Tenho três resenhas para fazer hoje, ou duas, pelo menos. Esta aqui entrou em primeiro lugar, apesar de ter sido a última coisa que assisti, porque era necessário comentar mesmo. Ontem, a Globo colocou no ar ontem à noite um tributo às telenovelas, que completaram setenta anos. O programa abriu com Lima Duarte, que estava na primeira novela brasileira, Sua Vida Me Pertence, e fechou com a imortal Fernanda Montenegro. Para quem gosta de novela, quem acompanha os artistas que fizeram a história da nossa TV, emociona. Agora, foram somente 59 minutos, muito pouco para falar sobre um tema tão amplo. Foi muito bom e poderia ter sido muito melhor. Espero que façam outros episódios trazendo os autores, diretores, figurinistas, gente que estuda telenovela, que fala, ou falou, de telenovela em suas colunas de jornal, na rádio e na internet.
Primeira coisa, me surpreendeu a abertura incluir cenas de novelas da concorrentes atuais da Globo. Colocar cenas de Pantanal é tranquilo, a Manchete não existe mais, o remake está às portas, mas de Os Dez Mandamentos (Record) e Chiquititas (SBT), por exemplo, é algo que não esperava. Como grande ausência explicável pela postura atual da pessoa, temos Regina Duarte. Ela estava em várias e várias cenas mostradas ao longo do especial, mas não foi ouvida. Ela é uma das grandes damas da TV, é uma pena. Outra ausência, porque foi referenciada por Thaís Araújo, Adriana Esteves e Camila Pitanga, foi Malu Mader como musa da geração que é a minha, que via Fera Radical e Top Model. Houve uma menção à Giulia Gam como fonte de inspiração em Que Rei Sou Eu?, acho que de Camila Pitanga, ela poderia falar um minutinho. Senti falta de Lucélia Santos ser mencionada, mas Escrava Isaura apareceu umas duas vezes.
O Malu Mader foi citada quando se discutiu a diferença entre mocinha e heroína. A mocinha sofre, ela é vítima, e lá estava a espetacular Nívea Maria no palco. Já a heroína, ainda que sofra, é alguém que tem atitude e que inspira. O documentário se moveu a partir de eixos, mas em uma velocidade muito grande: maternidade, heroína x mocinha, vilões (*mas só se falou de vilãs*), outras culturas (*Tony Ramos e Antônio Fagundes no palco, foi lindo*), casais inesquecíveis (*Francisco Cuoco e Betty Farias revendo seus encontros*).
Nesse de casais inesquecíveis tivemos Mateus Solano e Thiago Fragoso conversando sobre o impacto de Nico e Félix, assim como Rodrigo Lombardi e Juliana Paes. Não foi um eixo temático, mas ficou evidente aqui a importância da novela ser uma obra aberta. Nico e Félix, Raj e Maya, só aconteceram, porque novela é OBRA ABERTA, assim como os mangás. A pandemia tem colocado na mesa a mudança no formato, mas este aspecto do folhetim é inegociável. Talvez, Nos Tempos do Imperador, que já comentei tantas vezes, fosse outra novela se ela estivesse sendo gravada conforme fosse ao ar. Poderia ser para pior, ou para melhor, mas seria diferente.
Quando tivemos a parte das vilãs, com Adriana Esteves, Renata Sorrah, Cláudia Raia, Patrícia Pilar, Glória Pires, discutiu-se quem seria a maior vilã, elas votaram em Nazaré, que eu amo, mas Sorrah apontou que seria Odete Roitman. A personagem de Sorrah era uma das grandes vítimas da vilã de Vale Tudo. Falou-se com tristeza, foi Adriana Esteves, o quanto Vale Tudo continua atual, ou seja, o Brasil mudou, mas retrocedeu, ou permaneceu estagnado em alguns aspectos. E, sim, eu concordo.
Salvo pela parte com Fagundes e Tony Ramos, o especial foi praticamente das mulheres, o que acaba sendo injusto de certa forma, passou-se batido pelos mocinhos e a mudança sofrida por eles. Vilões homens nem foram referenciados e não ter essa parte, que seria muito mais uma homenagem à atores já falecidos, me deixou chateada. Queria Leôncio.
O especial começou com a maternidade, chamado de eixo central da maioria das telenovelas. Mas foi somente elogio, não houve problematização. No fim das contas, a ficção reforça no imaginário coletivo que a maternidade é compulsória e destino de todas as mulheres "normais". Isso é péssimo para as todas nós. Houve a demonização da mãe má, com Lília Cabral e Fernanda Vasconcellos (*boa surpresa!*) no palco. Houve cenas de Xica da Silva e Thaís Araújo emocionada com seu papel como desbravadora, assim como Camila Pitanga. Aí, as atrizes começaram a louvar o par romântico de Da Cor do Pecado, que começa errada no título, como algo empoderador para as meninas negras, porque a mocinha negra ficou com o galã branco mais cobiçado da época, Reynaldo Gianecchini. Sinceramente? É a manutenção das hierarquias sociais de apropriação do corpo das mulheres.
Neste sentido, Gilberto Braga, recentemente falecido, fez muito mais colocando Marcos Paulo e Zezé Motta juntos em Corpo a Corpo. Ainda que se reproduzisse essa hierarquia, homem branco, mulher preta, havia outros elementos. Zezé não era considerada uma mulher bonita, ela era mais velha que ele na novela, ainda que não muito, e profissional bem sucedida. Ele era uma espécie de playboy tutelado pela família que se apaixona pela mulher errada. Naquele momento, 1984, aquilo foi uma bomba. Eu era criança e lembro de gente da minha família comentando "Como um homem bonito como esse fica com uma mulher tão feia!". O negra não era enunciado em minha casa, mas eu sei que o componente racismo estava lá. Thaís Araújo e Gianecchini são dois padrãozinho, modelo exportação, e muita água ja tinah rolado embaixo dessa ponte.
Da Cor do Pecado era uma novela que eu detestava, porque reforçava estereótipos de gênero e raça o tempo inteiro, me causava repulsa. O autor fez melhor em A Favorita, porque, ali, ele brincou com estereótipos consolidados no nosso imaginário social desde a Idade Média pelo menos. A morena precisa ser má, a loura, inocente. Lourice é signo de beleza, juventude e inocência, o burrice é recente e depende do cinema norte-americano, já a morena, a escura, a sombria, estava mais perto do que era carnal, sexual, era a sedutora, enfim. E ele bugou a cabeça das pessoas ali.
O que mais comentar? Foi com Fagundes e Tony Ramos que vimos novelas dubladas em várias línguas. Antônio Fagundes falou da emoção do seu dublador oficial na Venezuela, quando ele o encontrou pessoalmente. Tony Ramos falou de suas personagens de outras culturas e eu sou fá do ator pela sua competência em interpretar tipos assim.
Sim, sim, as atrizes comentaram que as vilãs são melhores que o vilões, porque em uma sociedade patriarcal se espera que as mulheres sejam sempre vítimas. Sim e não. O problema é que a mesma sociedade culpa as mulheres por todos os males, até a mais certinha das mulheres pode ser demonizada. Toda mulher, boa ou má para os padrões da sociedade, será chamada de puta em algum momento de sua vida. Mas, enfim, o especial Orgulho Além da Tela, que teve um formato diferente, foi melhor. Eu queria muito, muito, que este especial fosse maior e que mostrasse mais a história das novelas em outras emissoras, não imagens rápidas, mas um tiquinho de discussão mesmo. Faltou discutir censura e a profundar as discussões sobre a função social das telenovelas.
Concluindo, no final aparecem alguns depoimentos rápidos, muito mesmo, de atores, atrizes, anônimos, celebridades, enfim, e uma ideia é que a telenovela era um entretenimento que reunia as famílias e, antes disso, os vizinhos que partilhavam a TV de um deles. Eu vi essa da TV compartilhada quando estive na casa de um tio em Sergipe. Falando da minha história de ver novela junto, na adolescência houve um momento em que eu quase odiei novela, porque minha mãe obrigava a família a ficar na sala vendo TODAS as novelas.
Eu odiava particularmente as novelas rurais das nove, Benedito Ruy Barbosa, ou as tramas de Manoel Carlos, ou as longuíssimas da Manchete, como Ana Raio e Zé Trovão, ou não poder ver anime e tokusatsu na emissora citada, porque tínhamos que ver novela. O hábito, aliás, começou quanto meu avô veio morar conosco. Antes, mamãe deixava a gente ver os desenhos, ou os programas culturais da TVE. E, quando mamãe saia, meu irmão e eu tínhamos que ver e resumir para ela ou teríamos problemas. Já nessa época, mamãe boicotava as novelas de temática espírita, era um momento de TV para a gente, por assim dizer.
Hoje, as únicas que ainda veem novela na família são minha avó e eu. Meus pais e meu irmão abandonaram e, em grande medida, por motivações religiosas. Meus pais abrem exceção, normalmente, para as novelas de Record, meu irmão viu a reprise de Império, por causa da minha cunhada. Voltar a assistir novela exatamente com uma ruim... Enfim, desde o final da minha adolescência passei a reconhecer o valor cultural das telenovelas e ler sobre História da TV, então, eu não posso concordar com quem deprecia esse produto tão nacional, a telenovela, que como Tony Ramos e Fagundes disseram, não é soap opera.
O problema é que, e não me tomem por velha resmungona, a qualidade geral das novelas não é tão boa como já foi. Quando colocaram lado a lado remakes de algumas tramas deu uma tristeza no coração. E não falo de audiência, falo de qualidade mesmo. Novela ruim sempre existiu, novela rejeitada, também, mas a parte qualidade de texto e trama vêm declinando faz tempo. E não sei se o pós-pandemia vai fazer as coisas mudarem para melhor, não.
1 pessoas comentaram:
Preciosa análise, Valéria. Eu não vi.
Um pouco da minha experiência com novelas, na década dos anos 90, criança, acompanhei muita coisa com minha família e avós maternos, as que mais me marcaram foram Vamp (1991-1992), De Corpo e Alma (1992-1993), Mulheres de Areia (1993), Fera Ferida (1993-1994), A Viagem (1994), Pátria Minha (1994-1995), Quatro por Quatro (1994-1995), A Próxima Vítima (1995), Explode Coração (1995-1996), O Rei do Gado (1996), A Indomada (1997), Por Amor (1997-1998), Torre de Babel (1998-1999), Terra Nostra (1999-2000)... Algumas eu me lembro com mais força do que outras.
A partir dos anos 2000 ainda acompanhei bastante coisa, lembro de Esplendor (2000), O Clone (2001-2002), Mulheres Apaixonadas (2003), Celebridade (2003-2004), Senhora do Destino (2004-2005), Belíssima (2005-2006), Desejo Proibido (2007-2008), Cama de Gato (2009-2010).
Agora, a partir de 2010 é que o negócio foi ficando mais afunilado, Avenida Brasil (2012), Guerra dos Sexos (2012-2013), Velho Chico (2016) e Orgulho e Paixão (2018), sendo esta a última que acompanhei por inteiro (não estou conseguindo acompanhar Nos Tempos do Imperador, gostaria muito).
É fato que hoje eu dificilmente vou sentar pra assistir uma, e se for o caso é a dedo, mas é inegável que as telenovelas são um produto nacional de suma importância para a compreensão do que é discutido no Brasil e fora dele através do tempo. Como um espelho da sociedade. Quem tem uma opinião ácida sobre as mesmas, acredito que tenha preconceito ou sofra do complexo de vira-lata.
A Internet e a Pandemia trouxeram MUITOS desafios ao formato, e ainda está em curso. A qualidade nos roteiros e direção, hoje, deixam muito a desejar ao meu ver.
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