Estava com o filme Guilherme, o Conquistador (Guillaume, la jeunesse du conquérant, França, 2015) aberto no Amazon Prime fazia mais de uma semana e decidi parar para assistir, porque sonhei lá que estava em uma reunião do PEM-UFRJ (Programa de Estudos Medievais). Como é raro termos um filme sobre esse momento, século XI, e sendo francês, achei que valia a pena dar uma olhadinha, sim. Enfim, é um filme curto, de baixíssimo investimento e bem insatisfatório. Muita floresta, muita pedreira, me lembrou aquelas economias da série clássica de Jornada nas Estrelas que recorria a isso por falta de dinheiro.
Começamos o filme em 1066, os exércitos do duque da Normandia (Tiésay Deshayes) mobilizados para invadir a Inglaterra e a campanha nunca começa, o que deixa os homens ansiosos e alguns desertam, sem que Guilherme os impeça. Ele quer os corajosos, que desejam a honra, mesmo que ao custo da própria vida. Guilherme manda vir seu herdeiro para que ele seja reconhecido como duque da Normandia e seu sucessor. Era algo comum na época, antes da primogenitura ficar plenamente assentada. A partir daí, começa um flashback, afinal o filme é sobre a juventude de Guilherme, no qual Wilhelm Fitz Osbern (Antoine Lelandais) conta para o filho e herdeiro de Guilherme, Roberto (Kevin Lelannier), como seu pai conseguiu ser reconhecido por seus vassalos e se tornar o homem poderoso que se tornou.
O fato é que Guilherme, antes de ser "o Conquistador", era chamado de "o Bastardo", porque seu pai e sua mãe não eram casados segundo os ritos da igreja católica. Isso já era um problema no século XI? Era, sim, mas nada que não pudesse ser resolvido com negociações, dinheiro, terras e penitências. Roberto I, pai de Guilherme, teve uns confrontos com a igreja e tentou acomodar as coisas dessa forma, fez reconhecer seu filho como herdeiro e partiu em peregrinação para a Palestina deixando o filho para trás. O duque não voltou, morreu em 1035, deixando o menino com 8 anos e um monte de barões dispostos a, quem sabe, ajudar essa criança a não chegar à idade adulta.
Temos o menino sendo protegido pelo senescal Osbern de Crépon (Geoffroy Lidvan), que fica vagando pela Normandia para impedir que Guilherme, visto como bastardo e correndo risco de não ser reconhecido, seja assassinado por seus parentes que também queriam o ducado. São condições bem precárias, mas Osbern se esforça para dar ao menino uma educação adequada para que ele possa estar pronto ao chegar à maioridade. É nesta fase, com atores crianças, que o filme constrói a amizade de Guilherme (Tiésay Deshayes) com Wilhelm, que se torna seu braço direito, e Gilbert de Brionne (Pierrick Billard), que o trai na juventude, aliás, trai todo mundo e, assim mesmo, termina vivo no final. Não entendi por qual motivo Brionne, que era ligeiramente mais velho que os outros dois, estava com o grupo como tendo a mesma idade. Cheguei a pensar que ele era filho mais velho de Osbern, porque não tenho de memória os nomes dessa galera toda.
Aliás, todos os traidores terminam poupados no fim do filme, o que acaba traindo a lógica da narrativa do mesmo, que estava meio que torcendo fatos históricos à vontade. FELONIA, trair o seu senhor, era um crime muito sério. E, no caso de Gilbert de Brionne, ele ainda provoca a morte de Osbern. O filme é tão pobrinho que é difícil conseguir o nome do elenco completo, mesmo no IMDB. Mas o vilão do filme não é Gilbert de Brionne, primo de Guilherme, ele é somente um fantoche de um barão chamado Ranulfo (Eric Rulliat), que é bem malvado e capaz de tudo. E não envelhece na passagem de tempo. Mérito do filme? O malvadão é moreno, apesar de normando, mas não lhe tacaram kohl, também.
Enfim, o filme não mostra a invasão da Inglaterra e tenta fazer uma ponte com os vikings estabelecendo que comunidades pagãs permaneceram às escuras na Normandia e com elos com a nobreza, são eles que teriam ajudado a salvar o menino Guilherme. É possível que pudessem existir pagãos na Normandia no século XI? Sim. Com aquele grau de organização? Não. Mais fácil seria mostrar como a prática do catolicismo local estava permeada por vestígios de paganismo e como rituais poderiam ter sobrevivido. De qualquer forma, uma ideia importante do filme é tentar separar cristãos de pagãos em uma Normandia que já era católica fazia tempo. Brigar com a Igreja Católica por isso, ou aquilo, ignorar certas regras, era coisa corriqueira, afinal, ainda não estamos no auge do Papado (séc. XII-XIII), mas o filme exagera e muito.
Enfim, o ponto alto do filme é a Batalha de Val-ès-Dunes (1047), quando o jovem duque pede ajuda ao rei Henrique I. Henrique Capeto é um dos reis símbolo da debilidade do poder real no sistema feudal. Seus domínios não se estendiam para muito além da Île-de-France, onde estava Paris, porém, ele exercitava seu poder simbólico muito bem e é lembrado como um bom estrategista que, na maioria das vezes, tinha noção do que poderia, ou não, tentar fazer. Ele apoia Guilherme com um exército. O filme não se dá ao trabalho de explicar por qual motivo o jovem duque não pediu antes, da mesma maneia que não mostra quando Guilherme tomou o castelo de Falaise (foto acima), fortaleza símbolo do poder do duque, algo que não explicam em momento algum, também. Já durante a batalha, o filme sugere que o rei já começou a se sentir ameaçado por Guilherme e, de fato, ele será derrotado duas vezes pelo duque da Normandia, quando apoia seus inimigos em anos posteriores. O fraco Henrique temia o poder, a riqueza e a popularidade de Guilherme.
O filme coloca os normandos (*pagãos, ou cristãos*) como homens rústicos, fortes e sujinhos, já o rei da França é a caricatura do francês metidinho (*feita pelos próprios, que fique claro*), limpinho e com ar blassé. Um amigo, que mora na Europa, explicou que o rei parece ser a caricatura dos parisienses para o resto da França. O fato é que no século XI não havia estado nacional, não havia identidade francesa e foi um acerto do filme colocar que os normandos (*homens do norte*) viam o rei e seu exército como estrangeiros, como francos, enquanto tinham laços ainda fortes com os dinamarqueses e outros povos do Norte.
A fotografia do filme é super escura e problemas de continuidade, ou consistência de roteiro mesmo. Por exemplo, nunca vemos a queda de Falaise, não sabemos por qual motivo Guilherme estaria sozinho dormindo tranquilamente com uma mulher em um local desprotegido. Em muitos momentos, a personagem de Wilhelm parece ser bem mais importante que a do duque, mas deixa pra lá. O ator que faz Wilhelm aos vinte anos é muito bonito.
Falando de figurino, ele é bem genérico, a maioria das roupas são escuras e todos os homens tem cabelinhos beeeem modernos. As mulheres usam cabelos soltos, sem véu ou adereços, salvo por uma única que apareceu com os cabelos cobertos. Curiosamente, uma das lavadeiras que ficam flertando os três meninos (Guilherme, Wilhelm e Gilbert). Uma garota tinha até cabelo castanho com pontas louras, que deveria ser moda em 2015. Os atores que fazem Guilherme e Wilhelm criança-jovem-adulto são muito diferentes entre si. Guilherme começa alourado, vira um moreno bem moreno, depois volta a ser alourado. Wilhelm começa moreno e depois fica louro.
E não perdoo o filme por não mostrar NADA do rolo do casamento de Matilda com Guilherme. Essa parte não podia ficar de fora, porque aconteceu antes da tal batalha decisiva. Quinze minutos de filme resolvia esse negócio. Para quem não sabe, Matilda de Flandres, não queria se casar com Guilherme. Ela tinha sangue real, ela não queria se tornar esposa de um bastardo e, curiosamente, seu pai decidiu que não a forçaria a se casar. Ela rejeita de forma afrontosa a proposta de casamento. Guilherme decidiu lhe fazer uma visita. As versões variam, se Guilherme bateu nela, ou não, se só a pegou pelas tranças e arrancou do cavalo pelas tranças e a jogou no chão, ou a atirou na lama, mas o fato é que ele não foi nada gentil. O pai de Matilda queria fazer guerra, ela interveio e disse ao pai que não se casaria com homem nenhum que não fosse Guilherme. E a Igreja não queria autorizar e eles brigaram por isso. Guilherme e Matilda tiveram um casamento harmonioso e ele confiava nela para gerir suas terras e ela deu uma educação refinada para os padrões da época a todos os seus filhos e filhas. Você deixaria esse barraco fora do filme? Eu não deixaria.
O fato é que as mulheres tem quase ZERO importância no filme, como se não fossem atores políticos relevantes no período. Apesar da esposa de Osbern aparecer em várias cenas e ela ser de uma família importante, seu nome (Emma d'Ivry) não é dito e ela não tem falas. Só a viking inventada, e a maioria dos vikings-pagãos são morenos, tem nome, Hell. Ninguém mais. O filme não cumpre a Bechdel Rule. Ah, sim! O acampamento de 1066, tenta reproduzir de alguma forma a famosa Tapeçaria de Bayeux, um fantástico trabalho de bordado que conta a história da invasão da Inglaterra pelos normandos. Obra de Matilda e suas damas. Vocês podem vê-la animada aqui. É isso. Recomendo o filme com muitas ressalvas, se for para sugerir para alunos, há coisas bem melhores.
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