Estou com um texto incompleto sobre Além da Ilusão faz dias, já escrevi outros dois sobre a novela (*1 - 2*).. O tema do texto era o caráter duvidoso do mocinho interpretado por Rafael Vitti. Para quem não acompanha a novela, o jovem Davi foi acusado e condenado por um assassinato que não cometeu. A namorada, Elisa (Larissa Manoela), foi morta pelo próprio pai (Antonio Calloni), um juiz inescrupuloso. Passou dez anos na prisão, fugiu, e acabou tomando um trem que sofre um acidente. Davi assume a identidade de um homem que ele supunha morto, Rafael (Fabrício Belsoff), que iria assumir um cargo na tecelagem da família da namorada morta. Davi pensa em fugir, mas acaba assumindo a identidade de Rafael para proteger Isadora, irmã de Elisa, interpretada pela mesma atriz, e por quem ele está apaixonado, do quase noivo, Joaquim (Danilo Mesquita) e de sua mãe (Bárbara Paz), que desejam não somente roubar a fortuna da moça, mas talvez acabar com sua vida. Para sorte de Davi, o pai da moça, Matias, "enlouqueceu" e é incapaz de reconhecê-lo.
A autora ignora a idade de Davi, que já era homem feito na primeira fase da trama, enquanto Isadora era uma menina. Como Rafael Vitti tem 26 anos e passa por menos sem problema, esse fato deixou de ser um assunto entre quem assiste a novela, mas está lá, de qualquer forma. Ela tem 20 anos, ele deve ter entre 34 e 36. Já o homem de quem roubou a identidade e que está em coma para acordar em algum momento futuro da trama, tem 30. Com o passar do tempo, Davi vai mentindo, sabotando o rival, cometendo vários crimes, pequenos e grandes. Provar sua inocência deixou de ser uma questão, ou nunca foi, ele se acomodou ao papel que assumiu.
Algo que considerei muito problemático, foi a autora tê-lo colocado transando com a mocinha para marcar território, porque ele temia que o rival poderia suplantá-lo. Só para recordar, ele tinha feito sexo com a irmã mais velha da menina antes dela ser morta. Nesses momentos, a autora não entra em discussões sobre a moral da época, a culpa que a mocinha de família tradicional talvez viesse a sentir, nada disso, os valores (supostamente) hegemônicos só são válidos para empatar romances que a gente quer ver acontecer e na hora de discutir a homossexualidade. Fora isso, tudo é instrumentalizado segundo os interesses da autora.
Muito bem, no pé que estamos, Joaquim trouxe de São Paulo uma ex-namorada de Rafael, a vedete Iolanda (Duda Brack) e sua colega Margô (Marisa Orth). A moça tem um filho e acaba acusando Davi de ser o pai da criança ao descobrir que ele usurpou o papel de Rafael. O rapaz acaba sendo chantageado por Iolanda e sua parceira. Ele assume publicamente a paternidade, perde o amor de Isadora, que entrou em uma intragável fase "juventude transviada" dez anos antes disso ser moda, e Iolanda vai morar na casa de Rafael/Davi com a criança. Nada acontece entre eles. Davi não a maltrata, mas a recusa. A moça se apaixona por ele. E Davi reconhece a paternidade da criança depois de ter contato com o bandido que era o pai verdadeiro do menino, quer dizer, ele usa a identidade de Rafael para fazer isso. Ato de bondade? Fazer caridade com a carteira alheia não é caridade, na verdade, nosso mocinho cometeu outro crime. Complicado, muito complicado...
Mas indo ao ponto, anteontem, a novela colocou no ar uma cena de estupro. O mocinho embriagado é assediado por uma personagem feminina. Ele diz não repetidas vezes, coloquei a imagem do print. Ele tenta se esquivar, ela se joga em cima dele. Ao fundo, ouvíamos a homilia do padre Tenório (Jayme Matarazzo), atormentado por sua paixão impossível por Olívia (Debora Ozório). Achei de mau gosto mesmo. Fora isso, a autora deu tons românticos para a cena colocando a partir de certo ponto o rapaz alcoolizado vendo o rosto da amada ao invés da mulher que o agarrara. A cena não deveria estar na novela. Ela não precisava estar lá. Ela não terá grande função na trama. Bastava colocar uma interrupção, o bebê da moça chorando e acabava ali. Ela poderia também interromper o assédio quando ele a chamasse de Isadora. Havia várias formas e não romantizar um ato de violência.
Aguardei o capítulo de ontem para ver qual o desdobramento da cena e ele foi digno do primeiro livro de Bridgerton, não da série, que fique claro, e comentei o caso aqui. A vítima, porque o homem neste caso era a vítima, foi levado a se sentir culpado. Iolanda diz que ele gostou e que a usou. Ao que aprece, a autora vai deixar a coisa assim. Em 1944, não seria crime o que ocorreu entre os dois, hoje, trata-se de estupro de vulnerável, porque Davi estava embriagado e incapaz de reagir ao assédio ou escapar. Ontem, como hoje, dificilmente um home heterossexual iria denunciar um estupro, porque em nossa sociedade machista, ser atacado por uma mulher seria visto sorte, se a violência fosse praticada por um homem contra outro, a vítima se calaria para não ser vista como efeminada.
"Ah, Valéria, por qual motivo você está reclamando então?" Além da Ilusão é uma boa novela, mas que escorrega aqui e ali porque sua autora escolhe quando se ater à moral hegemônica da época, ou quando ela quer chutar tudo e fazer o que quer. Dorinha transou várias vezes com Davi, sem considerar-se suja, ou fazendo algo errado, no entanto, julgou de forma dura a mãe, presa em um casamento de anos com um homem mentalmente doente, como se ela mesma fosse um exemplo de virtude nos anos 1940. Faria sentido, se ela continuasse uma mocinha virginal e resistisse ao assédio de Davi. Como não era o caso, ou a protagonista é hipócrita, algo que ela não tinha parecido ser até então, ou maluca. Neste caso, foi pior, porque ela colocou uma cena desnecessária, violenta e não a considerou como tal, a diluiu como se nada fosse. E nada será. Talvez, por se tratar do estupro de um homem por uma mulher, a autora não considere estupro. E é horrível isso, se for este o ponto.
Colocar uma cena assim em uma novela que dialoga o tempo inteiro com o nosso tempo, é de uma irresponsabilidade sem tamanho. Além da Ilusão já levantou boas discussões, já colocou discurso anacrônico na boca das personagens em alguns momentos, agora, agir com irresponsabilidade é realmente lamentável. E não se trata de falsa equivalência, de pedir que se faça alarde sobre a violência das mulheres contra os homens, punir a moça que estuprou o protagonista, ou nada do gênero. Já que a cena ficou no corte final, eu gostaria de um pouco de bom senso. Na infeliz Nos Tempos do Imperador cortaram uma cena que faria sentido do vilão batendo na esposa, mas em Além da Ilusão passa um estupro e ele é vendido como outra coisa, talvez, um deslize do mocinho, porque ele dizer "não" foi pouco.
E isso em uma semana na qual tivemos um quase feminicídio sem devida sinalização. Sim, em Orgulho & Paixão, também uma novela das seis, este tipo de cena (*nem chegamos perto disso, foi somente uma metáfora para um estupro*) recebia um letreiramento antes, ou depois, avisando que aquilo era crime e para onde ligar. Alguém pode dizer que quebra a narrativa, mas o fato é que a sequência em que Matias sequestra Violeta (Malu Galli), a tortura e quase mata foi muito violenta e precisava de algum aviso. Em comparação, um rapaz embriagado sendo forçado a transar com uma moça bonita nem parece violência, mas foi, e das grandes, porque, no primeiro caso, ninguém teria dúvidas de que Matias estava errado de alguma forma com o agravante dele ser o vilão.
É isso. Gosto da novela no geral, a considero boa, especialmente, porque viemos de uma trama das seis muito complicada, mas a trama central é muito problemática e algumas escolhas da autora, principalmente quando ela tenta explicar com a moral da época, tem sido bem lamentáveis. Eu reafirmo que DUVIDO que Iolanda irá pelo menos se arrepender de verdade, se desculpar, ou voltaremos ao caso da violência contra Davi. Fica parecendo que foi nada, que ele gostou, que participou porque quis. Pense em como uma pessoa que passou por uma experiência desta, seja homem ou mulher, vendo essa cena e a forma leviana como a autora tratou a questão. Faça este exercício, por favor, e me diga se é correto. Pior, a cena nem precisava estar ali. Não tinha função real na trama. Nenhuma. Enquanto isso, estamos nessa lenga-lenga de Davi, Joaquim, Arminda (Caroline Dallarosa) e mais 1/3 do elenco tentando proteger a virgindade inexistente de Dorinha de um sujeito mal caráter que ela cismou de dar corda.
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