Aproveitei a sexta-feira para terminar de assistir a primeira temporada de Bridgerton. Tinha visto até o episódio 6, e só passado os olhos por cima do que sobrara, são 8 ao todo. Já havia comentado até o episódio 5 em textos que falavam de alguns aspectos da série (*1 - 2 - 3*), porque eu realmente não acredito que Bridgerton, pelo menos até agora, valha o esforço de resenhar episódio a episódio. Só para marcar, a novela das seis da Globo, Além da Ilusão, me parece bem mais interessante do que a adaptação dos romances Harlequin de Julia Quinn, mas a série me causa muito menos irritação do que Sanditon, que é vendida como Jane Austen, quando, na verdade, não é. Eu acho menos aviltante uma série superficial e com um visual muito bonito como Bridgerton do que outra que tenta se construir como legítima representante da obra de Jane Austen. E já escrevi muito sobre Sanditon e falei da série no podcast Café com Jane Austen, então, basta. Não irei assistir nada do que ainda vai sair de Sanditon.
De resto, este texto atrasou porque decidi ler, nem que fosse de forma rápida, o primeiro livro, O Duque e Eu. Já tinha começado, mas parei. Motivo? Tenho que comentar a tal acusação de que a mocinha, Daphne, violentou o marido. A primeira temporada terminou faz mais de um ano, não se trata de um grande spoiler, aliás, ano passado, houve quem tenha juntado o incidente de Bridgerton e o que rola em Mulher Maravilha 1984 para fazer falsa simetria entre a forma como homens e mulheres são tratadas dentro da ficção, em especial, quando se trata de abuso sexual. Volto a isso daqui a pouco.
E mais um ponto, este me surpreendeu muito, porque não tinha ido atrás de spoilers, a identidade de Lady Whistledown, a fofoqueira com a voz de Julie Andrews que guia a história com seus comentários sarcásticos e indiscretos sobre a alta nobreza (the ton) e alta sociedade britânica, tenha sido revelada já nesta primeira temporada. Segundo vi, a autora só revelou quem seria a pessoa no livro quatro. Achei bem tiro no pé, por assim dizer, seria interessante manter o suspense, ainda que, ao rever algumas cenas, as pistas já estivessem lá. Eu é que não tinha percebido.
Enfim, para quem não viu a primeira temporada, a segunda série mais assistida da Netflix em todos os tempos, ou leu o primeiro livro, Bridgerton trata da história dos quatro filhos e quatro filhas da dita família, membros da alta nobreza britânica, na Inglaterra do início do século XIX. Cada um dos livros é focado em um dos Bridgertons e sua vida amorosa e a série parece desejar seguir o mesmo padrão. A primeira temporada trata de Daphne (Phoebe Dynevor), a filha mais velha, então debutando na sociedade e sendo apresentada à Rainha Charlotte (Golda Rosheuvel), uma honra dada somente a um punhado de moças das melhores famílias ao país. Apesar do seu sucesso inicial, algo que é proclamado nos escritos da misteriosa Lady Whistledown, a moça não consegue um pretendente, porque seu irmão mais velho, Anthony (Jonathan Bailey), atual visconde de Bridgerton, e conhecedor de todos os pecados e segredos dos jovens da nobreza, acaba melando todas as propostas da moça.
Concomitante a isso, Simon (Regé-Jean Page), o novo Duque de Hastings, melhor amigo do irmão de Daphne, volta à Inglaterra e se torna o solteiro mais disputado do país. Só que ele, que tinha um relacionamento péssimo com o pai, não quer casar, tampouco ter descendentes. Para se vingar do pai, que o rejeitara por não ser perfeito, pois o menino tivera dificuldades com a fala e teve que lutar contra a gagueira, decide que o título irá morrer com ele. Ele e Daphne começam um falso relacionamento, ele para afastar pretendentes, ela para atrair. Era um jogo, mas os dois se apaixonam e acabam tendo que se casar. Não darei detalhes. Mas o moço avisa para a futura esposa que não pode ter filhos. Guardem isso, ele disse que não podia, ele não disse que não queria. É igual na série e no livro. A diferença é que na primeira noite do casal, no livro, Daphne acreditava que o marido seria impotente, na série, isso não aparece. Como a jovem não sabe nada sobe concepção, ou sobre sexo, porque sua mãe (Ruth Gemmell) nada de útil lhe contou, ela acredita que seu marido não pode ter filhos e demora a compreender o motivo do marido não ejacular dentro dela.
É no capítulo 6 da série que a mocinha descobre que está sendo enganada, porque ela está. Ainda que a série e o livro não se aprofundem nisso, aos olhos da sociedade, a culpa do casal não ter filhos seria dela, a esposa. Daphne seria acusada de estéril, ela seria alvo da pena das pessoas de bom coração. E chegamos ao ponto da controvérsia, Daphne descobre que o marido não quer ter filhos e decide obrigá-lo a lhe dar o que é direito seu, sua semente. Ela estupra o marido? Na série, de forma alguma. Eles estão no ato sexual, ele está participando ativamente e ela consegue impedi-lo de praticar coito interrompido. A partir daí, a relação harmoniosa dos dois fica comprometida. Ele acusa a esposa de defraudá-lo, de o enganar, e que ela sabia que ele não queria filhos. Não, ela não sabia, em nenhum momento ele disse isso. Estou dizendo com isso que a atitude dela foi "OK", de forma alguma, mas estupro não foi.
Os capítulos 7 e 8 giram em torno, principalmente, do drama dos dois, que se amam e precisam se entender. No original, e vou falar mais dele daqui a pouco, Simon deixa a esposa para trás, em plena lua de mel (*foram quinze dias, mas eu cheguei a achar que tinha passado mais tempo na série de TV*), e vai para outra de suas muitas propriedades, enquanto Daphne segue para a residência dos Hastings em Londres, como forma de ficar perto da família, sem causar o escândalo de se hospedar em sua antiga casa. Na série, eles nunca se separam, ficam se bicando, seja no campo, ou em Londres. Alguns diálogos que, no livro, estariam antes da ação de Daphne, como o duque exigindo que a esposa continue dividindo seus aposentos com ele, são apresentados como posteriores à tentativa da protagonista de engravidar do marido. E, algo importante, as atitudes violentas e autoritárias de Simon são muito amenizadas, assim como a ação de Daphne que resultou no afastamento dos dois. Vamos ao livro?
No livro de 2000, as coisas são bem diferentes. Daphne descobre que está sendo enganada pelo marido e o confronta. Eles discutem, ela se muda para os aposentos da duquesa (*cada um ter seu quarto era algo normalíssimo entre a nobreza*), ele sai e volta bêbado e ao não encontrar a esposa em seu quarto, vai até onde Daphne está e a ameaça. Ele é o marido, ele é o seu dono, segundo a legislação vigente, ele pode obrigá-la a cumprir os seus deveres (*estuprá-la, mas para a lei não seria isso*), ele a segura com força a ponto de doer, além de ser sexualmente agressivo. Ela continua firme e diz que ele é honrado demais para cumprir com suas ameaças. Ela diz "não" mais de uma vez e ele aceita a recusa. Ainda assim, a autora delimitou direitinho a diferença de poder entre os dois, o fato da relação ser desigual, porque ser homem e mulher naquela sociedade estabelecia essa hierarquia. A série ameniza as coisas, a precariedade da condição de uma esposa, mesmo rica, assim como a personalidade possessiva de Simon.
Só que o livro dá a entender que essas características do marido, o ciúme, as exibições de possessividade seriam excitantes para Daphne, elas seriam quase uma forma de elogio. Se ele fosse um pouco mais "insistente", ela cederia. E isso, aviso, não é incomum nesse tipo de literatura popular para mulheres, são padrões repetidos e reiterados, modelos de masculinidade e feminilidade apresentados como ideais. A graça, claro, e isso está em O Duque e Eu, é que a autora mistura essas informações de época com atitudes modernas, daí, não existe muita coerência nos comportamentos das personagens. Depois desse entrevero entre os dois, Simon bebe de novo e volta muito embriagado para casa e Daphne o recebe, cuida dele, ele pede para que ela não saia do seu lado e ela vê que o marido está excitado e decide aproveitar-se disso. É aquilo que eu escrevi em um texto importante do blog, "sua boca diz "não", mas o seu corpo diz "sim"", a diferença, a novidade, é que isso foi aplicado ao mocinho.
Diferentemente da série, onde o mocinho estava lúcido e consciente durante o ato sexual, no livro ele está absolutamente alcoolizado. E Daphne se sente poderosa ao abusar do marido. E, bem, estupro não tem a ver com sexo ou desejo, mas com poder. Ainda que o poder seja transitório, afinal, lembrem que a condição dos dois não era de igualdade, ela estava à mercê dele. Enfim, o mocinho fica horrorizado ao perceber o que aconteceu entre eles, mas é tarde demais, começa a gaguejar, se sente humilhado e foge. Estamos em um livro, que se passa no início do século XIX, Daphne não poderia ser enquadrada em nenhum crime, mas eu esperava mais da autora, porque o que se desenrola a partir daí é uma culpabilização de Simon por se deixar escravizar pela raiva em relação ao pai morto, sem que Daphne precise sequer se desculpar pelo que fez. Ela parece ser a vítima absoluta. E não é porque o livro tem vinte anos que as coisas precisavam ser assim.
Enfim, o estupro de personagens femininas é muito mais constante do que um caso isolado de mocinho sendo abusado, porque, no livro, é uma sequência que não deixa dúvidas. Agora, personagens femininas sofrem violência sexual para que o herói, ou qualquer outro homem na história, cresça, ou tenha um ponto de virada em sua trajetória, o tempo inteiro. Fora isso, como vocês podem ver nessa chamada para uma sequência futura da novela das seis da Globo (*imagem abaixo*), a palavra "estupro" é substituída muitas vezes por eufemismos, "transa forçada" é um deles, como se as coisas fossem diferentes por ser o noivo, namorado, ou sei lá o quê. Deveria ter escrito "estupro" e pronto, mas o moço é tão bonito e trata-se de uma palavra tão feia...
Além disso, seja em um livro como Bridgerton, na novela que se passa nos anos 1940, ou mesmo no Catar de hoje, um estupro poderia destruir a vida de uma mulher, ou obrigá-la a um casamento com seu agressor. Era a forma de resolver um problema sem que sangue tivesse que ser derramado, uma mulher tivesse que ser expulsa de casa, mandada para um convento, whatever. Aliás, muito do que foi lido como histórias de sedução ao longo de séculos poderia ser enquadrado em nossos dias como estupro sem problema algum. Pegue os relatos das aventuras de Casanova e leia com nossos olhos, ou a forma como Cécile é "seduzida" por Valmont em Ligações Perigosas. Isso não é brincadeira e não é porque temos um número maior de personagens femininas fortes, ou empoderados, que as desigualdades entre homens e mulheres e a violência patriarcal foram anuladas.
Não entrarei em detalhes sobre como Simon e a esposa fizeram as pazes, mas é ele quem precisa se dobrar e ir atrás dela, já Daphne não é levada a refletir sobre o fato de ter abusado dele. É como a Mulher Maravilha no último filme, ela sequer se questiona sobre ser certo, ou errado, que seu amado Steve use o corpo de outro homem como hospedeiro. De forma alguma, é um tanto decepcionante que Julia Quinn tenha escolhido esse caminho no seu livro. Por outro lado, a série acertou ao mudar as coisas, pois livrou a mocinha da acusação de abusar do marido, ainda que muita gente tenha gritado estupro. O que Daphne na série fez foi um ato desesperado, mas estupro não foi. Infelizmente, ao retirar boa parte dos melhores diálogos do livro tornou a história bem rala a partir daí, além disso, a série optou, veja que curioso, por dar ao casal um filho homem, quando, no livro, nascem três meninas antes do herdeiro.
O que mais acontece nesses últimos capítulos? Decide-se a trama de Marina (Ruby Barker), que não era personagem deste livro e que me pareceu mais uma historinha para encher linguiça, mesmo que algumas cenas envolvendo as Featherington tenham sido interessantes. O casamento arranjado da moça grávida com o irmão (Chris Fulton) de seu falecido namorado é usado para ilustrar que aquilo era mais a regra do que a exceção, que a condição das mulheres que perdiam sua virgindade poderia ser ruim, ou ainda pior, e que a maioria dos casamentos eram sem amor. Colin (Luke Newton), depois de descobrir que foi usado por Marina, decepciona Penelope (Nicola Coughlan) e parte na sua Grand Tour. Ainda falando dos Featherington, eles estavam falidos, mas o pai da família (Ben Miller) decide armar para que o amigo boxeador de Simon, Will Mondrich (Martins Imhangbe), um dos atores mais bonitos da série, aceite perder uma luta importante. Os dois ganham dinheiro, muito, só que a alegria do pai de Penelope dura pouco e as ações do picareta terão desdobramentos desagradáveis para toda a família.
Já o boxeador, que aceitou a fraude para ter dinheiro para se aposentar, parece ter conseguido se sair muito bem da armação, logo ele, o elo mais fraco da corrente. Pior, como ele é inspirado em um pugilista negro real, Bill Richmond, colocá-lo como alguém que participa de fraude foi algo bem feio. Mondrich poderia pedir ajuda para Simon, mas diz que não queria caridade. É mais fácil, então, se tornar um criminoso? Ficou esquisito, porque o sujeito dava ótimos conselho para o mocinho e parecia um sujeito honrado. Pior, ele ainda dá lição de moral no Duque de Hastings meio que o convocando a ser um bom pai de família e olhar para o mal que estava causando à Daphne. Eu realmente não consegui gostar desse desdobramento da série. Eu imagino que o boxeador também esteja fora da segunda temporada, Regé-Jean Page não volta mesmo e acho que ele vai se arrepender.
Falando do resto dos Bridgerton, Anthony termina por retomar o seu caso com Siena (Sabrina Bartlett) para, mais tarde, ela romper definitivamente com ele. E a moça faz isso por saber que o romance de uma atriz com um visconde não tinha futuro mesmo. O rapaz então decide que irá encontrar uma noiva adequada, abrindo mão de questões como o amor. Este é o ponto de partida para a próxima temporada e já comentei o trailer. Já Benedict (Luke Thompson) acaba se afastando dos seus amigos da pá virada e arrumando uma amante, o que afasta qualquer ideia de que o rapaz pudesse ser bissexual, ou mesmo gay, porque senão teriam que mudar muito o livro dele. No meio de tantos irmãos, não seria mau que um deles pelo menos não fosse hetero, mas ia ter gente se rasgando de dentro para fora. E a tomboy Eloise (Claudia Jessie), a Bridgerton mais interessante, é obrigada pela mãe a debutar, mas ainda arruma um tempo para salvar Lady Whistledown da rainha. Eloise deve continuar aparecendo bastante na próxima temporada e torço para que ela tenha cenas interessantes fugindo da sua condição de debutante e melando os planos da família.
Enfim, durante boa parte do tempo, Bridgerton é uma série simpática e visualmente muito bonita. O figurino não se propõe a ser fiel, mas dialoga muito bem com a moda da época que visa retratar. Essa beleza calculada pode enervar algumas pessoas, mas eu realmente vejo mais problema na mocinha descabelada de Sanditon. Claro, o duque sem gravata me irrita, mas é um detalhe que dá para levar. Agora, o grande problema de Bridgerton, que tira muito do brilho da série, foi criar a fantasia de que o racismo, a escravidão, tudo isso foi apagado por um casamento entre uma mulher negra e o rei da Inglaterra. Eu escrevi sobre isso em um dos textos sobre a série, não lembro qual, e realmente foi (*e continuará sendo*) um desserviço.
Se fosse tudo color blind mesmo, isto é, tanto faz a cor de pele do ator, ou atriz, porque isso não estaria em questão, seria como se ninguém tivesse cor, daria para levar. Do jeito que colocaram, é como se Bridgerton fosse um conto de fadas, só consigo ver a série desse jeito mesmo, e dos bem bobinhos. É isso, dia 25 estréia a nova temporada. O trailer (*que está aí embaixo*) me lembrou Orgulho & Preconceito, vamos ver se eu confirmo o meu feeling a respeito do casal principal.
0 pessoas comentaram:
Postar um comentário