. Acrescenta um pouco de drama, ou muito, porque o rei é humilhado pelos chineses o tempo inteiro e o pobre Hong-rim sofre horrores, um ataque de japoneses que quase mata o rei e a rainha, uma tentativa de golpe promovida por cortesãos que queria se livrar do monarca e outros ingrediente que tornam o filme muito animado. Há, também, uma boa dose de cenas de sexo a ponto do filme estar rotulado em alguns lugares de drama histórico erótico, ou algo assim, mas eu não diria que é para tanto, não, mas a censura deve ser 16 anos. E são cenas bonitas, por assim dizer. Seja porque o trio de protagonistas é lindo, seja pela forma como as sequências são filmadas. Temos tanto cenas do rei com Hong-rim, quanto do guarda com a rainha.
Quando me propus a assistir este filme, imaginei que iria odiar o rei desde o início, mas, não, as coisas não foram tão fáceis, tampouco o filme se concentra somente na tragédia amorosa, há uma boa dose de intriga política e outros ingredientes que tornam o filme de duas horas e vinte três minutos muito intensos. Como a coisa foi me angustiando, acabei interrompendo o filme mais do que gostaria. O fato é que o trio de protagonistas é movido por sentimentos bem complexos. O rei e a rainha são bem mais falhos que Hong-rim, mas todos são demasiado humanos, por assim dizer. O rei erra mais que todos, verdade, como senhor da vida de seus súditos, ele constrange Hong-rim e a rainha Han Ik-Bi a fazerem o que ele deseja e, quando a coisa vai além, ele decide se vingar de forma cruel contra todos que sabem do arranjo que ele mesmo criou. Que os dois iriam se apaixonar, era um clichê, mas é o desdobramento da história que conta.
O rei pode até amar Hong-rim, mas o rapaz nunca teve escolha. Ainda que o rei não seja tão mais velho que o amante, nunca vi um caso mais exemplar de grooming em um filme. Hong-rim aparece criança com um rei adolescente. Ele é um dos meninos que está em treinamento para se tornar parte da guarda do rei. O monarca pergunta qual seria a função deles. Há uma série de respostas diferentes, mas o rei fica encantado pelo fato de Hong-rim responder que é morrer pelo rei. A partir dali, ele é convidado para visitar os aposentos do rei e compartilhar com ele de momentos de intimidade, como partilhar uma refeição, ou aprender a tocar um instrumento. Com o tempo, o garoto passa a frequentar a cama do monarca. Quando a rainha chega da China, o jovem rei se recusa a ir receber a noiva nos portões, porque está com Hong-rim.
Ao mesmo tempo em que rejeita qualquer contato sexual com a esposa, o que é de certa forma um absurdo, porque a primeira função de um rei é gerar descendência, o monarca a trata com grande deferência. é uma gentileza que parece genuína, mas que desapareceu rapidamente quando a rainha o confronta. No fim das contas, o rei era um tirano ciumento e usou o amante e a esposa. Ambos não tem escolha, não é uma relação igualitária e tanto Hong-rim, quanto a rainha são vítimas das circunstâncias. Já o rei, o único que tem escolha, terminou punido ambos por terem sido obedientes, por assim dizer. Fosse alguém mais ajustado, eles formariam um trisal e viveriam felizes no palácio. Mas temos que ter tragédia, não é?
O fato é que passado o constrangimento de terem que manter relações com o rei na sala ao lado, Hong-rim e a rainha acabam realmente sentindo prazer em estarem nos braços um do outro. O rei chega a perguntar para Hong-rim como ele se sentia tendo se tornado homem de verdade e não sei se interpreto a coisa como piada, e não sei como funciona o humor coreano, ou desdém. Quando o rei se apercebe que os dois estão tendo prazer, e não somente cumprindo um dever, ele decide suspender os encontros dos dois e esperar mais um tempo. Só que Hong-rim e a rainha começam a se encontrar às escondidas, ele conta mentiras para despistar o rei e desaparece vez por outra, além disso, trocam pequenos presentes e a moça chega a cozinha um bolo especial para o comandante da guarda e explicar que na China uma moça faz esta receita para presentear o homem que ama.
Hong-rim tenta resistir, se oferece para uma missão perigosa que o afaste da corte, mas o próprio rei o traz de volta. Ele o quer em sua cama. E Hong-rim tem um segundo em comando (Ji-ho Shim) que cobiça o seu lugar. Logo no início do filme, eles tiveram uma altercação, porque Hong-rim conseguira a clemência do rei para um dos guardas que fugira com uma das damas da rainha. A pena era de morte. O segundo em comando insinua que Hong-rim conseguiu que o rei fosse contra a lei usando de sedução. A questão é que ele queria estar na cama do rei, que o rejeita, e, por isso, ele entrega o caso secreto de Hong-rim com a rainha. O rei o coloca para vigiar Hong-rim e quando o rapaz desobedece o soberano (*e, aqui, foi a única traição de fato do jovem*) e não mata o irmão da rainha envolvido em uma conspiração, ele consegue a confiança do monarca.
O rei consegue perdoar Hong-rim, porque o rapaz jura que seu envolvimento com a rainha era movido pela luxúria, ainda assim, decide afastá-lo da corte e punir a rainha introduzindo outro homem em sua cama. Desesperada, ela tenta se matar. Só que a rainha está grávida e teme que o rei decida se vingar na criança. Hong-rim não acredita nisso, o rei é um homem bom e gentil, ela quer fugir com ele para longe, ele tenta acalmá-la, mas termina cedendo mais uma vez, apesar de sua disposição em não ter mais nenhum contato com a rainha. Quando o monarca confirma que ele ama sua esposa, a tragédia se acelera. O rei surpreende a rainha e Hong-rim em pleno ato. Eles costumavam se encontrar na biblioteca, na seção de livros de estratégia militar. O rapaz havia se justificado sua ausência mais de uma vez dizendo que estava lendo naquela seção. A reação do rei é mandar que o segundo em comando da guarda castre Hong-rim. É uma cena bem violenta e o rapaz recebe a punição de seus próprios companheiros.
O rei decide se livrar de todo mundo que sabe da história e a rainha toma a decisão de tentar salvar Hong-rim. Para fazer isso, ela manda uma de suas damas de companhia avisar os guardas que são mais chegados a Hong-rim. Resultado? Mais gente sabendo da história, mais gente para morrer. E o rei já tinha mostrado que era capaz de grandes crueldades antes, porque ele havia descoberto uma conspiração para colocar no trono o sujeito que os chineses queriam que ele aceitasse como herdeiro e promovido um banho de sangue com requintes de crueldade. Enfim, Hong-rim está muito fraco, perdeu bastante sangue, está deprimido, porque foi castrado, mas consegue ser levado da prisão pelos amigos. Eles seguem ordens da rainha, o levam para um mosteiro budista, mas ele quer voltar e resgatar a amada. Um dos sujeitos lhe diz que ele nada tem a oferecer para a rainha e por nada a gente tem que compreender desde proteção, riqueza, até sexo.
Ele sai a cavalo, pensei que iria para o castelo e fazer uma bobagem, mas ele volta e encontra o mosteiro semi-destroçado. O rei mandara torturar as damas da rainha, é o que eu acho, afinal, Han Ik-Bi não iria confessar o paradeiro do rapaz e a gente vê cenas bem desagradáveis do monarca torturando os amigos de Hong-rim, que, agora, planeja se vingar do rei pessoalmente e morrer no processo. De volta à capital, ele vê as cabeças dos amigos e das damas da rainha em estacas. Para se infiltrar no castelo, ele se disfarça como um dos soldados que estavam voltando da China, onde lutaram em uma guerra que não era sua. Dentro do palácio, ele consegue chegar até a câmara do rei e os dois duelam. Hong-rim nunca vencera o rei em uma luta, mas, agora, ele precisa conseguir. De resto, ele ainda cospe umas verdades na cara do rei, ele nunca o amou, sempre foi dever. Até acredito que seja mentira, mas o jovem nunca teve escolha.
Não vou comentar o duelo, mas a graça foi ver o coadjuvante humilde, o segundo em comando, conseguir se dar muito bem no final. Eu esperava que ele morresse, talvez, pela própria espada de Hong-rim, mas ele usa de toda a sua astúcia para sobreviver e terminar muito bem a trama. Quando a rainha o avisa que ele será o próximo a morrer, porque, agora, é o único que sabe do plano do rei para conceber um herdeiro, ele, assim como quem não quer nada, conta o segredo para mais uns quinze caras da guarda real, que, ou o ajudavam a dar um golpe, ou iriam morrer, também. Ele não mexe uma palha para impedir que Hong-rim mate o rei e impede que os companheiros o façam e termina pleníssimo no final do filme, provavelmente, se tornando o regente do reino. E a rainha só não rodou também por ser uma princesa chinesa. O filme não era sobre esse sujeito, mas é o tipo de personagem que merece aplausos pela sua astúcia, porque quando foi necessário, ele se virou muito bem para preservar sua vida.
Gostaria de poder comentar figurino, mas não entendo nada de vestimentas coreanas e chinesas. O filme fez questão de marcar a diferença dos chineses para os coreanos pelas roupas. Os emissários do imperador se vestem de forma diferente e falam em chinês, pois, nesta cena, aparecem as legendas em coreano. Para se ter uma ideia, a condição de submissão do rei era tamanha que ele tem que se prostrar, mesmo que sem curvar a cabeça, diante dos emissários do imperador. Já os japoneses que aparecem no atentado, vestem-se como ninjas. De resto, o que temos, pelo menos no elenco principal, é gente bonita com roupas vistosas. Os rapazes da guarda alternam cores, mas, na maioria do tempo, vestem púrpura. O rei sempre usa roupas muito bonitas e ele tem um grande senso artístico e isso foi inspirado no monarca histórico que lhe serviu de base. Os cenários também são bem interessantes, seja o palácio, ou o exterior. A fotografia do filme é muito bonita. Agora, o que eu destacaria é a trilha sonora. Há o uso de instrumentos tradicionais, tanto o rei quanto a rainha cantam e a música que encerra o filme, que mostra um flashback do rei cavalgando com Hong-rim é belíssima.
É isso. Frozen Flower é um belíssimo filme, no qual todo mundo é vítima de alguma forma, porém, há um indivíduo, o rei, que desencadeia toda a tragédia. Mesmo que se possa sentir pena dele, é necessário não esquecer que ele estava em posição dominante sobre os demais, seja por motivos de classe/status, seja por questões de gênero. Assim sendo, de todos os envolvidos, o pobre Hong-rim e os que sabiam do segredo são os que realmente sofreram com o egoísmo do rei, que independentemente de sua orientação sexual (*e ela está clara no filme*) deveria ter cumprido o seu dever, porque é um dos deveres de todo o monarca deixar descendência, os afetos, neste caso, precisam ficar em segundo plano. E sempre que um rei foge disso, podem procurar, teremos uma tragédia que se não vier durante a sua vida, vem logo depois, com a guerra de sucessão.
Eu assisti esse filme há uns dez anos e amei.
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