Hoje, publicou-se a notícia escandalosa de que o presidente da república vetou a inclusão do nome da médica psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) no Livro dos Heróis da Pátria. Para quem não sabe, há um monumento em Brasília, Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, um memorial cívico destinado a homenagear heróis e heroínas nacionais que, de algum modo, serviram para o engrandecimento da nação brasileira. Dentro dele está o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria ou Livro de Aço. Como é de se esperar, há mais homens no livro do que mulheres, também há mais pessoas que se envolveram em atividades militares do que em outros tipos de ações. Ainda assim, temos religiosos, diplomatas, escritores, advogados, ativistas e perseguidos políticos, músicos etc. Nenhum atleta, nenhum cientista, nenhum professor, que eu tenha visto.
Segundo a Agência Pública, para ter seu nome incluído no Livro de Aço é necessário "(...) que o Senado Federal e a Câmara dos Deputados aprovem uma lei com a inclusão. Só podem ser homenageadas pessoas falecidas (ou que tenham presunção de morte) há, pelo menos, 10 anos.". O nome segue para aprovação do presidente e, neste caso, ele negou a honra para Nise da Silveira.
Para quem não conhece Nise, cito a minibio que coloquei na resenha do filme Nise: O coração da loucura: "Nise da Silveira nasceu em Alagoas em 1905, foi a única mulher em uma turma de medicina com 157 homens; casada e já no Rio, foi denunciada como comunista e presa por 15 meses, o fato prejudicou sua carreira, mas não foi suficiente para destruí-la. Reabilitada em 1944, passa a se dedicar a um ramo pioneiro da psiquiatria, a terapia ocupacional. Nise também, pode ser vista como responsável pela criação dos hospitais-dia, que atendem doentes não reclusos, algo igualmente revolucionário. Seus escritos e estudos, sua interação com Jung, o diálogo intenso que manteve com a ciência e a arte, seu humanismo em tempos de violência contra os doentes psiquiátricos era a regra, a tornaram uma pessoa única. Ela merecia mais que um filme, não que o premiado Nise não seja um bom ponto de partida."
O nome de Nise foi proposto em um projeto de autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e foi aprovado pelo Congresso Nacional em abril. Nise da Silveira é reconhecida mundialmente por revolucionar o tratamento psiquiátrico no Brasil, sendo contra métodos até então tradicionais, como eletrochoques, lobotomia e confinamento, discípula de Jung, ela introduziu o uso terapêutico de cães no tratamento de doentes psiquiátricos, assim como a terapia ocupacional e a arte terapia. A recusa do presidente está no Diário Oficial da União (DOU) desta quarta-feira e alega o seguinte, segundo o UOL:
"Não é possível avaliar a envergadura dos feitos da médica Nise Magalhães da Silveira e o impacto destes no desenvolvimento da Nação, a despeito de sua contribuição para a área da terapia ocupacional (...) Desse modo, ao ouvir as pastas ministeriais, o presidente decidiu vetar a proposição legislativa, pois prioriza-se que personalidades da história do País sejam homenageadas em âmbito nacional, desde que a homenagem não seja inspirada por ideais dissonantes das projeções do Estado Democrático".
É absurdo que o presidente, ou seus assessores olavistas, porque não acredito que foi o próprio, ou que ele saiba alguma coisa sobre Nise da Silveira, o impacto de uma cientista que é reconhecida no seu campo no Brasil e no mundo. Agora, desconfio que o motivo da não inclusão está aqui "a homenagem não seja inspirada por ideais dissonantes das projeções do Estado Democrático". A médica havia militado no PCB e foi expulsa acusada de trotskismo, em um momento no qual qualquer crítica à Stálin nas fileiras comunistas era considerada uma heresia. Nise foi presa durante o governo Vargas acusada de ser comunista. Segundo conta, ela foi denunciada por uma enfermeira por possuir livros que era considerados subversivos em um momento de perseguição política motivado pela Intentona Comunista de 1935. Aliás, não tardaria para que entrássemos na Ditadura do Estado Novo.
Nise não é lembrada por ser presa política ou comunista, ou por sua militância política, a não ser que uma abordagem humanística da psiquiatria seja considerado um ato político que ameace a democracia. Sendo também mulher e nordestina, não me parece surpreendente que ela seja considerada menos importante durante o governo atual. E ainda temos outro ponto, o governo atual vem mudando a política em relação às pessoas com transtorno mental, pois defende a medicalização e a internação e, claro, patrocina comunidades terapêuticas duvidosas, muitas delas ligadas às igrejas parceiras do regime. Realmente, Nise não entraria no panteão dos heróis agora.
No fim das contas, a ignorância e o uso ideológico do fantasma do comunismo estão por trás da não inclusão merecida de Nise da Silveira no Livro de Aço. Fosse a outra Nise, talvez. Falando nisso, os fascistas odeiam pessoas com transtornos mentais, foram alvo inicial das políticas de extermínio nazista e, também ontem, um homem foi morto por policiais rodoviários federais em uma câmara de gás improvisada. Sim, foi isso e dificilmente haverá justiça. No Brasil de nossos tempos, a pioneira do tratamento digno de pessoas com transtornos mentais não é relevante o suficiente. Falta educação, falta humanidade, e será muita falta de vergonha se este governo for reeleito em outubro.
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