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terça-feira, 21 de junho de 2022

Criança não é mãe, Estuprador não é pai: Mais um capítulo da guerra contra as mulheres no Brasil

Ontem, tive o desprazer de assistir ao vídeo disponibilizado pelo The Intercept de uma audiência no estado de Santa Catarina na qual uma juíza e a promotora, não se esqueçam dela, forçam, porque não conseguiram induzir, basta ver o vídeo, uma menina de 11 anos, grávida de um estupro ocorrido aos dez, a abrir mão de um direito assegurado (*ou exceção, a depender da leitura*) desde o Código Penal de 1940.  Explico, a legislação em nosso país admite o aborto em pouquíssimos casos, um deles, estupro, outro, risco de morte da mulher (*ou menina*), o caso cai nos dois.  Vou citar parte do texto do The Intercept e retorno daqui a pouco:

"Uma criança de 11 anos, grávida após ser vítima de um estupro, está sendo mantida pela justiça de Santa Catarina em um abrigo há mais de um mês para evitar que faça um aborto legal. Dois dias após a descoberta da gravidez, a menina foi levada ao hospital pela mãe para realizar o procedimento. O Código Penal permite o aborto em caso de violência sexual, sem impor qualquer limitação de semanas da gravidez e sem exigir autorização judicial. A equipe médica, no entanto, se recusou a realizar o abortamento, permitido pelas normas do hospital só até as 20 semanas. A menina estava com 22 semanas e dois dias. Foi então que o caso chegou à juíza Joana Ribeiro Zimmer.  A criança, que tinha 10 anos quando foi ao hospital, corre risco a cada semana que é obrigada a levar a gestação adiante devido à sua idade, segundo laudos da equipe médica anexados ao processo e especialistas consultados pelo Intercept. Ribeiro afirmou, em despacho de 1º de junho, que a ida ao abrigo foi ordenada inicialmente para proteger a criança do agressor, mas agora havia outro motivo. “O fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”."

A promotora pediu a retenção da menina no abrigo, longe da mãe, e o motivo sabemos qual é, impedir que ela tenha acesso ao direito que lhe é assegurado por lei.  Assim, não haverá como o caso ter o desfecho de um semelhante ocorrido no Espírito Santo e que mobilizou à época, a militante Sarah Winter e a ex-ministra Damares para que a gravidez de uma criança estuprada da mesma idade fosse mantida.  Em todo o vídeo, percebe-se a preocupação com o feto, o que significa o apelo a um ideal, e a redução da menina a uma incubadora ("Você aguenta mais um pouquinho?"); a tentativa de sensibilizar a vítima perguntando se ela quer "dar nome ao bebê", porque vocês sabem que é como brincar de boneca; o uso de substantivos que se remetem à organização familiar, ao chamar a criança de "mãe" e o estuprador de "pai".  Este último recurso, aliás, presta-se, também, ao esforço de retirar a menina da condição de vítima, que a lei lhe assegura, porque qualquer ato sexual com menor de 14 é crime, segundo a legislação em vigor, em "parceira", "cúmplice", parte de um CASAL.  As estratégias discursivas usadas pelos (pseudo) pró-vida são das mais asquerosas.

Como a menina parecia inamovível, o que não faz diferença, pois ela estava sendo mantida em uma espécie de cárcere no abrigo, a promotora, responsável pela apreensão da menor, e eu me recuso a esquecer dela, porque ao mesmo tempo que, segundo a matéria, ela reconhece o risco de morte da criança, ela se posiciona contra o cumprimento da lei, tenta fazê-la sentir culpada de assassinato.  O esquema na audiência, na qual mãe e filha estavam sozinhas, é ao estilo tira bom (juíza), tira mau (promotora), uma tenta persuadir, a outra, colocar a criança como algoz de outra, a não nascida, mediante mentiras.  Diz que o feto seria arrancado da barriga da menina e nasceria chorando, sendo deixado para morrer.  Descreve algo que não ocorre em uma situação de interrupção de gravidez em ambiente hospitalar e cria uma cena tétrica cujo intuito é assustar e intimidar a menina e sua mãe.

Por fim, a mãe, que parece ser uma mulher humilde, ou não estaria sendo submetida a essa ordália, diz “Independente do que a senhora vai decidir, eu só queria fazer um último pedido. Deixa a minha filha dentro de casa comigo. Se ela tiver que passar um, dois meses, três meses [grávida], não sei quanto tempo com a criança… Mas deixa eu cuidar dela?”, suplica. “Ela não tem noção do que ela está passando, vocês fazem esse monte de pergunta, mas ela nem sabe o que responder”. Não lhe é permitido levar sua filha, afinal, a charge do Gilmar reproduzida no post foi perfeita, a menina está em uma espécie de prisão, apartada da mãe para que não exista a possibilidade de conseguir ter acesso ao direito que lhe é assegurado por lei.  Uma criança tratada como potencial criminosa.  É disso que se trata.

Eu acompanho essas discussões faz tempo, há vários posts sobre outros casos abomináveis, aqui, no Shoujo Café  Nada disso é realmente surpresa para mim, aliás, utilizar mulheres para oprimir outras mulheres é uma das estratégias para a manutenção do patriarcado que, em nosso país, assume aspectos misóginos cada vez mais evidentes, além de ser classista e racista.  Agora, raras vezes, assisti um vídeo tão tétrico, porque, normalmente, as crianças não são expostas dessa forma à violência institucional, afinal, a menina está aprisionada por ordem de agentes do Estado, e discursiva, porque foi transformada de vítima em mãe e potencial assassina.  Se você assistiu aquele vídeo inteiro, viu que a menina é inquirida sobre saber o que estava acontecendo com ela (estupro - gravidez - aborto) e ela aparentemente, dada a situação de abuso em que se encontra, parecia não compreender.  Enfim, tratada como objeto e incapaz de se ver de forma diferente.

Não pensem, porém, que este caso é isolado, na verdade, ele é parte de um PROJETO, uma guerra contra todos nós.  O mesmo The Intercept fez uma matéria sobre uma mulher, no estado de Alagoas, teve seu direito de interromper a gravidez por risco de vida negado, porque mesmo reconhecendo a grave perigo de morte da mãe, o juiz preferiu apostar no feto.  A incubadora defeituosa deve ser capaz de aguentar o tranco e, bem, se ela quebrar no processo, mesmo se o feto for perdido, valeu a aposta. É um jogo no qual as mulheres nunca ganham.  E eu não comentei, ia fazer o post, mas não fiz, o mesmo The Intercept publicou matéria sobre um documento  produzido pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde, dirigida pelo mesmo Raphael Câmara, o médico da caderneta da gestante cheia de erros e justificando a violência obstétrica, apontando para um futuro interesse do governo em acionar judicialmente mulheres que fizessem aborto legal em caso de estupro, obrigando-as a provar que sofreram a violência.  Sim.  Deem mais quatro anos para esse pessoal, ou votem errado para o Congresso e vejam no que vai dar. 

Este mesmo governo super preocupado com as mulheres que desejam e/ou precisam interromper uma gravidez, é o mesmo que neste momento desmontou o programa Rede Cegonha sem prévia discussão com entidades ligas aos profissionais de saúde, ou a sociedade civil.  A Rede Cegonha,  programa considerado eficiente na assistência ao pré-natal, parto e puerpério, será substituído, segundo o Brasil de Fato, pelo  Rede Materno e Infantil (RAMI), que "(...) dá ênfase à atuação do médico obstetra sem contemplar ações e serviços voltados às crianças e a atuação dos médicos pediatras, além de excluir o profissional enfermeiro obstetra.".  O texto também informa que 8 em cada dez mortes de grávidas por COVID relatadas são do Brasil.  Sim, mas vamos focar na proibição do aborto em todos os casos, tornar a vida de meninas estupradas um inferno ainda maior e descuidar das que querem gestar, parir e cuidar de seus bebês com o suporte devido do Estado. 


Eu tenho uma menina de 8 anos.  Antes dela nascer, eu já olhava qualquer criança ou adolescente como se pudesse ser minha.  Fora isso, o apelo da mãe me toca pessoalmente.  O que eu vejo ali, é a violência contra todas nós.  Eu estou educando a Júlia para saber que a mulher sempre é a vítima em caso de estupro e que uma criança não é capaz de consentir, porque existe lei para protegê-la, enquanto ela ainda está em formação e sem os instrumentos necessários (*biológicos, intelectuais, morais*) para fazer suas escolhas de forma integral e responsabilizar-se por elas.  Minha filha também sabe que ninguém pode ter acesso ao seu corpo sem seu consentimento e que palavras bonitas podem esconder grandes maldades.  

Só um adendo, antes de fechar o texto, alguém me mandou um artigo falando da promotora que apreendeu a menina e foi responsável por mantê-la em um abrigo.  Ela estaria envolvida em um caso no qual duas meninas foram tiradas da mãe, uma quilombola, e que se pautou por uma série de argumentos que podem ser vistos como racistas e misóginos.  Para se ter uma ideia, é possível ler nos autos a seguinte afirmação "Denota-se o caso atípico da presente demanda, já que a genitora é descendente de escravos e sua cultura não primava pela qualidade de vida, era inerte em relação aos cuidados com higiene, saúde e alimentação”.  Fico por aqui.

Um comentário:

  1. Eis um paradoxo: a lei de 1940 que permite aborto em caso de estupro foi criada durante a ditadura Vargas. Nenhum presidente brasileiro antes de Vargas se atreveu a permitir aborto nesse caso.
    Outro paradoxo: a lei do divórcio foi aprovada em 1977 durante a ditadura militar. Nenhum presidente pré-1964 se atreveu a aprovar essa lei.

    Essa juíza deve ter sido algum homem ultra machista na vida anterior (caso realmente haja reencarnação)

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