sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Comentando A Boa Esposa (França/2020): Quando so Ventos de 1968 começaram a mudar a vida das mulheres francesas

Um dos filmes que eu teria assistido no cinema se pudesse é La Bonne Épouse (A Boa Esposa), um filme francês que se passa às vésperas de maio de 1968.  Vi o trailer no Liberty, antes da pandemia fechar os cinemas.  Já tinha procurado o torrent e não tinha achado, desisti, mas o Frock Flicks me lembrou que ele existia por causa de um post sobre os filmes de época com Juliette Binoche.  Desta vez, encontrei.  Segue uma sinopse que parece ser a oficial do filme.

Manter uma casa e cumprir os deveres conjugais sem vacilar: é o que Paulette Van der Beck (Juliette Binoche) ensina com ardor na escola de donas de casa. Suas certezas vacilam quando ela se vê viúva e arruinada. É o retorno de seu primeiro amor ou o vento da liberdade de maio de 1968? E se a boa esposa se tornar uma mulher livre?

La Bonne Épouse se passa em uma escola doméstica e o filme abre com letreiramentos que falam tanto do momento político e social, afinal maio de 1968 começou antes, por assim dizer, ali foi quando a coisa explodiu, e sobre o fato de existirem em 1967, ano em que começa o filme mais de mil escolas do tipo na França.  A escola Van der Beck tem mais de cem anos, é dirigida sempre por homens e se destina a formar boas donas de casa, elas deveriam ser o esteio da família burguesa e absolutamente submissas aos seus maridos.  

Na Escola Van Der Beck currículo de dois anos envolvia somente assuntos ligados ao dia-a-dia das donas de casa: prendas domésticas, noções de puericultura, higiene corporal e princípios de economia. Elas devem conhecer as prendas domésticas e aprender a cuidar do dinheiro, mas ele é do marido; elas devem ter vaidade, só que pensando no interesse do chefe da família, elas devem permitir que o marido tenha acesso aos seus corpos, um incômodo necessário para ter filhos etc.  Ao chegarem na escola, elas devem aprender os sete pilares da boa esposa, daí, um dos títulos do filme em português ser O Manual da Boa Esposa.  

A escola Van Der Beck não é para moças ricas, ou bem nascidas, mas um caminho para credenciar moças pobres, ou de classe média baixa, a conseguir um bom casamento, mesmo assim, Paulette observa logo no início que elas têm cada vez menos alunas, pois os tempos estavam mudando. O perfil descrito é o das estudantes que acabam recebendo mais atenção no filme:  Annie Fuchs (Marie Zabukovec), que quer se comportar como uma moça moderna, é filha da dona do bar da vila local, viúva, ou mãe solteira, ela quer que a adolescente tenha melhores possibilidades que as suas, ainda que vá herdar o estabelecimento.  Corinne Schwartz (Pauline Briand), que tem escandalosos cabelos ruivos que são vistos como um perigo pela professora freira,  Irmã Marie-Thérese (Noémie Lvovsky), já tem um casamento mais ou menos acertado pelos pais que preferiram gastar seu dinheiro mantendo seu irmão na faculdade de Direito em Estrasburgo e não com uma boa educação para ela.  Já Yvette Ziegler (Lily Taieb) é tímida, desajeitada e pobre, além de vista como feia, o melhor torná-la pelo menos uma esposa prendada.  É sua única chance.

Agora, Albane Des-deux-Ponts (Anamaria Vartolomei) vem de uma família de posses e bem educada, daquelas que, segundo Fuchs, mandam suas filhas para a universidade.  Por que ela está na Escola Van Der Beck?  Des-deux-Ponts, que desde o primeiro dia questiona regras e diz que não quer casar, mas ir para Paris, está ali para ser corrigida de seus "desvios", é o que deduzimos ao longo do filme, pois ela cai de amores por Corinne Schwartz.  Genial, pegar uma moça lésbica e confiná-la em um ambiente só com mulheres para "curá-la".  Tinha tudo para funcionar mesmo... 

Perdida no interior da Alsácia e tendo como cidade mais importante e próxima Estrasburgo, as notícias de Paris chegam pelo rádio. O legal, e isso me fez lembrar de uns documentários que vi nos 50 anos do Maio de 1968 e que apontavam que ao longo do tempo tentaram esvaziar as demandas dos estudantes.  Eles e elas queriam sexo livre e drogas, na verdade, a agenda era muito mais ampla, direitos civis estavam em pauta, mas, também, o fim do imperialismo, a derrubada do capitalismo, o fim das ditaduras, mesmo as travestidas de democracia, daí a associação de Charles De Gaulle ao longo da película ao conservadorismo e ao modelo de sociedade que está sendo questionada pelos jovens estudantes em Paris.

Os ventos revolucionários já estão soprando e não será uma escola de boas esposas do interior da Alsácia que ficará de fora do processo.  A mesma rádio que fala de política traz questões sobre o prazer feminino e as meninas se questionam sobre o que seria o clitóris e a importância da masturbação par as mulheres conhecerem o próprio corpo, demonstrando o quão pobre era a educação sexual oferecida a elas.  É o rádio preenche as lacunas deixadas pela educação formal.  O filme traz muitas muitas discussões sobre papéis de gênero, hipocrisia social, repressão sexual e como as mulheres privadas de cidadania plena e de direitos básicos como um salário justo e aposentadoria ficavam vulneráveis.  

Para quem acredita que a França é a terra de modernidade e liberdade, esqueça!  Para as mulheres, desde o Código Napoleônico (1804), as leis eram feitas para favorecer os machos e manter as mulheres sob seu domínio.  Ser cidadã era ser mãe de um cidadão e seu lugar era no ambiente doméstico.  E vou citar um trecho da resenha do filme que saiu no Correio do Povo e que resumiu bem a lutas das mulheres francesas por direitos civis.  Qualquer coisa, coloco observações e links. 

"Na França, somente em 1944 elas conquistaram o direito ao voto [**E só votaram em 1945.  No Brasil, por exemplo, o direito ao voto veio no Código Eleitoral de 1932**]. E só em 1965 puderam praticar uma profissão e abrir uma conta bancária sem a permissão do marido, que até então era considerado o chefe da família. Em 1970, acontece a primeira reunião do MLF (Movimento de Liberdade Feminina) na Universidade de Vincennes. Dois anos depois, em 1972, no “Julgamento de Bobigny”, a advogada ativista Gisèle Halimi obtém a liberação de uma menor julgada por ter abortado após ser estuprada. A liberação do aborto aconteceu, em 1975, mesmo ano do estabelecimento de divórcio por consentimento mútuo.  A mãe passou a ter direito de adicionar seu nome no sobrenome do filho apenas em 1984. Em 1990 foi reconhecido que poderia haver estupro entre cônjuges e, dez anos depois, em 2000, a pílula do dia seguinte passou a estar disponível gratuitamente para menores nas farmácias. Em 2006 a idade legal para casamento de mulheres foi aumentada de 15 para 18."


Paulette, a protagonista, esposa do diretor da escola, sempre lecionou sem receber salário, assim como a irmão solteirona do sujeito, Gilberte (Yolande Moreau).  Gilberte ressalta que deveria ser grata ao irmão, porque ele lhe dava um teto, alimento e a protegia.  Na verdade, como a Paulette em processo de desconstrução irá frisar mais adiante, elas eram exploradas por ele, que se apropriava de seu trabalho gratuitamente.  Aliás, essa discussão é muito cara às feministas francesas desde pelo menos os anos 1970 e continua sendo uma questão até nossos dias, por isso, a aposentadoria para donas de casa se tornou viável, desde que haja contribuição, o que pode ser um obstáculo para muitas delas.

A protagonista se casou muito jovem com um homem bem mais velho por estar em situação vulnerável, ela havia perdido os pais, a Segunda Guerra ainda não havia terminado e foi levada a acreditas que o amado tinha morrido em um campo de prisioneiros nazista, ou no campo de batalha.  Reprimida sexualmente, presa em um casamento em que o marido controla quase tudo, ela se aperfeiçoou em formar moças que serão tão infelizes quanto ela mesma.  Mas eis que o sujeito morre, ela descobre coisas sobre ele.  O velho Van Der Beck era viciado em jogos, ele tinha fotos de mulheres nuas guardadas e, nós, a audiência, sabemos que ele espionava as alunas por buracos na parede e sempre que podia.  

Esse modelo de virtude masculina está endividado e a escola pode ser fechada a qualquer momento.  Sim, isso aqui é um clichê enorme.  Paulette se desespera e é aí que ela reencontra o grande amor da sua vida.  Ele é o gerente do banco, André Grunvald (Edouard Baer) nunca a esqueceu e quer reatar a história dos dois de onde ela foi interrompida. A partir desse momento, Paulette entra em crise para ressurgir como uma nova mulher, não a boa esposa, mas uma mulher livre.

Algumas cenas excelentes estão ligadas a este processo.  Paulette é obrigada a dirigir o carro do casal, algo que seu marido proibia, porque não era coisa de mulher, exceção para Irmã Marie-Thérese, que tinha lutado na Resistência Francesa durante a guerra e era respeitada por isso.  Ela descobre que pode ter uma conta bancária em seu nome e seu próprio talão de cheques.  Ela pode ter seu próprio dinheiro e precisa aprender a cuidar dele.  Paulette compra suas primeiras calças compridas, peça proibida mesmo nos pijamas das meninas da escola, e se sente muito estranha.  E, finalmente, Paulette tem seu primeiro orgasmo com o homem que ama.

Sei que o romance metido no meio do filme tinha algo de fantástico, mas eu gostei bastante dessa parte, foi uma das mais divertidas.  No início, achei que André era um cafajeste que iria tentar se aproveitar da fragilidade dela, mas descobrimos que ele estava encantado de tê-la reencontrado, que ele casou, teve filhos, enviuvou, mas nunca se recuperou da perda desse primeiro amor.  Ele escreveu tantas cartas.  Ele não as recebeu?  Na verdade, ela havia se mudado depois da morte dos pais.  Ela resiste, ele insiste, os dois se entendem, ele a pede em casamento.  Ela termina recusando, porque não quer ser escrava de outro homem.  Ele diz que é capaz de passar suas próprias camisas, costurar suas meias e que cozinha muito bem.  Ela exige que ele lhe explique em minúcias como se faz um strudel, o prato típico local.  Ele é aprovado.  São cenas bobas, mas é divertido.  A protagonista redescobre o amor e ao questionar todos os papéis de gênero que lhe foram impostos, acaba rejuvenescendo.

Enquanto essas coisas estão acontecendo, a escola é selecionada para a feia de prendas domésticas em Paris sob o patrocínio da primeira-dama, Yvonne de Gaulle.  Por conta disso, uma equipe de reportagem comandada pela jornalista Christiane Rougemont (Armelle), que reforça o tempo inteiro que as escolas domésticas são fundamentais para a manutenção da França e que representam a boa juventude, que é branca, casta, que não ouve rock n'roll etc., para mostrar como a Van Der Beck funciona bem.  No meio da visita, uma das meninas recebe uma carta comunicando que a família arrumou-lhe um casamento vantajoso com um homem 20 anos mais velho.  É a gota d'água para Paulette.

A diretora se tranca no quarto por dois dias e o sonho das meninas e das professoras de irem para Paris quase vai por água abaixo.  Esta escola é como o Titanic, ela repete.  É nessa parte que Paulette quase rejeita André e que Gilberte, que acreditava que o gerente do banco estava apaixonado por ela, descobre o romance dos dois.  Depois da tentativa de suicídio, eu temi por ela chorando e com uma tesoura na mão, mas o filme mostra que a experiência foi um ponto de virada para melhor na vida da personagem.  É uma das ótimas partes de um filme que, no geral, é bem frouxo na sua execução.

Enfim, A Boa Esposa tem defeitos, mas tem ótimas atuações e discussões super importantes.  Se tivesse que apontar problemas, começaria pela cabeleira da Irmã Marie-Thérese, que deveria ser tonsurada, ou pelo fato da escola, que é muito rígida, não obrigar as meninas, em especial Fuchs, a prenderem os cabelos.  Também, estranhei que não houvesse outra turma de meninas, afinal, o curso era de dois anos e o filme foca nas calouras, mas e as veteranas? O final, com uma homenagem aos filmes de Bollywood foi meio abrupta, eu diria.  A cantoria acontece do nada e termina às portas de uma Paris que está pegando fogo em maio de 1968.  A tal feira doméstica era a única forma de colocar as meninas lá.

La Bonne Épouse é um filme assumidamente feminista, cheio de sororidade, cheio de sororidade e que homenageia mulheres que fizeram diferença para que todas as outras pudessem ser mais livres e terem maiores possibilidades de escolha.  Ele mostra, também, o ocaso de um modelo de educação apra as mulheres e as mudanças que ocorriam no final dos anos 1960 e que, nem sempre, eram bem recebidas e incorporadas por toda a sociedade.  Além disso, La Bonne Épouse mostra o quão atrasada era a França que, aos olhos de muitos, é um centro difusor de progresso.  Para algumas coisas, sim, para as mulheres tudo foi ganho com muita luta.  

O filme, dirigido por um especialista em retratar mulheres, Martin Provost, permitiu que Juliette Binoche pudesse fazer uma das suas raras incursões pela comédia, ou nem tanto... Enfim, pensei que seria uma comédia rasgada do início ao fim, algo como o filme Branca como a Neve, mas é uma dramédia mesmo.   No final o filme, e isso é interessante, até a Irmã Marie-Thérese é arrastada para a revolução.  Há situações um tanto pesadas, mas que conseguem ser equilibradas com sequências mais leves.  E as discussões são muito boas.  Daria um sete para o filme no geral e recomendo bastante.


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