quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Mais uma parada para falar de Nos Tempos do Imperador: Por qual motivo os autores querem tanto mandar um menino negro par aum colégio militar inexistente?


O capítulo #27 de Nos Tempos doImperador me incomodou muito e eu tive que fazer um post.  Algo que me deixou fascinada ontem foi a fixação de Samuel em mandar Guebo (Maicon Rodrigues) para um colégio militar.  Antes de engrenarmos, deixa a tia contar uma coisa, não havia colégio militar no Brasil ainda e bastava checar a linha do tempo na página do Colégio Militar do Rio de Janeiro, que foi o pioneiro.  O primeiro será criado somente após a Guerra do Paraguai (1864-1870) para atender, em um primeiro momento, aos órfãos do conflito.  Só que havia o Pedro II, fundado em 1837 (*foto abaixo*) e cujo objetivo era “(...) atender tanto aos filhos das elites quanto aos destituídos (...), preparando os alunos para o comércio, a indústria e a administração pública.” (Lúcia Bastos Pereira das Neves)  

Para onde Guebo poderia ir?  Para o CPII, e sairia bacharel só com o ensino médio, vejam só! Teria, também, franqueado o acesso direto a faculdade, seja qual for, sem prestar concurso. O Colégio Pedro II era considerado o modelo para todos os demais no país inteiro e isso até meados do século XX.  Ah, mas os autores queriam mandar o menino para uma escola militar, bem, havia a Escola do Arsenal de Guerra  da Marinha, que dava educação básica e formação profissional para meninos pobres, órfãos e outros.  Vários deles terminaram sendo mandados para a Guerra do Paraguai... e não voltaram.


Faltou pesquisa de novo, não é mesmo? Oh, surpresa!  Agora, nos tempos que vivemos, essa insistência de Samuel em mandar o menino para uma escola militar parece eco dos discursos do governo atual de exaltação desse tipo de instituição, de ampliação de uma rede de escolas cívico-militares, de militarização do ensino público regular, como uma forma de "salvar" as crianças e jovens do Brasil, especialmente, os pobres, que são em sua maioria negros.  Sou professora de um Colégio Militar do Exército, entra quem quer (*considerando a vontade dos pais, claro*), seja por concurso, por direito, ou por instrumentos outros, e me causa um pouco de repulsa a forma como estão insistindo nessa história do colégio militar, como se fosse uma forma de disciplinar o menino, e me pergunto o que vai na cabeça dos autores ao dar eco a essa propaganda estatal.  

E a coisa está sendo construída da seguinte maneira, Guebo, que ainda vive um luto dolorido e justificado, não entende o que é melhor para si. Sim, sei que adultos adoram fazer pouco caso dos sentimentos, ideias e desejos dos adolescentes, mas vejo essas sequências entre Guebo e Samuel como muito violentas mesmo.  Outra coisa, para que Guebo fosse militar, bastava se alistar, tornar-se Voluntário da Pátria mesmo com outro diploma, ou entrar para a Escola da Praia Vermelha, que era a de formação de verdade.  Repito, não há colégio militar no Brasil contemporâneo a essa fase da novela, não entendo essa fixação.  E cabe um elogio ao menino João Victor Menezes, ele está se saindo muito bem.

O resto do capítulo foi sobre o quê? As cenas de humor, eu pulei, ou passei correndo, é o que eu faço normalmente, salvo se Lupita estiver presente.   Pedro II indo atrás da Barral e ela descobrindo que a imperatriz armou para separá-los.  Sério que querem fazer a esposa devotada e traída ser a parte ruim dessa trama?  E tudo costurado dessa forma tão infantil, sem nenhum aprofundamento.  Pedro II era adúltero, ele não está fora da sua época, não era um homem exemplar, mas era discreto.  Esse Pedro da novela, esfrega a amante na cara da esposa, a rebaixa e é um mala, nem pode ser visto como o pai, que, via de regra, é descrito com muitos defeitos, safado, mas sempre como um cara legal, um bom companheiro.

Tivemos, também, as princesas humilhando a mãe em uma das cenas mais constrangedoras da novela até agora.  As meninas corrigindo o francês da mãe, uma princesa europeia.  Entre as elites havia  gente aprendia a ler em francês antes de o fazer em sua língua pátria.  Saber francês era uma prenda meio que obrigatória, era a língua da diplomacia.  E, repito, era a própria mãe. De novo, que fundo de realidade temos aí e a quem agrada tentar elevar a Barral humilhando a imperatriz?  Vejo gente no Twitter querendo que a imperatriz se vingue, arrume um amante.  Bem, mesmo sendo um fanfic, porque acho que está muito abaixo do gênero História Alternativa, isso os autores não farão.  Letícia Sabatella está muito simpática como a imperatriz e acredito que muita gente vá largar a novela por causa disso.

Falando em D. Pedro, uma amiga me lembrou e eu vou incluir isso.  Há ecos de Lava à Jato na novela.  Um discurso de demonização da política e dos políticos, isso foi evidente ontem em um diálogo do Imperador com Caxias, os chefes do Executivo, um deles, aliás, militar.  Pedrinho, tão bom e tão justo, poderia resolver todos os problemas do Brasil se lhe deixassem governar, porque política só existe se for a partidária.  Ah, se o deixassem governar... Não é isso que nosso presidente fala ao culpar o STF e os governadores?  Ele poderia salvar a economia e resolver o problema do COVID-19.  

A novela foi escrita antes de parte das nossas desgraças, mas o discurso entranhado nela foi o mesmo que nos jogou no abismo em que estamos.  Já escrevi antes, mas repito, essa novela é política, tanto quanto Roque Santeiro, O Bem Amado, O Salvador da Pátria, Roda de Fogo.  Mal escrita, verdade, mas política.  E, como escreveu o historiador Robert A. Rosenstone em seu livro "A História nos Filmes, Os Filmes na História", produções de época nos dizem mais sobre o período em que foram produzidas, do que aquele que buscam retratar.  Precisamos, claro, analisar o que os autores estão dizendo e quais os interesses, se é que eles existem, claro, envolvidos.

Ainda no capítulo, Tonico, claro, está vindo para o Rio e com sangue nos olhos, ele quer se vingar, mas não fica claro por qual motivo exatamente.  A ofensa de ser abandonado no altar seria bastante, mas parece que ele tem interesse por Pilar, se apaixonou por ela, ou, o que me parece mais de acordo com a personagem, ele quer humilhá-la, mostrar o seu poder.  Como a maioria das coisas na novela, não desenvolveram bem essa trama dos dois.  Pilar descobre que ele está chegando e fica com medo, agora, a imperatriz sabe que ela foi noiva de Tonico.  E, algo importante, pela primeira vez Pilar mostra culpa por ter deixado a irmã para trás.  Como ela tem uma trajetória marcada pelo individualismo e o egoísmo inerente a esta atitude diante da vida, foi um desenvolvimento importante.  Já  Dolores sonha em rever a irmã.  Gosto muito da personagem, a menina, Julia Freitas, é muito boa atriz.  Lupita e D. Olú mostram que são mais inteligentes que o resto do elenco.  Ainda bem!  Personagens inteligentes, mesmo que em situação de pouco poder, são um alento.  

Por fim, me colocaram a Condessa descabelada e com um figurino absurdamente feio na cena das pazes com o imperador.  Sei que é sua suposta roupa despojada de montaria, mas que lástima foi aquela?  E sei que ela vai montar como homem e uma das princesas, Leopoldina, claro, vai querer imitá-la.  Olha, deveria ser super difícil montar como uma dama, havia uma sela própria, mas era mais simples montar à cavaleiro.  E ser uma excelente amazona era algo valorizado por algumas famílias.  Que Pilar monte feito homem, até se tolera, vejam o verbo que usei, tem o mesmo efeito do seu cabelo solto, algo que se tornou comum em várias produções de época, agora, que a Barral, a dama perfeita, o faça sem que seja, sei lá, no engenho do pai, não é, não.   Aliás, nem no engenho do pai.  E, podem apostar, vão usar essa falha para exaltar a condessa e rebaixar a imperatriz.

E, antes do fim, uma recomendação de livro que pode ajudar quem quer escrever um romance, novela, filme, ou o que seja, histórico.  Pode ajudar a fazer algumas reflexões, nem que seja "Preciso pesquisar um pouco antes de escrever uma história de época.".  Quando li o livro, achei que a autora exagerava, e, sim, em alguns momentos ela exagera mesmo, mas, no geral, são boas dicas.  O livro se chama Medieval Underpants and Other Blunders: A Writer’s (& Editor’s) Guide to Keeping Historical Fiction Free of Common Anachronisms, Errors, & Myths (Cuecas medievais e outros erros crassos: um guia do escritor (e do editor) para manter a ficção histórica livre de anacronismos, erros e mitos comuns).  É uma leitura divertida, também.

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