Queria ter escrito este texto ontem e outro comentando vários aspectos da novela hoje, só que estava muito cansada e precisava ler para ter condições de produzir um texto decente. Muito bem, quando colocaram a Lupita de Nos Tempos do Imperador como senhora de escravas nessa segunda fase da novela, comentei no Twitter que eu nunca tinha visto nada semelhante, porque é sabido que escravos são propriedade e, pela lei, não podiam ter propriedades, mas que não era especialista em escravidão, logo, teria que pesquisar. Foi o que eu fiz. Demorei para encontrar alguma coisa, mas acabei chegando ao que provavelmente serviu de inspiração para os autores, o emblemático caso do escravizado Manoel Joaquim Ricardo, estudado pelo historiador especialista em escravidão João José Reis, da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Para quem não acompanha a novela das seis da Globo, uma explicação sobre quem é Lupita. A personagem da excelente Roberta Rodrigues era escrava de ganho, ela vende cocadas na rua e tem que dar parte dos seus ganhos ao seu senhor, um dos vilões, o policial, agora, delegado, Borges (Danilo Dal Farra). O escravo de ganho era tipicamente urbano e normalmente não residia com seu dono ou dona, além disso, a depender da relação entre eles, poderia usufruir de grandes liberdades. Inclusive, para alugar outros escravos e, agora sei, comprá-los, também. A moça é uma personagem dúbia, trambiqueira mesmo, ela inclusive teve uma diálogo excelente com outra personagem uma vez "A Clemência é honesta?". Veio a resposta positiva "Ah, coitada!".
Lupita, que foi escrava da mãe de Borges que, segundo ela, que não é bem uma fonte confiável, a tratava como filha. Foi sua senhora quem a ensinou a ler e escrever. Ela plantada por seu dono na Pequena África, onde reside o núcleo negro da trama, como espiã, mas as coisas não se encaminham muito bem. Ela é descoberta e começa a fazer um jogo duplo no qual parece desejar ajudar seus irmãos de cor contra seu dono cruel. Aliás, ela já juntou dinheiro para comprar sua alforria, mas ele se recusa a lhe vender sua liberdade. "Você vai morrer minha escrava!", ele afirmou em um dado capítulo. Tudo isso era comum no mundo escravocrata brasileiro do século XIX, escravos de ganho poderiam juntar dinheiro para a sua alforria, mas a decisão de aceitar e o preço tudo isso estava nas mãos do patrão.
Com a virada da trama, Lupita se tornou amante de Batista (Ernani Moraes), o fazendeiro caipira do café, juntou muito dinheiro, continua sem a sua alforria, mas, agora, parece ser aliada de seu senhor de quem compra escravizadas e as coloca ao ganho. Em dado capítulo, a escravizada Lupita, antes tão desejosa de sua liberdade, exclama "Deus me livre do fim da escravidão!". Afinal, se a abolição viesse, ela poderia perder o seu investimento, não é mesmo? De vítima de um senhor obsessivo, mas que não demonstrou nenhum impulso sexual por ela em momento algum, Lupita se torna parceira dele no negócio de compra e venda de escravizados, além de ser dona de mulheres escravizadas como ela. Aliás, a cena em que a personagem examina os dentes de uma mulher que pretende adquirir, foi uma das mais repulsivas da novela até então. Casou-me um grande desconforto..
Mas e aí? Escravos podiam ter escravos?
A resposta é complexa e teria que responder com "sim" e "não". No fim das contas, eu estava certa e, ao mesmo tempo, errada. Por lei, escravos não podiam ter propriedades, o instituto do direito romano chamado "servus vicarius" (servo substituto), que seria o escravo de um escravizado, não existia na legislação brasileira, ou portuguesa, ou espanhola (filipina, que herdamos). O problema é que existia na prática. Essa informação eu não tinha, não estudei esses casos na época da faculdade, até porque imagino que as pesquisas sobre isso não estavam difundidas nos anos 1990, ganharam corpo depois mesmo, e por não ser escravidão a minha especialidade.
Mas o fato é que desde o século XVII há fontes que mostram a existência desse fenômeno no Brasil. Gente escravizada que tinha escravos e de origens diferentes. Uma mãe liberta poderia comprar escravos e, ao morrer, deixá-los para seus filhos escravizados. Um escravizado poderia adquirir uma pessoa para tentar barganhar sua liberdade com seu senhor. Um escravizado poderia comprar pessoas, em especial, nos momentos de aumento do tráfico e queda dos preços, como entre 1827 (*quando D. Pedro I se comprometeu em acabar com o tráfico*) e 1831 (*ano da Lei Feijó, que proibiu o tráfico*), ou quando os Conservadores retornaram ao poder, no final da Regência (1837-1840) e pensaram em suspender a lei que abolia o tráfico e que não era cumprida como devia.
Agora, uma informação fundamental é que um escravizado, por mais empreendedor que fosse, só poderia ser dono de qualquer coisa, caso o seu senhor, ou senhora, permitisse. E vou citar um trecho do artigo de João José Reis sobre Manoel Joaquim Ricardo chamado "De escravo a rico liberto: a história do africano Manoel Joaquim Ricardo na. Bahia oitocentista":
Nenhuma lei na América portuguesa ou no Brasil imperial garantia a posse de quaisquer bens ou pecúlio pelo escravo, o que é bem conhecido, mas não custa relembrar. A tradição legal romana, que permitia a escravos possuir escravos, não foi incorporada à legislação portuguesa (código filipino em particular), ainda em vigor no Brasil independente no que concernia a propriedade escravista. Embora o pecúlio tivesse se tornado parte do direito costumeiro no Brasil, e desde o período colonial, conforme o jurista Perdigão Malheiros reconheceu no seu famoso tratado jurídico (1867), com relação especificamente à instituição do servus vicarius, ele escreveu: “nenhuma aplicação tem tido no Brasil”. Perdigão estava errado. Atente-se que os senhores tinham direito a impedir que seus escravos adquirissem outros cativos ou, uma vez permitido, expropriá-los. Isso, aliás, valia para qualquer propriedade: imóveis, colheitas, gado, dinheiro, escravos. Portanto, posso razoavelmente concluir que o reconhecimento da posse de escravos por escravos dependia de negociação direta entre estes e seus senhores. Em troca, os senhores livres exigiam lealdade, obediência e trabalho (ou seu eufemismo, “bons serviços”) de seus escravos-senhores. Isso valia para beneditinos, Guedes de Brito ou senhores comuns como os de Salvador aqui apresentados. Beneficiado por essa doutrina, Manoel Joaquim Ricardo parecia não rezar por ela. Ainda não descobri escravo seu que possuísse escravo.
O caso dos beneditinos citado por Reis é particularmente interessante. A Ordem Beneditina era rica senhora de escravos no Brasil e mantinha rigorosos registros de suas posses. Tendo estudado a origem da Ordem de São Bento, isso não me surpreende em nada. Reis cita o caso de um feitor mestiço e escravizado que tinha escravos e tentou, em vão, comprar sua liberdade. Ele tinha roças, família, era um escravizado com privilégios, porque é preciso deixar claro que os escravos não eram iguais, mas TODOS eram dependentes dos seus senhores. Pois é, os monges não lhe deram a liberdade, não essa que ele queria. Muitas vezes, os senhores barganhavam a fidelidade de seus escravizados permitindo-lhes ter propriedades, roças, famílias que não seriam vendidas e separadas (*as mães eram particularmente vulneráveis aqui*), praticar o comércio, no caso de Manoel Joaquim Ricardo, que foi alforriado quando da morte do seu senhor, em 1841, até internacional. O fato é que esses privilégios eram, também, instrumentos de controle, afinal, tudo dependia da boa vontade do senhor.
Visto através das lentes dos liberais mais tolinhos, ou dos reacionários mais engajados, o caso de Manoel Joaquim Ricardo são provas de que a escravidão poderia até ser boa para os negros e os que não conseguiam a liberdade, ou enriqueciam, eram acomodados e fracos. Ricardo é um verdadeiro "case de sucesso", porque quando de sua morte, ele tinha se encaixado entre os 10% mais ricos da Bahia. Pense que ele veio traficado da África em 1806, ou 1807, atingiu uma respeitável velhice, acumulou bens diversos, casou-se na religião católica, teve filhos, os educou (*um deles foi enviado para a Europa, mas não para estudar na faculdade, ele foi se aperfeiçoar na carpintaria*), os encaminhou na vida, casou bem. E não foi piedoso como seu senhor, porque não alforriou um negro, ou negra, sequer quando de sua morte em 1865. Dar a liberdade à escravizados era uma demonstração de piedade, de espírito cristão. Ricardo se dizia católico, mas era, antes de tudo, um capitalista.
Veja que achado esse homem? Vamos criar uma mulher que possa ser seu equivalente na novela? Que tal colocá-la amante de um homem rico (*a mulata sedutora e voluptuosa*) e dando golpes, porque mulher tem que usar o corpo, e enriquecendo não com seu trabalho, ou não somente com ele, como fez o esforçado Ricardo, que não tinha escrúpulos em ter escravizados, mas aparentemente evitava os da sua mesma nação, os haussás. Pois é, eu tenho certeza que Lupita foi inspirada nele, mesmo que levemente, porém, algo que as pesquisas sobre o tema "escravos que tinham escravos" aponta é que, diferentemente do século XVIII, as mulheres eram uma minoria nesse grupo seleto, porque era um pequeno grupinho que podia ter escravos e ainda enriquecer.
E a Vida de Escravo que tinha Escravos era Vida de Branco?
Não não era, muito menos na Bahia. Reis em seu artigo fala que Manoel Joaquim Ricardo recebeu um enterro de homem branco ao morrer. Todos os rituais, toda a pompa, o luto fechado dos parentes (*coisa que nas novelas da Globo é coisa que não existe*), porém, em vida, nunca foi recebido em nenhum salão das elites brancas, a boa sociedade não aceitava esses senhores negros, mesmo depois de libertos. Não foi agraciado nem com a cidadania brasileira, algo que um português na mesma situação receberia, menos ainda, um título de nobreza, que seria algo que um branco em posição semelhante certamente iria receber. Sendo Ricardo baiano de adoção, sofreu ainda as penas que decorreram da Revolta dos Malês, como a Lei n.º 9, de 13 de maio de 1835, que impedia os africanos na Bahia de terem bens de raiz, isto é, imóveis, o que provavelmente os empurrou vários negros, forros e escravizados, a comprar pessoas. E o que Ricardo fez? Como bom empreendedor, burlou as leis, colocou os imóveis em nome dos filhos homens menores de idade, ele tinha uma filha, porque eram nascidos no Brasil.
Se Ricardo fez largo uso de direitos costumeiros e brechas legais para superar sua condição de escravo e progredir como liberto africano, o que sabemos de suas relações sociais sugere que o Brasil não oferecia meios suficientemente flexíveis para permitir que africanos libertos se integrassem à vida do país e se tornassem cidadãos. Para começar, os estudos sobre alforria mostram que escravos nascidos na África tinham mais dificuldade em conquistar a liberdade do que aqueles nascidos no Brasil, que contavam com relações mais íntimas, e muitas vezes de parentesco, com os senhores e suas famílias. Uma vez alforriados, os africanos sofriam discriminação étnica, além de racial. Eles não se tornavam cidadãos. De acordo com a Constituição de 1824, o ex-escravo nascido no Brasil tinha os mesmos direitos civis que um brasileiro nascido livre, de qualquer cor de pele, embora seus direitos políticos fossem limitados: não podia eleger ou ser eleito para cargos políticos, só podia escolher eleitores nos pleitos primários ou “paroquiais”. O africano nem isso. O africano, quando liberto, simplesmente se tornava estrangeiro, apátrida, pois não tinha país com o qual o Brasil mantivesse relações diplomáticas e celebrasse tratados que o protegessem. Na Bahia, além disso, uma série de leis locais, como a de propriedade antes discutida, tornava sua vida ainda mais complicada. Algumas restringiam a circulação de africanos libertos dentro e fora de Salvador, outras dificultavam acesso ao mercado de trabalho. Em 1850, por exemplo, o governo provincial proibiu africanos de trabalhar em barcos que transportavam cargas do navio para o cais.
Espero que tenha ficado claro que por mais bem sucedido que um Manoel Joaquim Ricardo tenha sido, inclusive como senhor de escravos quando era escravo, porque seu senhor PERMITIU e a Igreja Católica legitimou a posse de mulheres traficadas ilegalmente ao batizá-las como propriedade dele, nosso "case de sucesso" teve sua ascensão obstruída dentro desse sistema capitalista-escravista que valorizava o esforço e o engenho pelo fato de ser negro e estrangeiro. É preciso ser muito obtuso ou mau caráter para ignorar isso. Percebem como Lupita é uma personagem problemática nessa nova fase da novela? Pois é...
Vida de Historiador não é Fácil, as a de Disseminador de Desinformação é
Se vocês pegarem o artigo do João José Reis, verão que a vida de um historiador sério não é fácil. Para tentar reconstruir a trajetória de Manoel Joaquim Francisco, ele recolheu a inúmeros arquivos com fontes bem diferentes: testamentos, multas, certidões de batismo, contratos etc., do Brasil e da África. E leu a bibliografia sobre escravidão no Brasil e nas Américas e acessou as pesquisas de outros historiadores que pesquisam sobre o tema. E isso em um mísero artigo. Pensem no trabalhão que deu, que isso não foi feito da noite para o dia, que várias peças ainda faltam e que muitas foram perdidas. Escrevo isso, porque Rui Barbosa deu ordem para destruição dos arquivos sobre a escravidão. A ordem, assim como a de destruição das biografias e fontes sobre Francisco de Assis que não fossem a escrita por Boaventura, não foi cumprida com rigor, mas muita coisa se perdeu.
Qual o objetivo de queimar documentos da escravidão? Para Rui Barbosa, apagar essa chaga que manchou a História do Brasil. Para os estudiosos e mesmo contemporâneos, um atentado contra a História do país e uma forma de impedir senhores e mesmo escravizados de pleitearem indenizações. Para quem não sabe, as medidas compensatórias de hoje se baseiam especialmente no fato da lei de 1831 não ter sido devidamente cumprida e o estado brasileiro ter atuado inclusive para legitimar pessoas que tinham sido traficadas ilegalmente para cá. Falo mais sobre isso na minha resenha do filme sobre Luiz Gama. Caso das três primeiras escravizadas de Manoel Joaquim Ricardo, quando ele ainda era escravo. Aliás, ele parecia preferir, como outros pequenos e nem tanto senhores, Reis explica, ter escravas mulheres, porque elas davam crias, isto é, produziam mais escravos.
A leitura pode não ser fácil como a de bons e maus divulgadores da História e estou falando aqui de Laurentino, Rezzutti (*e como esse sujeito é bom em levantar fontes*) e, também, de criaturas como o Narloch, que esteve na boca do povo esta semana passada graças a uma escolha infeliz da Folha de São Paulo, que deu palco para ele. Narloch foi um dos grandes responsáveis por desenvolver uma campanha de desinformação histórica e de difamação dos historiadores e historiadoras acusados de serem ideologicamente comprometidos e deturparem as fontes, coisa que ele, quando foi às fontes para escrever seus panfletos reacionários, talvez nem tenha feito.
E por qual motivo ele se tornou notícia esta semana? Porque foi lançado um livro chamado As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas, Suas Joias do antropólogo e historiador Antonio Riserio. O livro, e minha edição está para chegar, trata da biografia de três mulheres negras forras, isto é, elas não eram escravizadas, que conseguiram enriquecer e, claro, um dos sinais dessa riqueza era ter escravos. Para o Narloch, esses três casinhos são indicativo da meritocracia no capitalismo escravista brasileiro e que havia vários negros e negras que eram mais ricos que brancos e que o movimento negro deveria parar de reclamar do passado, se vitimizar. E, claro, que os historiadores e historiadoras escondem esse tipo de informação publicando livros, fora, claro, que é coisa sabida desde muito, muito tempo, mais complicado é encaixar o escravo tendo escravos, porque era um jeitinho feito à margem da lei.
Por que Lupita? Por que este tipo de trama?
Vou concluir e irei assistir ao capítulo de ontem da novela, porque não vi ainda,. Voltando à Lupita, é lamentável que tenham pego uma personagem dúbia, sinuosa, verdade, para colocar nesse papel triste. Lupita poderia ser tornar uma preta rica sem se tornar uma aliada de Borges (*Por qual motivo mesmo?*) e senhora de escravizadas. Roberta Rodrigues continua tornando cada uma de suas cenas interessantes, mas a personagem se tornou uma vilã, aliada de uma das personagens mais desprezíveis da história e, claro, uma lembrança de que a escravidão poderia ser boa para alguns negros que tivessem iniciativa. Alguém reclamou que era um erro Lupita usar sapatos. Ora, escravos descalços não era algo obrigatório por lei, era mais uma coisa que poderia ser negociada com o patrão, o que me causa ofensa é colocarem Lupita protagonizando um exame dos dentes de outra escravizada, ou oferecendo uma das mulheres de sua propriedade para espionar a Pequena África para Borges.
Não consigo acreditar que seja somente distração, falta de sensibilidade (*apesar de terem um assessor para o tema escravidão*), colocarem Lupita nessa situação. Poderiam ter criado uma personagem masculina para isso e manter Lupita como aquela mulher que sonha ser livre de Borges e não uma cúmplice muito útil. Jogaram sobre ela vários estigmas misóginos que vão se tornar relevantes mais cedo ou mais tarde. Ela é a mulher traidora de seu povo, que se deita com um branco para ter vantagens, que só se importa com dinheiro. E podem aguardar, Zayla é quem vai entregar que Samuel tem uma carta falsa de alforria o que, muito provavelmente, vai fazer com que Tonico o faça retornar à escravidão. É história já vista, mas não com mulheres negras, personagens que poderiam ser tornadas tão ricas e interessantes, fazendo o trabalho sujo para os brancos.
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