Esta semana, a tenista brasileira Bia Haddad foi a primeira brasileira a vencer um torneio internacional de tênis desde Maria Esther Bueno, em 1968, com um detalhe a mais, brasileiros, em geral, tem muita dificuldade na grama, no saibro os brasileiros costumam se sair melhor. Sim, nunca foi proibido que mulheres brasileiras praticassem tênis, um esporte de elite visto como elegante, mesmo que as mulheres tenham sido discriminadas nesta modalidade como na maioria das outras. Se quiser saber mais sobre isso, recomendo o filme A Batalha dos Sexos (Battle of the Sexes, 2017), que merecia mais do que a atenção que recebeu.
O investimento menor nos esportes femininos é coisa mais que conhecida, tanto que as iniciativas nessa área se tornam notícia. Eu nasci em 1976 e cresci em um meio no qual futebol de casados e solteiros de fim de semana era normal, mas mulher adulta praticando qualquer esporte era uma aberração. Mulher tem mais o que fazer, tem casa e filho para cuidar, se trabalha fora, no fim de semana é quando ela coloca as tarefas atrasadas em dia. Já vi discurso contra mulheres frequentarem academia no final dos anos 1990, quando elas se tornavam mais populares. Era coisa de mulher desocupada, péssima mãe, excessivamente vaidosa, ou, no caso das religiosas, que descuidava da "obra de Deus". Faria muito bem para a minha mãe praticar hidroginástica. Tem perto de casa, o preço é acessível, mas ela nunca aceitaria.
Era o exemplo que as meninas tinham, por outro lado, desde meados dos anos 1980, vinha o bombardeio das mídias sobre controle de peso (*Dieta! Dieta! Dieta!*), necessidade de cuidar da saúde e como a osteoporose estava ligada, também, ao "descuido" das mulheres em relação aos exercícios físicos. A culpa é um mecanismo de controle e a pressão sobre as mulheres é muito eficaz nesse aspecto. Mas, sim, voltemos ao foco. Como se criou a ideia, especialmente, para as mulheres pobres de que elas não deveriam praticar esportes acessíveis a elas, como o futebol, o esporte nacional? Mulher fica na torcida, ou lava o uniforme dos machos, às vezes, carregando muito peso, mas jogar, não pode. Sobra mais espaço e investimento para os homens. Trata-se de uma questão de gênero, uma construção social, não de opções pessoais.
A novela das seis está discutindo a proibição das mulheres de praticarem futebol. O Decreto-Lei 3.199, art 54 completou 80 anos no ano passado e dizia o seguinte "Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.". Não existe "natureza feminina" ou "masculina", que tal criá-la? Leis assim se prestam a isso. A graça é que a lei nada dizia sobre futebol, mas ela foi eficaz para reprimir a prática da modalidade feminina no Brasil.
Um artigo da página da USP fala de como a resistência antes da lei e o decreto em si prejudicaram um projeto de jogos abertos que ocorria em diversas cidades paulistas. Inclusive a ideia de criar uma confederação de futebol feminino. "(...) Iniciativas promissoras, como o time de futebol feminino do Araguari Atlético Clube (considerado o primeiro do país), sofreram com a perseguição moral e legal.". Nada como uma ditadura para confiscar direitos, especialmente, das minorias.
A lei do Estado Novo (1937-45), no entanto, não especificava quais esportes, nada que outra ditadura, a Ditadura Civil-Militar (1964-85), não pudesse resolver, não é mesmo? "(...) em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) citou nominalmente os esportes proibidos com "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol”. A regulamentação do futebol feminino aconteceu apenas em 1983, apesar de oficialmente o fim deste decreto ter sido em 1979." (Fonte: Globo Esporte) A rigor, uma mulher poderia ser presa por praticar esses esportes, quem os organizasse, também. Era coisa de marginal, de "mulher macho", de "sapatão".
Eu só fui descobrir que essa lei existia por volta de 2005, acredito, mas ela fez com que algumas coisas que presenciei na infância e adolescência fizessem sentido. Minha mãe contava que levou mais de uma surra da minha avó, porque ela a surpreendeu jogando bola. Nem era futebol, era vôlei, minha mãe tinha sido escolhida para ser levantadora do time do colégio e minha avó proibiu. Para minha avó, só mulher só podia praticar ginástica. Minha mãe nunca me reprimiu, mas, ainda assim, ouvi "Menina não joga bola (futebol).", presenciei na 8ª série o coordenador (*que era um velho*) reprimindo garotas da minha turma que estavam jogando futebol e uma menininha pequena ser quase punida pela mãe por chutar uma bola. Machismo? Sim, mas havia um quê de medo, também. Eram leis da ditadura e ela ainda estava fresca demais para a gente ouvir as bobagens que se ouve hoje e achar que tudo era uma maravilha. Muita gente não deveria saber que existia lei, mas outros não deveriam também ter recebido a notícia de que a lei tinha sido suspensa.
Na novela das seis, que está agora em 1945, temos uma adolescente, Lúcia (Zu Vedovato), que quer jogar futebol. A mãe da jovem, a secretária Iara (Luciana de Rezende), ama o esporte, mas se preocupa com Lúcia e a reprime usando dos argumentos que eu descrevi (*coisa de mulher macho", de "invertida"*), mas, também, lembrando que é CONTRA A LEI. Ontem ela teve uma discussão com o protagonista, Rafael/Davi (Rafael Vitti) sobre o tema. O rapaz veio com o papo progressista de que mulheres não deveriam ser impedidas de fazer coisas por essas serem consideradas masculinas. A secretária retruca com os argumentos que usa com a filha e acrescenta que ela é pobre e gente desse grupo social não pode se dar ao luxo de afrontar a sociedade.
A menina irá se disfarçar de rapaz, Lúcio, e irá entrar para o time da tecelagem da novela. É um clichê, eu sei, mas sempre rende boas situações desde que bem utilizado. É novela, claro, a coisa deve caminhar para o bem, isto é, a menina será descoberta, deve haver alguma confusão, mas dentro do que Além da Ilusão tem sido, o discurso será de crítica às proibições e preconceitos. É bom que assim seja e eu não espero nada mais que uma situação anedótica para distrair a gente do fato da trama dos protagonistas não fazer a história andar. De qualquer forma, é importante mostrar para a audiência que uma lei tão absurda já existiu e que ela teve impacto no desenvolvimento dos esportes femininos no Brasil.
Concluindo, mostrei a manchete que coloquei na abertura do post para minha filha de 8 anos e comentei com ela da lei, dos esportes contra a natureza das mulheres. "Mas isso é absurdo! Por que proibiram?" , ela disse. "E homens precisam de motivo para tirarem direitos das mulheres?", eu perguntei. Sim, eu estou educando minha filha para pensar sobre essas coisas e não ser vítima dos discursos de opressão. Se puder lutar contra eles, lute, ou passarão por cima de nós como um trator.
2 pessoas comentaram:
Complicado isso... infelizmente o machismo era muito maior há 90 anos.
Por falar em jogadoras de futebol... https://it.wikipedia.org/wiki/Regina_Baresi
a ex-jogadora da Inter é filha de Beppe Baresi* e sobrinha de Franco Baresi**
* ícone da Inter **ícone do Milan
Quero mencionar o crescimento das narradoras de futebol.
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