Segunda-feira da semana passada publiquei a primeira parte deste texto listando coisas que acredito que deram certo em Nos Tempos do Imperador. Como não tive tempo e condições de terminar de escrever a segunda parte, decidi fragmentar o texto. Ainda assim, a primeira parte do que deu errado na novela, só conseguiu sair mais de uma semana depois. Na verdade, esta reta final está tão medíocre, com tantos clichês e cenas forçadas, que eu acho que estou é sem vontade de comentar mesmo.
Quer ver, no capítulo de hoje (02/02), que eu ainda não pude assistir, iniciou-se o "Quem matou Tonico?". Faltando DOIS DIAS para o fim da trama, me inventaram essa bobagem. O vilão deveria ser preso, até porque os autores tentaram fazer analogias entre ele e o excrementíssimo, e o sonho da maioria dos brasileiros e brasileiras é vê-lo na cadeia pagando por seus crimes. No máximo, e duvido que isso entrasse em uma novela, Tonico poderia se matar na prisão, o que ajudaria Nélio e Dolores, pois eles ficariam livres para se casar.
Não sei quem matou, nem via a cena ainda, mas, se houvesse alguma coerência na mediocridade, a assassina seria Lota para vingar Bernardinho e para que Nélio e Dolores pudessem se casar na igreja, livrando-se de uma situação constrangedora que a própria novela não fez questão de explorar, diga-se de passagem. Ou então, uma saída menos interessante, mas que não ofende ninguém, Celestina, para vingar se marido e tentar compensar os imperadores por não ter entregue o livro. Enfim, segue o texto que levei mais de uma semana para terminar.
Infelizmente, acredito que Nos Tempos do Imperador tem muito mais problemas do que acertos e não será lembrada com muito carinho, salvo por quem gosta de montar vídeos com seus casais favoritos e escrever fanfics. E, não, pessoal, não estou dizendo que essas pessoas estão erradas em criar esse tipo de entretenimento, mas que fragmentos de Pedro e Teresa, ou Pedro e Luísa, ou ainda Nélio e Dolores, ou Augusto e Leopoldina, não representam o que foi a novela em termos qualidade. Por exemplo, a cena do encontro entre Solano Lopez e o Marquês de Caxias teve uma qualidade surpreendente, poderia ser usada para discutir como a narrativa histórica é construída e reconstruída, que ela depende de quem conta tanto quanto das fontes e dos fatos, mas esta cena não representa o que foi a novela como um todo.
Enfim, acompanho as discussões no Twitter e não vi ainda ninguém fazendo um vídeo sequer com momentos memoráveis sobre o casal de protagonistas oficiais da trama, Pilar (Gabriela Medvedovski) e Samuel (Michel Gomes). Raramente vi um casal principal que fosse tão ignorada e, claro, isso poderia ter sido remediado se a novela não tivesse estrado praticamente toda gravada. Eu duvido, por exemplo, que se Nos Tempos do Imperador fosse uma novela normal, o casal não tivesse sido separado, reformado, ou mesmo perdesse o protagonismo.
Desde as primeiras matérias e chamadas de de Nos Tempos do Imperador, havia a propaganda de que Pilar seria a heroína da trama, isto é, não seria a mocinha romântica sofredora, papel que coube para Dolores, irmã da protagonista, mas a jovem mulher que luta pelos seus sonhos. Em nome do seu sonho de se tornar médica, Pilar deixou a irmã criança para trás, usou uma escravizada em seus planos e em nenhum momento se mostrou culpada por isso, ou pensou duas vezes. Somente muito mais tarde, ela parou para refletir sobre o dano que causara à Dolores, mas não foi algo explorado dentro da trama. Pilar pareceu para parte do público, uma moça mimada, egoísta, além de insensível em muitos momentos para com a dor alheia. E, não, ela não tinha grandes opções a não ser fugir, não seria nada legal vê-la casada com Tonico Rocha (Alexandre Nero), não é isso que eu defendo que deveria ocorrer.
Durante dezenas de capítulos, a mocinha repetiu que "iria ser a primeira médica do Brasil" ou, mais tarde, que "era a primeira médica do Brasil". Era algo muito irritante, quase um bordão, e a mocinha, que deveria atrair simpatia, ganhou aversão de parte do público. Fora isso, Pilar tinha atitudes egoístas e era ciumenta, com os autores elegendo como sua rival, desde a primeira fase, uma então pré-adolescente, Zayla. Aliás, houve quem a apelidasse de Pilacre, porque ela sempre vinha com algum discurso cheio de razão para decidir qualquer discussão e, não raro, tudo parecia muito artificial. Mas, enfim, havia médicas no Brasil contemporâneas à Pilar? Não, não havia.
Um dos primeiros problemas de Nos Tempos do Imperador tem a ver com a inserção na trama de certas discussões que são estranhas à temporalidade escolhida pelos autores. Thereza Falcão e Alessandro Marson sonharam com uma trilogia e decidiram colocar a sua segunda novela, entre Novo Mundo e a futura trama sobre a Princesa Isabel, nas décadas de 1850-1860, só que puxando discussões que só seriam realmente centrais pós-guerra do Paraguai, isto é, depois de 1870. O movimento abolicionista e republicano só ganharam fôlego depois do fim da guerra, mas a novela quis puxar tudo para o período que escolheram. Era coisa demais e talento de manos.
Por exemplo, a novela mostrou corretamente o recrutamento de negros escravizados como soldados, esses homens tornaram-se livres depois do conflito, o Exército, que já tinha uma composição mais popular que a Marinha, ou a Guarda Nacional, ganhou uma face bem mais miscigenada. Resultado? Para muitos oficiais que chegaram escravocratas na guerra, com o seu término, eles passaram a ver em seus subordinados ou companheiros de armas pretos gente tão valorosa e capaz quanto eles. Manter a escravidão passou a ser visto como algo vergonhoso para o Brasil por um número cada vez maior de pessoas.
Da mesma forma, a luta pelos direitos das mulheres, incluído aí a educação, dependeu muito desses impulsos progressistas que formavam uma rede com o avanço do positivismo, que, no Brasil, é republicano, do engajamento das mulheres no movimento abolicionista, do higienismo etc. D. Pedro II era a favor da educação feminina, principalmente, porque se acreditava dentro dos círculos mais ilustrados do país que uma mulher seria uma melhor esposa, mãe e dona de casa caso pudesse ter acesso a uma boa educação. No entanto, pensem que era um país de analfabetos e que boa parte dos homens também estava excluído do acesso ao mínimo de educação formal. Pedro II se preocupava com a educação, mas, curiosamente, nossa primeira universidade só veio no final da República Velha, só tínhamos escolas superiores isoladas.
Enfim, a mulher que se tornou a primeira médica do Brasil, Maria Augusta Generoso Estrela (1860-1946), e que serviu de inspiração para a personagem Pilar, teve seus estudos parcialmente sustentados pelo imperador, mas vejam sua data de nascimento. Ela era criança pequena quando começou a Guerra do Paraguai. Como os cursos superiores não aceitavam mulheres no Brasil até o ano de 1879, mesmo que não houvesse lei que proibisse, como foi mostrado nao início da novela, mesmo que tentassem, fossem competentes, elas não eram aceitas, por isso, Maria Augusta foi mandada pelo pai para fora do Brasil com 16 anos, idade em que muitas meninas já casadas ou casando na época.
Com a reforma educacional, passou a ser proibido por lei que as mulheres fossem discriminadas no acesso ao ensino superior. Neste momento, Maria Augusta Generoso Estrela estava nos Estados Unidos estudando medicina, mas quando seu pai faliu, a jovem aproveitou da presença do Imperador em Nova York para pedir seu auxílio. D. Pedro II usou dos seus recursos pessoais para conceder uma bolsa de estudos que possibilitasse à jovem estudar entre 1877-1881. Retornando ao Brasil, ela pode validar seu diploma graças à reforma do ensino.
Já a primeira médica formada no Brasil, na escola da Bahia, foi a gaúcha Rita Lobato Velho Lopes (1866-1954) e ela poderia ter servido de inspiração parcial para Pilar, se os autores desejassem, porque decidiu ser médica depois da mãe morrer de parto e se especializou em obstetrícia para ajudar mulheres a não passarem pela mesma situação. Como morreu a mãe de Pilar? Poderiam ter usado a morte dela como motivador para a protagonista. Rita Lobato se formou em 1887 com somente 21 anos. e seguiu para sua especialização. Aliás, as primeiras médicas formadas no Brasil eram todas obstetras, o que aponta para um detalhe importante, mesmo quando médicas, esperava-se que elas cuidassem de mulheres e crianças. E esta era a visão que o próprio imperador tinha do tema, algo que a novela apagou. De qualquer forma, atentem, como pedi, para as datas.
Talvez, Pilar fizesse mais sentido na terceira novela. Em Nos Tempos do Imperador seria mais plausível falar do Barão de Mauá, da tentativa de industrialização e das oposições sofridas por ele, por exemplo. Haveria como costurar inclusive o abolicionismo precoce e engajado de Mauá na trama e manter o mesmo Tonico como vilão. Voltando para Pilar, algo que o Paulo Rezzutti enfatizou lá quando ele ainda estava fazendo lives sobre a novela, mas que é detalhe muito importante, as primeiras mulheres que foram para os cursos superiores normalmente eram filhas de pais, ou pelo menos pai, com um nível de educação acima da média. Por exemplo, o pai de Maria Augusta Generoso Estrela era farmacêutico.
O pai de Pilar era um bronco e o papel da mãe da mocinha no incentivo a sua educação nunca foi devidamente esclarecido. Aliás, quando o Coronel Eudoro morreu, ele iria contar um segredo para as filhas e, pelo jeito, os autores esqueceram do que se tratava. Enfim, dificilmente, um homem rude, que não via na educação um caminho para melhora de vida ou aprimoramento como ser humano, proporcionaria às filhas uma educação requintada, por outro lado, o abandono intelectual absoluto de Dolores, que mal sabia ler na primeira fase (*e terminou esquecendo pelo que se viu na segunda*), seria um exagero, afinal, a menina não foi sequer ensinada a comandar uma casa. E não se enganem, essa história de sinhazinha frágil tem limites muito claros, porque enquanto o marido estava na corte ou na capital fazendo política, não raro era a mulher que ficava dando ordens no engenho e controlando tudo. Isso não era incompatível com o papel de esposa submissa ou de mãe, como está no senso comum.
A esse dado, acrescentaria outro, que é importante quando se é uma historiadora feminista, normalmente quando uma filha mulher recebe uma educação muito afastada do que seria esperado isso acontece pela falta de filhos homens. O Coronel Eudoro poderia, sim, ter dado uma educação mais sólida para Pilar, mas, muito provavelmente, ela estaria ligada ao manejo do engenho. Por isso, seria mais coerente que ela fosse a sinhazinha fora do lugar, um tanto inábil com as prendas domésticas, porque seu pai, carente de uma esposa que o ajudasse nisso, tivesse sido indulgente com ela e permitido que ela ocupasse espaços que deveriam ser do filho homem que nunca veio. Ela poderia saber montar como um homem (*bobagem, todas as mulheres que apareceram a cavalo não montam como damas*), atirar e coisas do gênero. Ainda assim, o conflito com Tonico e o casamento arranjado poderiam existir na trama, tanto quanto o abolicionismo da jovem, a fuga, ou o encantamento por Samuel.
Muito bem, como sabemos, Pilar alcança o seu sonho. Se torna médica, no entanto, desde que ela cruza com Jorge/Samuel em muitos momentos parece movida muito mais pela necessidade de estar com ele do que de alcançar seus objetivos, ou colocar em prática o que aprendeu. Estamos na Guerra do Paraguai, muitas mulheres foram para o conflito como enfermeiras, acompanhando seus homens, oferecendo serviços aos soldados, algumas tentaram, inclusive, ser soldados (*algo que a novela negligenciou, vejam só!*). E Pilar? Ela foi para a guerra atrás de Samuel e com ele se casou na semana passada. Quando o Marquês de Caxias fala que ela foi para a guerra por patriotismo e abnegação, ela o corrige dizendo que foi para casar, levou até o vestido de noiva na mala, vejam só!
Estou chateada que os dois tenham ficado juntos finalmente (*pelos laços do matrimônio*)? Não. No entanto, a primeira médica do Brasil não se ofereceu para ir para a frente de combate como uma forma de ajudar o seu país, por amor aos que estavam sofrendo ou para compensar os imperadores por terem investido nela, ela foi atrás de macho. E isso é péssimo, especialmente, quando a gente pensa que Pilar foi construída para ser uma mocinha feminista, uma mulher que faria par com a Barral, mas que teria chegado a várias reflexões sem o apoio que Luísa teve de um pai culto e que defendia ainda antes de 1820 que as mulheres deveriam ter direito ao voto.
E que ninguém venha com "adiante de seu tempo" aqui. Não existe isso em história, o que há são pessoas, homens e mulheres, que tem condições e imaginar coisas em virtude de sua formação e experiências pessoais que a maioria não é capaz nem de pensar como possível, ou aceitável, por outro lado, nem tudo que se pode imaginar, como a máquina voadora de Leonardo da Vinci, se é capaz de realizar, faltam as condições de produção. Por isso, o voto feminino, ou uma mulher médica, não eram possíveis no Brasil de Nos Tempos do Imperador, mas seriam, talvez, quinze, vinte anos depois. Agora, um casal interracial era possível, mas, também nesse aspecto, os autores meteram os pés pelas mãos.
Vou começar citando um trecho da matéria da Abril sobre o projeto DNA do Brasil feito por pesquisadores da USP e que comentei no blog em 2020: "75% dos cromossomos Y na população são herança de homens europeus. 14,5% são de africanos, e apenas 0,5% são de indígenas. Os outros 10% são metade do leste e do sul asiáticos, e metade de outros locais da Ásia. Com o DNA mitocondrial foi o contrário: 36% desses genes são herança de mulheres africanas, e 34% de indígenas. Só 14% vêm de mulheres europeias, e 16% de mulheres asiáticas. Somando as porcentagens femininas, temos que 70% das mães que deram origem à população brasileira são africanas e indígenas – mas 75% dos pais são europeus. A razão remonta aos anos colonização portuguesa no Brasil. O estupro de mulheres negras e indígenas escravizadas era o padrão."
O que tiramos desse trecho? Nunca foi estranho que homens brancos se apropriassem dos corpos de mulheres negras e indígenas. O próprio Samuel é fruto dos abusos do Coronel Ambrósio que violentava suas escravizadas e mantinha cativos os filhos e filhas gerados desses estupros. Sim, havia relações amorosas, mas cuidado ao romantizar relacionamentos entre desiguais. O senhor não precisa do consentimento de uma escravizada e se não há assentimento de uma das partes é estupro. Aliás, a novela foi muito negligente em relação ao tema do estupro conjugal praticado pelo vilão contra Dolores, que não era tipificado nas leis da época, mas poderia ser discutido dentro da trama, como tantos outros temas contemporâneos, mas deixo isso para outro texto. Enfim, quando a relação entre brancos e negros reproduz a ordem, isto é, o homem é branco e a mulher negra, ela é aceita ou tolerada.
Pilar e Samuel se apaixonaram de forma instantânea, isso é comum nas telenovelas, mas os autores correram para juntar os dois e anularam qualquer discussão sobre racismo e dúvidas de parte a parte. Ainda que nossa destemida mocinha não visse problema em amar um homem negro, Samuel, que sabia ser ainda um escravizado, deveria ter seus receios e resistências. Nada disso foi trabalhado na primeira fase da novela e com um agravante, Pilar e Samuel passeavam de mãos dadas e se beijavam nas ruas da cidade do Rio de Janeiro como se esse tipo de demonstração pública de afeto fosse comum, ainda um casal interracial e formado por homem negro e mulher branca durante um período no qual a escravidão era inda uma instituição sólida. O drama, que poderia render ótimos conflitos em uma telenovela, foi tratado como se fizesse pouca diferença, da mesma maneira que as calças compridas de Vitória. Quem reagia era tachado de preconceituoso, como se estivéssemos no Brasil do século XXI onde, vocês sabem, o racismo é crime.
Além disso, Samuel ficava circulando sem rumo pela cidade e a legislação vigente, que fazia distinção entre livres e escravizados, punia o que era chamado de vadiagem. Samuel, ou qualquer pessoa preta, ou pobre, não estava segura vagando pela cidade sem emprego, ou residência fixa. Mesmo hoje, um homem negro pode ser abordado pela força policial simplesmente por ser negro, em Nos Tempos do Imperador, a novela ou ignora esses detalhes, ou os torna novamente uma anomalia, um cerceamento das liberdades individuais, como se negros e brancos estivessem em pé de igualdade. Foi por causa dessa negligência, consciente, ou não, que tivemos a vergonhosa cena de racismo reverso e as explicações sem pé nem cabeça da autora sobre não perceber o absurdo da coisa inteira.
Eu coloco em dúvida a inocência, porque este ano este ano estará em discussão a manutenção das políticas compensatórias, como a de cotas, e vemos pipocar por aí textos que defendem que existe racismo reverso, como se negros tivessem o poder para excluir e prejudicar brancos em escala sistêmica, ou que defendem que ser escravo no século XIX poderia ser um bom negócio, desde que você fosse um empreendedor. Ao mesmo tempo, vemos no ar uma novela que parece mostrar uma sociedade escravocrata na qual as limitações impostas ao negros fossem quase inexistentes, ou parcialmente sua responsabilidade. Agora, na reta final, a coisa ganhou tons mais fortes, porém é sempre tudo muito jogado, sem desenvolvimento e sempre alheio à trama central que não gira em torno de pessoas pretas, mesmo que, supostamente, Samuel/Jorge seja um dos protagonistas.
Ainda que na reta final da novela o racismo tenha sido mais trabalhado, ele é quase sempre um problema é dos indivíduos, como o delegado Borges, por exemplo, não estrutural, é como se maçãs podres contaminassem o cesto, como no caso das forças policiais. Enfim, quando soube que os autores iriam trazer Luiz Gama para a novela, imaginei que a discussão pudesse se adensar com o advogado dos escravos provando que a mãe de Samuel tinha entrado ilegalmente no Brasil após 1831 e, por isso, deveria ser livre, assim como seu filho. As políticas compensatórias foram pensadas porque o Estado Brasileiro fechou os olhos para o tráfico ilegal de pessoas permitindo que livres fossem legalmente registrados como coisas entre os anos de 1831 (Lei Feijó) e 1850 (Lei Eusébio de Queirós), que, finalmente, colocou fim ao tráfico. Luiz Gama, na verdade, foi trazido para que os autores mostrassem sua existência, não tendo real função na trama.
Também me incomodou muito a forma como a primeira vez de Samuel e Pilar aconteceu, mas isso não é um problema específico de Nos Tempos do Imperador, eu reclamei dessa não valorização da virgindade da mocinha já em um texto sobre Cordel Encantado (2011). Pilar, uma mocinha "à frente de seu tempo" não se importava em casar virgem, ou em morar junto com um homem negro, a sociedade que os engolisse, como se os dois fossem seres absolutamente autônomos, dissociados do restante da comunidade. A liberdade absoluta é uma ficção muito cara ao ambiente neoliberal, como se todos pudessem fazer o que quiser e der na telha e não tivessem quaisquer amarras, salvo as que aceitassem de bom grado. A corda é tão esticada que estamos aí com antivax colocando a vida de todos em risco.
Enfim, de novo, os autores trouxeram questões contemporâneas para dentro do século XIX, naturalizaram comportamentos que não eram vistos como moralmente corretos, anulando qualquer dúvida. Havia mulheres livres no século XIX? Havia, mas normalmente, elas pagavam um alto preço. Pilar até perdeu o emprego, mas foi muito mais por intriga de Tonico do que por seus próprios comportamentos. Por outro lado, Samuel que transou com Pilar sem muita resistência, apesar de rechaçar a ideia absurda de morarem juntos, se mostrava muito preocupado com essas questões em relação à Zayla, com ela, somente depois do casamento. Enfim, falei demais de Pilar, mas Samuel, o protagonista, nunca teve suas tramas próprias devidamente desenvolvidas.
Por exemplo, o fato dele ser escrevo fugitivo, ou de ter no corpo as marcas da escravidão, nunca foram um grande problema dentro da trama, salvo quando era de interesse dos autores provocar alguma discussão que não tinha grande conexão com o roteiro. Foi assim, por exemplo, com a marca de nascença compartilhada com Tonico, ela nunca tinha sido citada. Outra questão é a irmã desaparecida do protagonista, que imaginei reapareceria em algum momento, pois a história de sua morte foi muito mal contada. O problema é que Samuel sempre orbitou as personagens brancas. Pilar, claro, mas, também, a Condessa de Barral e D. Pedro, tornando-se fiador de seu segredo, assim como o Marquês de Caxias. Nem sua escolha pela engenharia parecia ser fruto de um desejo seu, foi algo enfiado na novela sem muito cuidado.
Fora isso, Samuel ficou noivo de Zayla, que era uma menina quando se apaixonou por ele e foi usada para que o protagonista esquecesse Pilar, mas nunca se discutiu esse problema, porque, para os autores antenados com questões contemporâneas, nunca houve problema em colocar uma menina negra como vilã e esquecer que ela era tão jovem quando Dolores, ou as princesas. Ainda que Zayla tenha se redimido, ela foi uma das personagens mais maltratadas pelos autores e, no fim das contas, esqueceu Samuel, sempre tão insosso, de repente para disputar outro homem, com outra mulher. Um desperdício.
Enfim, desde semana passada, depois de tantos sofrimentos, Samuel e Pilar estão casados. Seu romance, no entanto, não será lembrado, caso alguém efetivamente se lembre de Nos Tempos do Imperador, porque outros casais mobilizaram a audiência e eles, não. E foi uma grande pena, porque a trajetória dos dois poderia ter sido muito diferente se os autores tivessem corrido menos e construído situações que nos levassem a torcer para que os dois ficassem juntos apesar dos obstáculos ao seu amor, ao invés de anular os problemas reais que eles poderiam ter em uma sociedade escravista, inventando uma série de bobagens, como a chantagem de Zayla, para mantê-los separados. É isso. Espero terminar de escrever os meus textos sobre a novela. Este aqui, diga-se de passagem, deve ter ficado longo demais e muito chato mesmo, mas eu não queria jogá-lo fora.
1 pessoas comentaram:
Adorei os comentários. Muito precisos. Realmente a novela desejou muito a desejar.
Conheci seu blog hoje e adorei.
Estou para fazer um post sobre a semiótica em torno da roupa de Pilar e Samuel no último capítulo fazendo uma referência a Bela e a Fera (vestido amarelo e terno azul). Se conseguir, te aviso para que possa ler.
Att, Tainara.
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