Não ia falar disso, por falta de tempo e energia nesses últimos dias, mas é inevitável. A DC Comics anunciou no início de outubro que o filho do Super-Homem com Louis Lane, Jon Kent, é bissexual. Sim, eles tiveram um filho em algum universo da DC, em algum selo das várias revistas da casa, e o rapaz, mais uma encarnação do Super Boy, apareceu em 2015. Eu não sabia que ele existia e ficaria sem saber não fosse o escândalo. Citarei a CNN para um resumo da coisa toda:
"A quinta edição da série de quadrinhos da DC "Superman: Son of Kal-El" confirmará que o novo Superman - Jon Kent, filho de Clark Kent e Lane - é bissexual após se apaixonar por Jay Nakamura, um repórter, a DC anunciou esta semana. A série "Superman: Son of Kal-El" segue Kent enquanto ele se torna o novo Superman da Terra e luta com o imenso peso de seu novo show. Nakamura, um escritor de óculos com um cabelo cor rosa chiclete, apareceu pela primeira vez na terceira edição da série como um ombro amigo para Kent se apoiar quando o peso de ser o Superman fica muito difícil."
Antes de entrar na parte mais complicada, minha opinião em dois pontos, que podem parecer contraditórios, mas não são. Primeiro, tanto Marvel, quanto DC, querem atrair públicos diversos para suas revistas. Eles descobriram tomando um choque, especialmente por causa dos mangás uns 15 anos atrás, que mulheres e o público LGBTQUIA+ querem ler quadrinhos, querem comprar suas HQs de forma segura em lugares nos quais não serão rechaçados, ou ridicularizados, querem se ver no material que consomem. Por isso mesmo, as duas editoras passaram a criar novos heróis e heroínas, ou versões alteradas de antigas personagens, para que as pessoas possam se identificar.
Eles lucram produzindo material diverso e com representatividade que, no fim das contas, sempre importa, aliás, só não dá valor a este tipo de iniciativa quem sempre é representado, quem se vê em todo lugar, mesmo que seja se enganando a respeito de si mesmo, como os whitepardos ou latinazis que acham que são brancos e que são irmãos dos white power do Hemisfério Norte. Se ver em um produto cultural, e já escrevi sobre isso mais de uma vez, é sempre importante. Dá aquela sensação de alívio, de ter a sua existência reconhecida, um certo quentinho no coração. Depois desse primeiro momento, é lutar por mais espaços e por representações de melhor qualidade.
Por outro lado, há limites para essa representação. Não esperem nunca nada realmente impactante, é tudo negociado, sondado, são passinhos pequenos para evitar deslizes e tombos. E, meu segundo ponto, a escolha do filho do Super-Homem e da bissexualidade são por si mesmas conservadoras. Afrontoso seria pegar um Batman, ou o próprio Super-Homem, e mesmo em um universo alternativo por os dois para se pegarem, ou se admitindo bissexuais, ou mesmo gays. Isso seria impactante, mas a DC JAMAIS colocaria em risco os seus principais produtos, os seus ícones. NUNCA! Qualquer coisa nesse sentido ficará por conta dos fanfics e fanarts dos fans. E viva essa liberdade que a internet concede e que antes era feita de forma muito clandestina. Por isso, a escolha do filho do Super-Homem é uma saída segura.
E a escolha da bissexualidade é, também, conservadora. "Ah, Valéria, a Mulher Maravilha é bi." Crianças, de novo, representatividade importa, mas vamos aos fatos, duas mulheres dentro dos padrões de beleza, desejáveis para o público masculino e, não raro, apresentadas por homens sob a égide do male gaze, não atentam em nada contra a heteronormatividade ou a masculinidade hegmônica. O homem hetero médio que consome a HQ, ou a novela, e eu comentei exatamente isso na minha resenha de Orgulho Além das Telas, está pouco se importando, ele se imagina como o terceiro ali naquela cama com duas "gostosas".
Sendo bissexual, aquela mulher não fechou a porta para os homens. Nesse sentido, ser lésbica é muito mais subversivo, ainda que se duas mulheres padrãozinho aparecem juntas, elas serão SEMPRE objetificadas e consumidas pelos homens da mesma forma. Aliás, a lésbica sexualmente desejável, objetificável, consumível, é vista por esses sujeitos como mulheres confusas que tem algum trauma, ou não conheceram um homem de verdade. Ser um homem bi é mais perigoso dentro das obras de ficção, porque de alguma forma ele atenta contra a masculinidade (tóxica) hegemônica. E, por isso mesmo, Hera Venenosa, Harlequina, Mulher Maravilha, nunca foram um problema. Enfim, no caso de Jon Kent, o homem hetero mais "flexível" ficará se perguntando quem é o ativo, quem é o passivo, já os demais verão com horror, como um ataque aos seus valores.
Ainda assim, a DC se resguarda. E vou citar o Stuart Hall aqui: "Reconheço que os espaços "conquistados" para a diferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. Acredito que sejam limitados. Sei que eles são absurdamente subfinanciados, que existe sempre um preço de cooptação a ser pago quando o lado cortante da diferença e transgressão perde o fio da espetacularização. Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada." (HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. 2ª ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013, p. 377.)
Seria mais radical se Jon fosse gay e não estou dizendo que ser bi seja fácil, mas que é mais vendável ou mais seguro, assim como já foi estratégia impedir que o herói, ou a heroína, juntasse os trapinhos com seu/sua namorado/a de longa data para permitir múltiplas interações amorosas durante um seriado, ou nos quadrinhos. Jon Kent poderá ter relacionamentos com homens e mulheres (*não provavelmente ao mesmo tempo, porque o "B" não é de bagunça, ou mesmo de bigamia*) e poderá, em determinado momento, deixar de ser, ou ficar só com mulheres, ou ter essa fase de sua vida nos quadrinhos enterrada, ou descobriremos que não era o Jon do nosso universo, mas o de outro. Super-heróis passam de mão em mão feito alça de caixão, não adianta estressar com isso, não que eu me importe realmente.
Enfim, esta semana, o jogador de vôlei Maurício Souza (*ATENÇÃO, não é Maurício de Sousa, o quadrinista, que acabou de afirmar que está planejando uma personagem gay para a Turma da Mônica*), bolsonarista raiz, foi demitido. Motivo? Bem, ele já tinha sido homofóbico antes, mas decidiu atacar o Super-homem Bi como uma forma indireta de afirmar seus valores e, a seguir, afrontar outro jogador de vôlei da seleção brasileira, Douglas Souza, assumidamente gay e bem mais popular. As falas de Maurício não caíram bem, o clube foi cobrado a punir o jogador de alguma forma.
Poderia ser somente uma multa e isso foi aventado, desde que ele se desculpasse. Mas eis que as empresas patrocinadoras da equipe, as gigantes Fiat e Gerdau, vieram a público se pronunciar e dizer que não compactuavam com homofobia e não patrocinavam equipes que eram complacentes com isso. Cobraram medidas do Minas Tênis Clube. Maurício fez um pedido de desculpas muito falso e persistiu na mesma vereda. Não foi suficiente. Foi demitido e saiu agradecendo aos dirigentes e ao técnico, que teriam deixado tudo como estava se não houvesse pressão dos patrocinadores.
Rapidamente, ele tirou qualquer máscara que ainda tentava usar e assumiu toda a sua homofobia, sendo apoiado por uma série de pessoas, desde anônimos até personalidades, como dois filhos do presidente. O problema seria a sexualização das crianças. Mentira, basta ver a imagem se Super-Homem (pai) beijando a Mulher Maravilha em uma imagem postada por ele. Em uma escala de 0 até 10, qual beijo é mais erotizado? O de Jon e do menino de cabelo rosa, ou este? Na verdade, a preocupação dos (supostos) conservadores é com a não normalização de qualquer manifestação de afeto, ou de relacionamento que não seja heteronormativo. Outra coisa, o Super-Homem não estaria traindo Louis Lane? Ele não está traindo sua namoradinha de uma vida? Óbvio que não, fazem o que querem com esses super-heróis e já escrevi isso, mas para o machão não importa esse tipo de coisa, ser "pegador" conta pontos e dane-se que isso não seria bem uma atitude em conformidade com os princípios (cristãos) que eles dizem defender. "Ah, Valéria, a Mulher Maravilha é bi!". Favor reler o sexto parágrafo e o seguinte, não vou me repetir.
Bom, mas eis que começaram a pipocar as acusações contra as vítimas. "Vocês identitários estão dando palco para esse sujeito. Olha como ele se tornou popular!". Ele já era popular antes, ele era jogador da seleção brasileira de vôlei, medalhista olímpico. Dentro do seu nicho, ele já era celebridade e suas declarações de amor ao Bolsonaro o promoveram ainda mais. Ele ganhou muitos seguidores, e está contando vantagem sobre isso para alfinetar o Douglas, mas ele tem 700 mil seguidores e o rival tem 3 milhões. Isso nada quer dizer, porque redes sociais não servem para provar que você é uma boa pessoa, mas contar vantagens sobre isso tendo o histórico de um Maurício diz muito sobre você.
"Agora, por culpa de vocês, ele vai se eleger para XXXX." O povo vota mal mesmo antes das redes sociais. Havia vida antes da internet, sabe? Pessoas já faziam muita bobagem antes de ZAP-ZAP e redes sociais. Celebridades dos mais diversos campos venciam eleições antes da internet e, talvez, Maurício se eleja, caso não saia candidato a algo muito megalomaníaco. Será que se ficássemos calados seria diferente? Se não acusarmos o crime, a injustiça, a discriminação o mundo seria melhor? Normalmente, quem diz esse tipo de coisa é o hetero, cis, (socialmente) branco e, não raro, de classe média. Pode até ser o esquerdomacho, porque para esse tipo de gente, nada mudaria mesmo. É a luta cotidiana de décadas de homens e mulheres, cis e trans, hetero e LGBTQUIA+, brancos e não-brancos que tem possibilitado mudanças na vida das supostas minorias. Para o homem hetero-cis-branco-classe média e acima o mundo sempre ofereceu um lugarzinho quente e com vista privilegiada.
Por isso mesmo, adianto para vocês que dificilmente a carreira de Maurício no vôlei será a mesma. Ela não deve conseguir emprego em um time com a mesma qualidade de um Minas Clube, porque as equipes podem até não se preocupar muito com isso, mas os patrocinadores normalmente não querem ter seu nome envolvido com gente que está do lado errado da história. Nesse sentido, conseguimos avançar bastante, porque antes eram LGBTQUIA+ que tinham que ficar no armário para não serem demitidos. Isso, claro, não quer dizer que Maurício não consiga ir jogar na Rússia ou em um time brasileiro de menor expressividade, ou que ele não receba proposta para ser comentarista na Jovem Klan, ou ainda o Ministério dos Esportes não seja ressuscitado na forma de secretaria para que ele assuma. Na verdade, essa exposição toda por parte do jogador seja parcialmente orquestrada.
Obviamente, isso não quer dizer que a gente tenha sido trouxa. Os que levantaram sua voz, escreveram textos, bateram boca na internet, estavam no seu direito de defender a diversidade. Eu nem dei muita bola para o anúncio, porque, bem, vi como golpe comercial, não sou leitora se supers, sou uma mulher cis-hetero, mas compreendi a euforia e acompanhei os comentários de gente como o Chris do Diversidade Nerd sobre o tema. Agora, quando a coisa ganha essas proporções monstruosas e eu tenho que rebater menino deixando comentário acusatório no meu Facebook contra as minorias, eu tenho o dever de me posicionar.
Recapitulando: Representatividade importa mesmo que seja para encher o bolso de empresa capitalista; as diversas mídias tem função educativa e isso nada tem a ver com impor valores (*menos ainda alterar a orientação sexual de alguém*), mas com dar visibilidade aos diferentes grupos; fiscalizar a sexualidade de personagem de quadrinhos é coisa de gente babaca ou mal intencionada; atacar pessoas ou grupos pode ser enquadrado como crime e homofobia é crime, não é opinião; (pseudo) conservadores não se preocupam com as crianças, mas com a heteronormatividade; o Maurício prejudicou bastante sua carreira, pode nem ser convocado mais para a seleção, mas não ficará desempregado e o Douglas Souza arrasa nas quadras e fora delas. Recomendo muito o 24 perguntas que o Põe na Roda fez com ele.
0 pessoas comentaram:
Postar um comentário