Eu estava passeando lá pelo Instagram e parei para ler um post de uma página que se intitula RadFem. Antes de seguir, escrevo que tenho muitos problemas com esses rótulos que foram popularizados pela internet, como LibFem e RadFem, porque são ostentados muitas vezes com orgulho e sem muita reflexão teórica, ou usados para ofender a outra parte por não comungar de PARTE, esta é o pior aspecto das coisas, das nossas premissas. Talvez não tivéssemos boa parte das reflexões feministas que temos hoje, sem o trabalho árduo das feministas radicais nos anos 1970, mulheres que viam do patriarcado a RAIZ, por isso radical, de todos os problemas. Patriarcado, o capitalismo era atacado por muitas delas, mas vinha de arrasto. Repito, PATRIARCADO. Esta luta contra o patriarcado une as mulheres, a contra o capitalismo, ou por um tipo X ou Y de organização das forças produtivas e dos meios de produção, nem tanto.
Esta mesma página RadFem, ou outra muito próxima no conteúdo, já utilizou a expressão “ideologia de gênero”, que é criação da extrema direita católica, algo sem fundamentação teórica alguma, ou materialidade prática, e que se presta às agendas reacionárias. Aliás, se existe ideologia de gênero, ela é praticada exatamente por esses grupos. Obviamente, elas utilizaram para atacar as pessoas trans, porque o ataque não é somente à militância barulhenta que pode, sim, passar dos limites como qualquer outra, mas é aquilo, o inimigo do meu inimigo não é meu amigo, se o próximo nome na lista de extermínio é o meu, mas não serei eu a tentar colocar juízo na cabeça de ninguém.
Voltando. Muito bem, vocês devem lembrar da senhorinha bolso-olavista que fez um vídeo irado contra um banheiro multigênero de uma loja do McDonald’s em Bauru (SP). O que é um banheiro multigênero?[1] É como o banheiro da sua casa, onde qualquer pessoa pode utilizar sem problema. A diferença é que este da lanchonete do palhaço é uma cabine individual, talvez com um lavatório, e, ao sair, há várias pias que já dão para o salão. Vários restaurantes têm banheiros assim, especialmente, quando são pequenos e, como o COVID-19, muita gente passa pelas pias para higienizar às mãos antes de seguir para a área de pedidos. É comum. É normal. Existe faz tempo, nada tem a ver com militância alguma. Obviamente, o alarme da senhorinha fez com que a proibição de banheiros multigênero, ou unissex, fez com que a proibição desse tipo de sanitário entrasse na pauta de várias câmaras municipais no Brasil.
Aliás, a casa para onde me mudei era de um arquiteto e tem uma espécie de escritório no térreo com um banheiro anexo, na porta, há uma plaquinha rosa e azul com uma bonequinha e um bonequinho lado-à-lado. Quem se insurge contra essas coisas, muito provavelmente, pensa em sexo o tempo inteiro, ou tem alguma agenda não tão secreta de perseguição de certos grupos. Que fique claro, e não que eu seja contra, mas não estou discutindo isso, que não se trata de banheiros multigênero em shoppings, escolas e outros espaços, onde não são cabines individuais, mas aquela estrutura em separado com vários boxes, lavatório, espelho e, às vezes, fraldário.
O que a página que estou criticando fez foi tomar uma luta histórica das mulheres, a da sua percepção como parte do mundo público, como justificativa para que banheiros multigênero não existam. Houve um tempo em que mulheres não tinham banheiros para si em algumas instituições como os Parlamentos, as Universidades, as Academias Militares, até em grandes eventos públicos, como exposições, era comum não haver banheiros para mulheres no século XIX e início do XX. A mensagem era que elas não deveriam estar ali. Li um relato de uma das primeiras alunas de Teologia em Harvard (*se não me engano, não tenho o livro em mãos*), no qual ela relatava que o primeiro e pequeno grupo de mulheres que entrou na instituição no final dos anos 1960 tinha que sair da biblioteca e se deslocar para muito longe, onde havia um banheiro feminino, disponível. Era uma forma sutil de dizer que elas não pertenciam aquele espaço. Negar um banheiro é uma das formas mais básicas de exclusão.
Ter que se deslocar para ir ao banheiro, ou não poder ir ao banheiro, ter que esperar horas para se aliviar, pode ser um grande fator de desestimulo a sua permanência em um determinado espaço, normalmente, de poder e de saber. Se você viu Estrelas Além do Tempo, as funcionárias negras da NASA também tinham que se deslocar para banheiros distantes, pois eles eram segregados e isso impactava o seu rendimento, afinal, perdiam no mínimo 15 minutos indo e 15 minutos voltando. Hoje, este tipo de coisa ainda é uma rotina na vida de muitas pessoas trans, especialmente, as mulheres.
Manter banheiros segregados por gênero em nossos dias, quando se trata de cabines individuais que saem direto no salão principal, não se trata de garantir a segurança das mulheres cis, ou a sua luta por visibilidade, mas, sim, de uma forma de excluir as pessoas trans, porque é disso que se trata, não se enganem, quando vemos esse tipo de argumento. Certamente ainda há lugares nos quais os banheiros femininos são escassos, porque a presença das mulheres é pequena, ou espera-se que seja inexistente. As academias militares superiores no Brasil usaram por anos o argumento de que era preciso adaptar as suas instalações para que pudessem receber mulheres. Anos!
Em casos assim, cabe insistir na necessidade de que as mulheres tenham acesso a algo que é fundamental para nosso bem-estar, mas não me venham com essa história de que é preciso que tenhamos banheiros separados, ou as mulheres serão invisíveis, isso é uma falácia e meio que cospe na luta de gerações de mulheres para que pudessem ter acesso ao mercado de trabalho formal, instituições de ensino e de poder. Ter um banheiro comum para brancos e negros, ter um banheiro feminino acessível para o seu uso no seu local de trabalho, estudo, lazer foi um avanço enorme e fruto de muitas lutas.
Outra coisa, mulheres que se afirmam feministas, e eu não coloco em questão se o são, ou não, deveriam ter muito cuidado ao abraçar essas pautas reacionárias de terror moral sem pensar sobre os males. Vale a pena? É justo? Mais ainda, você não tem visão de que o próximo alvo será você? E deixo a pergunta, na sua casa os banheiros são segregados? Se não são, você não tem o direito de vir com essa conversa de que os banheiros multigênero são absurdos.
[1]A rigor, usei multigênero por ser o termo que estava nas matérias, mas pensando bem, é multigênero mesmo, pois não estamos falando de sexo biológico, mas de identidade de gênero, como a pessoa se identifica. Sexo biológico posto de forma binária, como nas plaquinhas, não abarca tudo, não contempla, por exemplo, pessoas intersexo, aliás, as invisibiliza. Gênero é papel social atribuído à mulheres e homens em uma dada sociedade, podemos chamar de sexo social, também.
4 pessoas comentaram:
A senhorinha de Bauru surtou com "McDonalds comunista"! Se tratavam de cabines individuais então você não iria dividir o banheiro com ninguém.
Eu já estive num bar onde havia um terceiro banheiro, o unissex. Sou mais inclinada a essa designação do que multigênero porque a gente tá falando de sexo, não gênero. Acredito que os banheiros unissex acabariam com essas questões do tipo "we don't care".
Eu suspeito de qualquer grupo que se autointitule RadFem porque esse termo é pejorativo (assim como TERF), o correto é dizer/escrever o nome por inteiro, FEMINISTAS RADICAIS.
"Manter banheiros segregados por gênero em nossos dias, quando se trata de cabines individuais que saem direto no salão principal, não se trata de garantir a segurança das mulheres cis, ou a sua luta por visibilidade, mas, sim, de uma forma de excluir as pessoas trans, porque é disso que se trata, não se enganem, quando vemos esse tipo de argumento."
Não sei se entendi bem o seu ponto Valéria, mas você é contra as cabines individuais? Acredito que o bom seria haver três tipos de cabines, mulher, homem e unissex ou aquele tipo que aparece no vídeo que a senhorinha descompensada de Bauru filmou, cabines individuais para ambos os sexos. Eu preciso discordar do termo CIS porque eu não sou subgênero do meu sexo. Acho MUITO problemática essa expressão.
"E deixo a pergunta, na sua casa os banheiros são segregados? Se não são, você não tem o direito de vir com essa conversa de que os banheiros multigênero são absurdos."
Certo que não são, mas no espaço público as coisas mudam um pouco de figura no caso quando não são cabines individuais, por isso os banheiros unissex precisam ser popularizados em todos os tipos de espaço.
Nesse trecho "quando se trata de cabines individuais que saem direto no salão principal" ela quis dizer que é a favor dos banheiros multisexo ou unissex e que mesmo com as cabines individuais, ainda sim quem é preconceituoso reclama.
“Eu já estive num bar onde havia um terceiro banheiro, o unissex. Sou mais inclinada a essa designação do que multigênero porque a gente tá falando de sexo, não gênero.”
R.: A rigor, usei multigênero por ser o que estava nas matérias, mas pensando bem, é multigênero mesmo, pois não estamos falando de sexo biológico, mas de identidade de gênero, como a pessoa se identifica. Sexo biológico posto de forma binária, como nas plaquinhas, não abarca tudo, não contempla, por exemplo, pessoas intersexo, aliás, as invisibiliza. Gênero é papel social atribuído à mulheres e homens em uma dada sociedade, podemos chamar de sexo social, também.
“Eu suspeito de qualquer grupo que se autointitule RadFem porque esse termo é pejorativo (assim como TERF), o correto é dizer/escrever o nome por inteiro, FEMINISTAS RADICAIS.”
R.: Infelizmente, eu queria acreditar que ninguém usaria termos pejorativos para se autoidentificar, mas já vi várias pessoas fazendo isso. A questão é se apropriar e subverter, o mesmo que se fez com a “Marcha das Vadias”. Não é fenômeno novo.
“Não sei se entendi bem o seu ponto Valéria, mas você é contra as cabines individuais?”
R.: O Júlio já esclareceu as coisas. Eu sou a favor, aliás, dão menos dor de cabeça e evitam filas nos banheiros femininos, enquanto os masculinos estão vazios.
“Eu preciso discordar do termo CIS porque eu não sou subgênero do meu sexo. Acho MUITO problemática essa expressão.”
R.: Não vejo problemas com ela, não me ofende em absoluto, mas usa quem quer e explica os seus motivos de forma razoável, isto é, sem depreciar ou tentar apagar o/a outro/a.
“"E deixo a pergunta, na sua casa os banheiros são segregados? Se não são, você não tem o direito de vir com essa conversa de que os banheiros multigênero são absurdos." Certo que não são, mas no espaço público as coisas mudam um pouco de figura no caso quando não são cabines individuais, por isso os banheiros unissex precisam ser popularizados em todos os tipos de espaço.”
R.: Não mudam, não. Está cheio de consultório médico, porto de gasolina, bar e vários outros lugares nos quais há um banheiro que se presta a todo mundo, porque, afinal, as pessoas devem usá-los para suas atividades fisiológicas. O mais importante seria garantir que todos os sanitários seriam adaptados para cadeirantes. Aliás, está cheio de sanitário para cadeirantes sem marcação de gênero, pois se parte do princípio que são poucas pessoas, ou, enfim, que cadeirantes não são nem homens, nem mulheres.
"A rigor, usei multigênero por ser o que estava nas matérias, mas pensando bem, é multigênero mesmo, pois não estamos falando de sexo biológico, mas de identidade de gênero, como a pessoa se identifica. Sexo biológico posto de forma binária, como nas plaquinhas, não abarca tudo, não contempla, por exemplo, pessoas intersexo, aliás, as invisibiliza. Gênero é papel social atribuído à mulheres e homens em uma dada sociedade, podemos chamar de sexo social, também."
-Aquelas plaquinhas dos bonequinhos H/M são simplistas, mas como faria uma pessoa analfabeta se não houvesse a linguagem gráfica? Sobre pessoas intersexo, eu tenho parca leitura sobre o tema, mas as que optam por fazer cirurgia depois de adultas e ficam satisfeitas, talvez consigam lidar com essa condição de uma maneira que lhes tragam menos sofrimento, e assim poder fazer escolhas. O debate sobre sexo biológico x identidade de gênero implica outros pontos muito relevantes como políticas públicas baseadas no sexo, eu não conseguirei me estender aqui.
"Eu sou a favor, aliás, dão menos dor de cabeça e evitam filas nos banheiros femininos, enquanto os masculinos estão vazios."
-Sim, eu assisti ao vídeo, achei bem interessante e fez muito sentido a maneira como foi apresentado.
"Não vejo problemas com ela, não me ofende em absoluto, mas usa quem quer e explica os seus motivos de forma razoável, isto é, sem depreciar ou tentar apagar o/a outro/a."
-Concordo que usa quem quer, eu não uso, e entre uma das razões para não usar está a expressão "privilégio cis".
"Não mudam, não. Está cheio de consultório médico, porto de gasolina, bar e vários outros lugares nos quais há um banheiro que se presta a todo mundo, porque, afinal, as pessoas devem usá-los para suas atividades fisiológicas. O mais importante seria garantir que todos os sanitários seriam adaptados para cadeirantes. Aliás, está cheio de sanitário para cadeirantes sem marcação de gênero, pois se parte do princípio que são poucas pessoas, ou, enfim, que cadeirantes não são nem homens, nem mulheres."
-Suas duas primeiras linhas não tenho razão para me opor, sou simplesmente a favor de que cabines como essas se popularizem e que de preferência sejam adaptadas para cadeirantes. Já encontrei placas em cabines com as três referências M/H/Cadeirante, então isso responde quanto se essas pessoas seriam homens ou mulheres. Aliás, é justamente esse tipo de sanitário que englobaria todos e todas, e se tivesse também um fraldário adaptado melhor ainda.
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