quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Comentando Orgulho Além da Tela (Globoplay/2021): A Globo fala dos LGBTQIA+ nas suas novelas

Ontem, aproveitei o feriado para três coisas: trabalhar, me angustiar porque volto para o presencial amanhã e assistir aos três capítulos do documentário Orgulho Além da Tela do Globoplay.  Gostei bastante dos três capítulos, mas como normalmente acontece em produções da Globo sobre a história da TV, elas terminam ficando restritas à emissora, é algo meio que masturbatório mesmo, ainda que com grandes méritos.  É a Globo falando dela mesma, como se nada existisse no entorno.  De qualquer forma, seguindo o mesmo molde da série Falas Negras, Falas de Orgulho e Falas Femininas (*que eu deveria ter resenhado e não resenhei*) o material foi muito bem feito e sensível, cheguei a me emocionar em vários momentos.  

O primeiro capítulo buscou apresentar cronologicamente a aparição de personagens LGBTQIA+, em especial, gays, lésbicas e bissexuais, nas novelas e em uma única série da emissora; o segundo capítulo foi sobre o drama do beijo gay; o terceiro episódio foi sobre outras sexualidades e identidades nas novelas.  Os programas contaram com a participação de autores (Glória Perez, Euclydes Marinho, Walcyr Carrasco, Manuel Carlos, Aguinaldo Silva, Gilberto Braga,  Ricardo Linhares e Sílvio de Abreu, espero ter lembrado de todos), atrizes e atores de algumas das produções, jornalistas, ativistas da causa LGBTQIA+ e pessoas comuns que foram tocadas, tiveram sua vida ajudada, ou se sentiram representadas por situações apresentadas na teledramaturgia global.  


O episódio #1 segue uma linha do tempo apresentando o primeiro personagem homossexual em uma novela da emissora, Assim na Terra como nos Céus (1971) de Dias Gomes, o costureiro Rodolfo Augusto (Ary Fontoura).  Esta primeira parte do documentário discutiu as limitações impostas pela censura, como tudo tinha que ser muito sutil e, ao mesmo tempo, como era importante usar as telenovelas como um veículo de inclusão daqueles que não tinham voz.  Logo na abertura, Ary Fontoura encontra com um homem que era criança quando desta primeira novela e que comenta da importância da personagem gay na trama para sua vida.

Acredito que o grande destaque desse primeiro capítulo, que foi acompanhando cronologicamente até o final dos anos 1990, mas deixou o resto para depois, foram as participações de Gilberto Braga, que tem um jeito meio antipático, mas é o jeito dele mesmo e cada um tem o seu, mas que deixou ali explícito o quão difícil foi sua trajetória como novelista que buscou incluir personagens gays e lésbicas em suas tramas. Ele comenta a censura e o quanto o mordomo de Dancin' Days (1978) foi perfeito, porque o gay cômico é aceito, e, ao mesmo tempo, um desserviço, porque reforçou estereótipos, depois passou para Brilhante (1981), a novela mais antiga da qual lembro alguma coisa (*a abertura*), e a personagem Inácio (Dennis Carvalho), filho de Chica (Fernanda Montenegro). 

Como ele teve que driblar a censura, em especial D. Solange, a mais voraz de todos eles, colocando signos que faziam sentido para o público gay e que poderiam passar despercebidos para os demais.  Este recurso é o mesmo usado, por exemplo, em Ben-Hur e relatado no documentário The Celluloid Closet (1995).  Dennis Carvalho participa de todos os capítulos, porque ele foi ator e diretor de algumas das produções que aparecem ao longo dos episódios.  Euclydes Marinho fala de um dos episódios de Malu Mulher (1979-1980) que mostra quando a protagonista (Regina Duarte) passa a noite com uma amiga (Ângela Leal) e que foi mutilado pela censura, perdendo o sentido e passando a ideia de nojo.

Outros destaques deste episódio foram: Buba (Maria Luisa Mendonça) em Ranascer (1993) e como o tema da intersexualidade foi trazido para a trama com cuidado e com o que se tinha na época de informação. Eu lembro do impacto, de como a atriz ficou marcada e é surpreendente que não se tenha tocado nisso de novo em oputra produção. A Próxima Vítima (1995), com a participação de um casal, um deles negro, falou da importância da novela na sua vida e que se a história de Sandrinho e Jefferson tivesse uma continuação, eles certamente teriam filhos como ele mesmo tem com o marido. Vale Tudo (1989) com o casal Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Cristina Prochaska).  Lembro, adolescente, que eu só percebi que elas eram um casal já no final da novela.  Para se ver o quão sutil a coisa era, ou o quão tapada era eu.  Mas o fato é que a novela levantou uma discussão super importante sobre a questão os direitos de herança, a falta de regulamentação das relações homoafetivas, pois Cecília morre e seu irmão, o vilão da trama, quer tirar tudo de Laís.  

O episódio fala dos limites da representação e da tristeza que foi Torre de Babel (1998).  É um dos pontos altos do capítulo, porque mostrou o papel da imprensa da difusão de notícias falsas que estimularam o preconceito da audiência contra o casal de lésbicas maduras, felizes e bem sucedidas.  Outro momento importante da trama foi o depoimento da mãe que teve seu filho de 14 anos morto em um ataque homofóbico, mesmo que o menino em si nunca tivesse se identificado como homossexual, e que se sentiu consolada por uma trama semelhante na novela Insensato Coração (2011), que tinha um número recorde personagens homossexuais, com a punição do criminoso.  

Críticas?  Sim.  Omitiram o mordomo Eugênio (Sérgio Mamberti), ele estava em Vale Tudo e o ator faleceu recentemente, não lembro dele nem de passagem em algum dos episódios.  Passaram voando por Roda de Fogo (1986) e, caramba, foi ali que tivemos um primeiro vilão LGBTAQIA+, muito antes de Félix.  Mário Liberato (Cecil Thiré) era bissexual  (*tenho cá minhas dúvidas*) ou gay e tinha uma relação muito íntima com seu mordomo Jacinto (Cláudio Curi), ex-torturador da Ditadura, e uma paixão mal resolvida pelo protagonista Renato Villar (Tarcísio Meira).  Desculpe, mas era muita coisa para comentar dessa novela.  E como não vou retornar ao caso, registro que a novela Desejos de Mulher (2002) de Euclydes Marinho, que falou em todos os capítulos, foi apagada, não apareceu em momento algum.  O casal da trama, José Wilker (Ariel) e Otávio Muller (Tadeu) foi tão rejeitado, teve que parar de usar aliança e não podia trocar um carinho sequer.  E isso já me aponta para algo atinente ao segundo capítulo, a maioria das representações de homossexuais não caricatas aceitas pelo público são representadas por atores e atrizes jovens.  

O segundo capítulo foi sobre o beijo e quem acompanha a teledramaturgia da Globo sabe o quanto demorou para que um mísero beijo entre pessoas do mesmo sexo fosse trocada na tela.  Falaram, claro, de América (2005) e eu esperava ver o beijo que nunca foi ao ar, mas foi gravado SETE vezes em posições e ângulos diferentes.  O que disseram?  Que a emissora destrói cenas que nunca foram exibidas.  Olha, esse material foi deliberadamente destruído, porque programas como Vídeo Show passaram anos exibindo erros de gravação e essas sobras que nunca foram ao ar.  Outra coisa referente à América foi dizerem que Júnior (Bruno Gagliasso) não dava pistas de sua orientação sexual, quando desde a primeira cena ele quase devora Zeca (Erom Cordeiro) com os olhos.

Bem, o auge do capítulo #2 foi Amor à Vida (2014) e a importância de Félix e do seu beijo com Nico para a teledramaturgia, mais ainda, como a relação dele com o pai, César, aquele final muito bonito, teve impacto na vida de pais de filhos gays.  Raoni, o convidado, e seu pai deram depoimentos muito emocionantes. Eu detestava a personagem do Antônio Fagundes, mas eu entendo a importância da trama.  Aliás, eu não gosto de novelas de Walcyr Carrasco, mas parei para ver as cenas de Félix e Nico (Thiago Fragoso), porque não acreditei, no início, que ele estava fazendo o que estava fazendo.  E fez e Mateus Solano tomou a novela para ele.  Não foi o primeiro vilão gay, Roda de Fogo está aí para provar, mas foi o primeiro protagonista de novela.  Problemas houve, mas eu imagino o quanto isso tenha feito diferença na vida das pessoas que não se veem representadas na tela, que não tem direito ao amor e à família nas teledramaturgia.  Foi um grande passo, sim.

O capítulo chega a passar a mensagem de que chegamos ao ponto em que beijar, ter casal de gays, lésbicas, trans, já está quase normalizado na ficção.  Acredito que isso é perigoso e prematuro, porque vivemos um momento de forte reacionarismo que pode, sim, se materializar em leis de censura, ou em pressões sobre a emissora para que ela recue de pautas progressistas.  Aliás, a série não perde isso de vista, porque o jornalista Jorge Luiz Brasil, comenta as questões mercadológicas e como elas podem impactar uma novela.  Falando nisso, há a questão de Babilônia (2015) com a rejeição ao casal formado por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg.  Aqui, eu acredito que a série patinou muito.  Vamos lá!

As duas atrizes se beijaram no primeiro capítulo, em um ambiente íntimo, o quarto do casal.  Todas as vozes que analisaram o caso no capítulo destacaram a rejeição ao beijo como o motivo do fracasso da novela.  Primeira coisa, esse pessoal precisa assumir que Babilônia foi uma novela ruim, isso pode ser mapeado nas matérias de época, se não tivesse beijo de um casal lésbico no primeiro capítulo ia continaur sendo ruim.  Outra coisa, em dado momento falam dos grupos de pesquisa de como houve se tocou no aspecto "idade".  Olha, uma das marcas dos casais bem aceitos nas novelas era ser formado por atores e/ou atrizes jovens, os gays idosos (lésbicas não me lembro) na teledramaturgia eram sempre figuras cômicas e/ou solitárias.  Eu defendo que a rejeição foi ao casal de mulheres idosas, ao corpo da velha, que não normalmente não é fetichizado, não é alvo do desejo. E os gays, lésbicas e outros tendem a ser percebidos pelo grande público a partir da sua sexualidade, não como seres humanos completos.  Resultado?  Deu curto na cabeça de muita gente.  E vamos para Aguinaldo Silva.

O autor está desde o primeiro capítulo, quando ajudou a falar do momento de fim da ditadura e criação do jornal Lampião da Esquina, o primeiro feito por homossexuais e um grande marco.  OK, aqui, mas eis que ele aparece várias vezes ao longo da série para falar o quanto fez "progredir" a representação dos LGBTQIA+ nas telenovelas.  E ele cita Senhora do Destino (2004) e o casal formado por Bárbara Borges (Jenifer) e Mylla Christie (Eleonora) e como ele decidiu não brigar pelo beijo, mas colocou as duas atrizes, jovens, bonitas, acordando juntas na cama em uma cena que deixava claro que elas tinham feito amor.  Lindo e, ao mesmo tempo, ele estava oferecendo dois corpos jovens e que poderiam ser consumidos pelo olhar masculino, de repente, um homem poderia ser mais um naquela cama.

Velhas não podem se beijar, até imagino que velhos também não possam, nem homens um tanto fora do padrão, vide o caso de Desejos de Mulher.  Até já temos gays afeminados conseguindo ser aceitos na ficção, desde que permeados por certo humor, mas a lésbica caminhoneira, fora do padrão de consumo masculino, como algumas das mulheres que apareceram comentando a importância das telenovelas na sua vida, elas não têm espaço na ficção da Globo.  Sinceramente?  Faltou alguém para dimensionar isso. Faltou alguém do movimento feminista, não é?  E, repito, Babilônia não fracassou por causa do beijo de duas mulheres idosas, mas porque era ruim e estava competindo com um fenômeno chamado Os Dez Mandamentos.

Chegamos ao último capítulo, o das novas sexualidades e identidades.  É o capítulo que fala de pessoas trans e travestis, mas não abriram espaço para Cintura Fina de Hilda Furacão.  Ora, se falaram de Malu Mulher, poderiam ter aberto um espaço neste capitulo para a personagem de Matheus Nachtergaele.  A Força do Querer (2017), Gloria Perez, Silvero Pereira, Carol Duarte, tiveram um bom espaço neste capítulo, merecido, aliás.  Aqui, foi interessante mostrar como Ivana/Ivan ajudaram as pessoas a conseguirem uma referência sobre o que é um homem trans.  Falaram, também, da importância de Sarita Vitti de Explode Coração (1995), mas sem Floriano Peixoto, que está na Record faz tempo.  Trouxeram Rogéria, também, e sua Ninette de Tieta (1990).

Aqui, foi importante ouvirem mulheres trans já idosas até para dimensionar os obstáculos da sociedade e seus dramas internos e entender uma Rogéria, que nunca mudou seu nome social, e teve um reconhecimento para além dos palcos.  Agora, causou constrangimento, especialmente, para as mulheres trans militantes, gente séria que estava comentando a importância da teledramaturgia e de tudo o que passaram, ter Aguinaldo Silva comentando com muito orgulho as tosquices que colocou em algumas das suas últimas novelas.  Sim, e teve um bom espaço para Crô e as ponderações de Marcelo Serrado, mas nem é dele que estou falando.  Tipo, as convidadas se seguraram, mas, ainda assim, pontuaram que as representações não foram muito coerentes, não.

Enfim, recomendo muito a série, mas é preciso compreender que ela se omitiu em discutir certas questões, o silêncio às vezes grita, sabe?  E é uma série refém do material da Globo.  O que veio antes, e houve um beijo lésbico no início dos anos 1960 na TV, o que aconteceu na Manchete, ou no SBT, não existem para a emissora.  Senti falta, também, de gente como Diogo Vilela, porque seu Uálber fez muito sucesso, como atesta a foto de um do discos da trilha sonora, e a novela Suave Veneno (1999) sequer apareceu na cronologia, embora ele apareça em uma rápida aparição em um amontoado de cenas.  "Ah, não dá para falar de todo mundo!"  Crianças, até o ano 2000 foram tão poucas personagens que dava, sim, nem se fosse somente para dizer que a personagem estava lá e como e se fez sucesso, ou foi rejeitada.  Se deram espaço para o Crô, Uálber merecia muito mais.  E mais, é preciso vigiar, porque essa coisa de acreditar que um governo autoritário orientado por um ideologia cristofascista não pode impor censura e restrições várias é ser muito inocente.  

Agora, algo muito importante nesses documentários é dar a dimensão de como é importante para as pessoas se verem representadas.  É perfeito?  Não.  Além disso, do poder da telenovela e outras mídias para provocar a reflexão a respeito de temas difíceis e desconhecidos, ou mesmo a sua tradução para uma linguagem mais acessível.  Como enfatiza Sílvio de Abreu, telenovela é entretenimento, mas pode ser muito mais.

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