Esta semana, acho que anteontem, quem assiste a novela Além da Ilusão ficou um tanto perplexo com o não-beijo entre Leopoldo (Michel Blois) e Plínio (Nikolas Antunes). Eu fico comentando no Twitter e o Fábio do Coisas de TV disse que tinha gravado um vídeo sobre a cena tamanha a sua indignação. Estamos no mês do Orgulho LGBTQIA+ e eu só consigo lamentar a forma como a autora da trama, Alessandra Poggi, vem construindo o casal homoafetivo da novela. Antes de partir para o meu texto, recomendo que vocês assistam ao vídeo do Fábio, porque ele fala com propriedade de questões que o incomodaram e o meu foco será um tanto diferente.
A história do "horário não permite" foi algo bem desagradável, porque efetivamente pode haver quem acredite que isso é verdade, no entanto, acredito que a autora tentou ser foi engraçadinha. Fazer piada com os beijos homoafetivos cortados e com a censura da época. Obviamente, pegou muito mal, porque foi, também, mais uma forma de fugir de algo que parece incomodá-la. A reação de Poggi quando as pessoas começaram a shippar Lorenzo (Guilherme Prates) e Bento (Matheus Dias), apontou, pelo menos para mim, que o tema a incomoda (*comprovei isso com esta matéria*). Ainda assim, ela percebeu que precisava colocar diversidade sexual para agradar parcelas do seu público (*e desagradar outras, claro*), só que por preguiça, ou falta de afinidade com o tema, ela tentou abordar a questão exatamente no núcleo de humor.
Durante décadas, quando uma personagem LGBTQUIA+ aparecia em uma novela, em especial, gays e travestis, eles eram personagens cômicas. Serviam para fazer rir e, por conta disso, eram tolerados em uma sociedade profundamente lgbtfóbica. Os documentários Orgulho Além da Tela abordaram bem a questão. Personagens que não seguiam essa receita, só saiam do armário no final da novela para não serem rejeitadas e chegaram a ser eliminadas da trama. Se Bento e Lorenzo fossem um casal, e nem estou dizendo que deveriam, a coisa teria que ser dramática, doída. Ela criou Leopoldo para fazer graça e nem acredito que a sua homossexualidade estivesse planejada desde a primeira aparição dele. No início, ele parecia ser somente misógino e estressado, somente com o passar dos capítulos a coisa se revelou. E o ator é bom, ele tem ótimas cenas.
Desmascarado por Mariana (Carol Romano), ele entrou em um noivado falso com Arminda (Caroline Dallarosa), ao mesmo tempo que ajuda a moça, agora sua amiga, a se entender com Inácio. Como tudo na novela, menos a fase rebelde sem causa de Dorinha (Larissa Manoela) e a gravidez da mãe de Letícia (Larissa Nunes), é muito rápido, esta é uma característica da trama, aliás, Plínio, o galã da rádio novela escrita por Leopoldo entra na trama e logo temos um casal feito quase que do nada. E Plínio se revela para muita gente e rapidamente passa a se comportar como se a sua orientação sexual seria relevada caso suas fãs descobrissem. Há histórias horríveis dessa época em Hollywood sobre atores obrigados a se casar, a performar um modelo de masculinidade para toda a sociedade, a provar que eram "machos" se deitando com prostitutas recrutadas pelos estúdios. Se hoje a vida de um gay é difícil e pode ser perigosa, nos anos 1940 era pior para a maioria deles.
Como historiadora que trabalha com gênero e pessoa minimamente observadora dos costumes, me choca bastante a forma leviana como o casal vem sendo construído pela autora. Homossexuais são agredidos ainda em nossos dias das mais diferentes formas, nos anos 1940, além da homofobia, a coisa era crime mesmo. Plínio admitindo na frente de uma pequena plateia a sua condição, me pareceu absurdo. Ele era ator, um galã, deveria estar acostumado a mentir. Outra coisa era a necessidade, questão de sobrevivência até, de ter um gaydar muito afiado. Ele não percebe que Leopoldo é como ele. Eu lembrei do filme A Single Man (Direito de Amar) e como a coisa é construída lá, de como era doído e perigoso. Um desserviço em pleno mês do Orgulho.
E temos a cena do não beijo. Sinceramente? Seria melhor construir o romance dos dois aos pouquinhos, falar do medo, falar do segredo, das dúvidas, da vergonha, de como o afeto um do outro seria algo importante. Mesmo que eles pudessem ter a Arminda como aliada, era um tema delicado demais, especialmente, porque ambos são membros da boa sociedade. A construção do romance entre Plínio e Leopoldo é preguiçosa e me ofende, porque eu tenho como modelo Luccino (Juliano Laham) e Otávio (Pedro Henrique Müller) , um dos meus casais favoritos de telenovela, um romance construído com cuidado e sensibilidade ao longo de capítulos e capítulos com direito a mais de um beijo e muito carinho. Por isso, e até por outras novelas, também, sei que dava para fazer muito, mas muito melhor mesmo.
Outro ponto complicado dessa abordagem é o uso de termos anacrônicos e de um discurso artificial sobre o tema. Leopoldo usou homossexualidade em um diálogo com seu preconceituoso pai, quando deveria escolher algum termo daquele período. Uma das graças da novela é o uso de gírias de época e a autora está falhando muito nesse caso. E quando há a necessidade de discutir a homossexualidade, parece jogral e, não, algo integrado à trama central.
Quanto ao feminismo na novela. Na primeira fase a coisa estava muito clara e adequada. Nesta segunda fase, a questão aparece quando convém. Violeta é feminista até o segundo parágrafo, depois, é a mais assujeitada das mulheres. Fora coisas estranhas, como ela se horrorizar com a filha de calças compridas, quando ela mesma usa a peça de roupa quase que dia, sim, e o outro, também. Dorinha, diferentemente de Elisa, é somente uma mulher que não queria amar, não uma feminista de seu tempo. Só que decidiram transformá-la em uma mocinha chata e mimada e que desdenha o que quer comprar. Enfim, a autora usa a moral da época, as palavras da época, quando lhe convém, igualzinho Davi com sua mágica. Escreverei um próximo texto em breve sobre a novela.
Para quem quiser uma boa história que se passa exatamente no mesmo período dessa novela, eu recomendo muito a minissérie em 2 episódios Man in a Orange Shirt. Foi o principal produto que a BBC lançou em 2017 para comemorar os 50 anos da descriminalização da homossexualidade na Inglaterra e no País de Gales (Sexual Offences Act 1967). A primeira parte mostra um casal no pós-guerra e a segunda mostra um descendente de um deles nos dias atuais. É triste, porém muito bonita e realista.
ResponderExcluirLuiz, obrigada pela sugestão! Vou tentar encontrar essa série.
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