Assisti ao capítulo de ontem de Nos Tempos do Imperador, novela das seis da Globo, e algo que estava engasgado, precisa virar texto, enquanto ainda estamos no mês da Consciência Negra. Muito bem, esta semana, Zayla (Heslaine Vieira), a vilã negra da trama, decidiu se oferecer ao grande vilão, Tonico (Alexandre Nero), para conseguir levar adiante sua vingança contra tudo e todos, mas, especialmente, os mocinhos titulares da novela, Pilar (Gabriela Medvedovski) e Samuel (Michel Gomes). Zayla foi acusada injustamente de roubo e de ter tentado matar a patroa (*quem viu o capítulo sabe que foi um acidente*), seu pai nunca a visitou na prisão, de volta a sua comunidade, foi rejeitada pelos vizinhos e, de novo, pelo próprio pai, D. Olú (Rogério Brito). Veja, ela não está sendo recriminada tanto pelo que fez, chantagear Pilar e ameaçar entregar o ex-noivo, Samuel, para a morte certa nas mãos de Tonico, mas pelo que não fez, roubo e tentativa de homicídio. No meu texto sobre as personagens negras da novela, escrevi que os autores a estão construindo como louca, no entanto, dentro da trama, ela é mostrada como a que nunca prestou.
Vamos lá, Zayla tem mais ou menos a idade de Isabel (Giulia Gayoso), que tem mais ou menos a idade de Dolores (Daphne Bozaski), quando esta última se casou com Tonico, em dada cena ela disse "mas ele tem idade para ser meu pai". Talvez não chegue a tanto, mas, sim, ele é bem mais velho que ela. A novela começou em 1856-57. Sabemos a idade de Isabel (Any Maia), 10 anos, e de Leopoldina (Melissa Nóbrega), 9 anos. Não sabemos as idades de Zayla e de Dolores (Julia Freitas), mas elas brincavam juntas. Zayla não poderia ter mais de 11, 12 anos (*Pilar diz em uma cena que ela tem 12, mas poderia ser chute da mocinha*). A novela teve um salto de tempo de 8 anos. Todas elas são adolescentes. Logo, Tonico é igualmente muito mais velho que Zayla (Alana Cabral), só que uma coisa é uma mocinha branca ser obrigada a se deitar com o vilão, outra coisa é uma moça negra na mesma situação.
Ainda que os autores considerem o vilão bater na esposa muito mais violento e mau exemplo do que estupro conjugal (*nenhum dos dois era propriamente crime no século XIX*), uma desperta nossa pena, preocupação, horror, no caso da outra é a confirmação de que ela não presta. Nunca prestou. O próprio pai de Zayla diz isso e acusa a esposa, POR SER MULHER, de acobertar seus erros. Se a memória de quem assiste a novela não está embotada, vocês devem lembrar que foi Mãe Cândida (Dani Ornellas) quem notou a obsessão de sua filha, ainda uma menina, por Samuel e recomendou que o moço se mudasse da casa deles para outro lugar. D. Olú sempre foi cego, surdo e mudo para o que Zayla fazia.
A atitude de D. Olú poderia ser compreensível se a novela fosse estritamente histórica e não dialogasse intensamente com o que pensamos hoje. Expulsa de casa, qual seria o destino de uma adolescente negra que cresceu protegida pelos pais das durezas do mundo? No mínimo, a prostituição, mas poderia ser enganada e transformada ilegalmente em escravizada, por exemplo. E não aparece ninguém, porque os autores decidiram que assim deve ser, para estender-lhe a mão. Nem mesmo à mãe é permitido burlar o marido e tentar conseguir um abrigo para a filha. Mas não fica somente nisso, Pilar, a mocinha oficial e branca da trama, vem com a mesma história: Zayla nunca prestou. E o roteiro faz questão de reforçar isso. Pilar seria, por ser médica, a primeira pessoa capacitada a apontar que, talvez, somente talvez, houvesse algum problema psiquiátrico com a moça, mas ela precisa ser má.
Para Zayla, que é tão jovem quanto Dolores, que foi usada por um homem adulto (Samuel) para esquecer outra mulher (porque foi, sim) e deixada de lado por ele, não há redenção no horizonte. Aliás, ela fica mesmo é jogada no mundo e com muito ódio no coração. Curiosamente, da mesma forma que esquecem que Samuel era homem feito no início da novela, esquecem, que Nélio (João Pedro Zappa) também era. No entanto, e gosto muito do casal Nélio/Dolores, isso parece ter sido apagado por estratégia dos autores. É como se, em um passe de mágica, o faz tudo de Tonico tivesse se transformado em um adolescente. E, sim, eu compro que Dolores é o primeiro amor de Nélio, já desconfiava que eles poderiam ficar juntos lá na primeira fase, porque de todas as personagens, ele era o único que mostrava gentileza para com ela, mas ele não é um menino.
Nélio certamente era mais jovem que Tonico, que se formou após muitos anos na faculdade. Pilar comentou isso no início da novela, que ele deveria ter reprovado muito. Aliás, por isso ela ainda estava solteira, esperando o retorno do noivo contratado pelo pai. Suponhamos que Nélio, assim como Castro Alves, o poeta, fosse muito capacitado e tivesse entrado na faculdade com 15 para 16 anos. Ele teria, no mínimo, uns 21, 22 anos no início da novela, porque Tonico ainda demorou um pouco para voltar ao Recôncavo. Logo, ele era homem feito e colaborador do vilão, seu cúmplice, como ele mesmo disse em um capítulo desta semana. Porém, nessa segunda fase, recebe complacência de adolescente. Para ele, a redenção já veio, assim como o acolhimento do público.
E eu quero Nélio e Dolores juntos, eu gosto da personagem, eu geralmente compro histórias de redenção, PORÉM para a adolescente negra não temos a mesma boa vontade por parte dos autores. Ela vai usar seu corpo para (tentar) controlar o vilão. Sabe a velha leitura de Chica da Silva? Pois é, só que é a Chica do mal. Isso cheira a mofo, mas, pior ainda, cheira à racismo e misoginia. E, para quem não entendeu por qual motivo compramos que a adolescente Zayla nunca prestou, o link para um estudo que aponta que no imaginário social meninas negras são vistas como menos inocentes e mais sexualizadas.
Zayla é apresentada como sedutora desde antes da sua queda. Lembram que ela tentou levar Samuel para cama antes do casamento? E isso é anterior ao boa noite Cinderela que deu errado. Desde menina, ela estava disposta a tudo para conseguir o homem por quem se apaixonou. Meninas podem se apaixonar por adultos? Podem. Cabe ao adulto alvo do afeto e aos responsáveis pela criança lidarem de forma responsável com a questão que não é, em hipótese alguma, estimular um possível relacionamento entre eles. Por isso, mesmo, Mãe Cândida alertou Samuel, enquanto o marido nada percebia. Zayla, como Isabel, Leopoldina e Dolores, brincava de bonecas na primeira fase da trama, mas já era capaz de saltos muito maiores, afinal, ela não era branca e meninas negras "amadurecem" mais cedo, assim como as meninas em geral amadurecem antes dos meninos. Sim, é disso que se trata este texto.
Terminando, já que falei em Chica da Silva, recentemente veio à tona uma experiência de Taís Araújo quando fazia Chica da Silva na Manchete. Eu vi a novela Xica da Silva (*na novela era com "x", mas a personagem histórica se escrevia com "c" mesmo*) na primeira exibição, assim como boa parte das tramas da emissora. Sexo e nudez eram coisas recorrentes em todas elas. Quando Taís Araújo foi selecionada para a trama, ela era menor de idade, suas primeiras cenas de nudez e de sexo aconteceram depois dos 18 anos completos e esse fato foi muito alardeada nos jornais da época. Pois bem, ela disse em entrevista que recusou fazer uma cena de sexo anal com o parceiro em cena, o ator Victor Vagner. Ele, o contratador de diamantes, pedia uma prova de amor, ela recusava. A atriz adolescente se negou a fazer a cena polêmica (*uma prática sexual consensual não deveria ser polêmica, mas a coisa evidentemente não era consensual.*) e isso irritou tanto o diretor, quando o autor.
Se bem me lembro, houve uma cena de sexo anal em Dona Beija envolvendo Antônio (Gracindo Júnior) e a esposa, Aninha (Bia Seidl), antes do casamento, e foi nesse mesmo esquema, ele exigiu uma prova de amor, ela cedeu. Como recompensa por ter cedido, passou a ser vista como menos digna aos olhos dele, que era apaixonado pela personagem título da novela (Maitê Proença). Você encontraria esse tipo de coisa em qualquer catecismo de Carlos Zéfiro, que foi um dos poucos mecanismos de "educação sexual" para muitos garotos nos anos 1950 e 1960, trata-se do mais básico das fantasias machistas brasileiras, nada de novo no front, salvo, claro, estar na TV aberta, porque o fim da lei de censura abriu espaço para muita coisa que, antes, não poderia ser mostrada, ainda que a coisa já viesse sendo afrouxada desde o fim da Ditadura (1964-1985).
Enfim, tanto o diretor da novela Walter Avancini, quanto o autor, Walcyr Carrasco, que tinha contrato de exclusividade com o SBT e escrevia sob pseudônimo de Adamo Angel, a recriminaram e isso foi fartamente noticiado à época. E Carrasco teve a cara de pau de negar, ou seja, acusou a atriz de MENTIROSA. Na época, quiseram fazer crer que a cena de sexo anal faria de Chica da Silva uma mocinha feminista, como se para ser feminista uma mulher precisasse dar "provas de amor" a um homem. O fato é que a demonstração de personalidade da jovem atriz foi interpretada como estratégia para chamar a atenção da Globo, (*falso*) pudor e incapacidade de interpretar uma personagem da estatura de Chica da Silva, uma mulher livre. Mulher livre dentro da leitura tradicional de gênero é aquela que faz na cama o que os homens querem, não o que ela deseja fazer.
Quem lê sobre Chica da Silva, e pode ser o estudo clássico da historiadora Júnia Ferreira Furtado (*que, agora, estuda a trajetória de um dos filhos de Chica com o contratador*), ou o livro da jornalista (negra) Joyce Ribeiro, sabe que a personagem fez o possível para ser uma senhora como todas as outras. Ela era uma esposa exemplar, em 15 anos de casamento, pariu 13 filhos, foi administradora eficiente dos bens do marido em benefício de suas crianças, teve larga escravaria e alforriou alguns deles ao morrer, como todo bom senhor costumava fazer.
Essa ideia de que Chica da Silva seria a sedutora, sexualizada de todas as formas é tanto uma fantasia masculina, quanto o resultado dessa ideia de que mulheres negras são mais afeitas ao sexo do que as brancas. E, vejam, esse fantasma ronda Nos Tempos do Imperador. Podemos torcer por Dolores, para que Tonico não a perturbem, mas não às custas da degradação de Zayla, porque, bem, ela é negra e o que você poderia esperar? É realmente muito triste o que estão fazendo com a personagem.
1 pessoas comentaram:
Primeiro, esse texto conseguiu expressar uma indignação de semanas. Lê-lo após o capítulo de hoje lavou essa frustração que eu não conseguia expressar.
A novela, na minha opinião, é péssima em relação a representação feminina e o que é questionável com personagens brancas torna-se simplesmente intragável, para dizer o mínimo, com personagens negras. Acho péssimo os autores não explicitarem que a Condessa era preceptora para sustentar os próprios gastos, já que casou com um homem que tinha só título e os engenhos de cana de açúcar já estavam em declínio. Acho péssimo fazerem uma mulher em um casamento arranjado e político incapaz de não se apaixonar pelo cara e agir como uma sofrida desilusional. Acho péssimo colocarem uma mulher em situação de violência para servir de redenção para um homem mais velho do que ela, um homem que a viu criança. Por quanto tempo a TV vai seguir expondo mulheres a relacionamentos abusivos para serem salvas por homens?
Enfim, é tudo péssimo, mas o que é feito com Zayla e Lupita é desnecessário e expõe o grande elefante na sala que é a pauta racial em novelas. Não é um caso isolado, é uma repetição de processos e é espantoso que autores que fizeram aquele núcleo indígena em Novo Mundo tenham espaço para mais uma novela. Espantoso como ninguém questiona racismo cordial sendo exibido na TV aberta enquanto designam as mesmas funções de sempre para personagens negras. Representação sem responsabilidade não é algo para se orgulhar.
Parabéns pelo ótimo texto e perdão pelo desabafo.
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