domingo, 19 de setembro de 2021

Fazendo um balanço da primeira fase de Nos Tempos do Imperador com ênfase nos capítulos que ainda não havia comentado

O último capítulo que comentei de Nos Tempos do Imperador foi o #27, de lá até ontem foram oito capítulos sem uma review curta, ou texto direto.  Era minha intenção comentar diariamente, mas efetivamente, não há material para resenhar todos os capítulos, pois em alguns momentos, a trama não anda, ou o faz em círculos mesmo.  Por exemplo, foram dias e dias insistindo na história da escola militar para Guebo, algo que me desceu mal dado o momento em que vivemos, e no pseudodrama da aceitação por parte do menino da paternidade adotiva de Samuel.  

O protagonista, aliás, falava como se a única saída fosse essa, ou Guebo ficaria abandona à própria sorte quando o caminho mais adequado seria o garoto ser acolhido por D. Olú e Mãe Cândida, que são os lideres da comunidade e têm laços muito mais sólidos com Guebo.  Obviamente, a ideia é criar dois triângulos amorosos na segunda parte da trama, um com Zayla, promovida à vilã ressentida, com Samuel e Pilar e outro envolvendo Guebo, que sempre foi apaixonado pela amiga de infância, mas culpado por a estar disputando com o pai postiço.  Vai dar certo isto aqui?  Dificilmente.

E retomando o meu texto sobre a possível destruição do núcleo negro da novela, um dos motivos para que Borges assassinasse Baltazar e Abena foi a fuga dos escravos de Lota e Batista.  Borges viu Minervina, ela voltara e arriscara todos os demais por desejar libertar sua mãe.  Mas, depois da morte do casal, onde foi parar Minervina?  Ela sumiu. Será que perdi alguma cena? Ela não está mais na trama?  Devo concluir o quê?  O objetivo dessa subtrama era simplesmente eliminar parte importante do elenco da Pequena África.  Boas personagens, negras ainda por cima, rompendo com o paradigma das personagens negras isoladas, foram jogadas fora.  Parabéns aos envolvidos!  E, sim, imagino que entrem outras personagens, inclusive Déo Garcez viverá Luiz Gama.  Será que vão compensar os deslizes da primeira fase?

A princípio, a novela tem um especialista, o escritor e pesquisador da cultura afro-brasileira, Nei Lopes.  Pelo que entendi, da confusão com a cena do racismo reverso, ele entrou na produção quando ela já estava em andamento.  Aparentemente, ele vai ajudar a consertar a novela.  Vai dar certo?  Uma segunda fase pode significar, sim, um recomeço, mas, talvez, a coisa precise de tantos remendos que não vai dar certo do mesmo jeito.  Fora isso, ninguém falou em assessoria histórica, coisa que a Globo costumava levar muito a sério, mas que parece não existir em Nos Tempos do Imperador.  Porque tem que ter alguém para avisar que vai dar m***a, mas muito mais importante é ter gente evitando que você tenha que consertar o que já está feito.

Agora, estou curiosa com uma coisa.  Será que Lupita, que Borges se recusa a vender, se tornará amante do pai de Nélio?  Acho que um caminho interessante tomado nos últimos capítulos foi rearranjar a relação dos dois.  A Lupita de Roberta Rodrigues é malandra ao extremo e mesmo sendo uma escravizada, está jogando com todos os seus recursos para conseguir cativar o fazendeiro.  Se a piada de Batista comprando Lupita para usá-la sexualmente pegou tão mal aos meus olhos quanto o racismo reverso, esse romance esquisito dos dois até consegue ser engraçado e funcionar.  O problema é que falta uma trama mais robusta para Nos Tempos do Imperador, então, entrechos curtos e núcleos menores que funcionem não vão salvar a novela.

Nesta semana que estive sem comentar os capítulos, o núcleo da Bahia veio para o Rio de Janeiro, pois Tonico iria tomar posse.  Eu considero Tonico, Nélio, Eudoro e Dolores o melhor núcleo da novela.  Alexandre Nero é um vilão que consegue ser ao mesmo tempo terrível e engraçado, inteligente e atrapalhado.  De todas as cenas dele, a única fraca, porque mais óbvia, foi ao ar no capítulo de sábado, o roubo da aliança do garçom e ele ter acusado Samuel pelo "crime".  Com a presença do imperador em cena, Samuel seria salvo e foi.  De resto, todas as cenas de Tonico são muito bem aproveitadas, ele é inconveniente, ele é cruel, ele é engraçado e ele almeja derrubar D. Pedro.

O reencontro dele com Pilar foi importante para colocar os sentimentos do vilão em evidência novamente.  Ele ama a moça?  A deseja pelo menos?  Ele quer casar com ela para se vingar todos os dias, afinal, como esposa, ela estará sob sua autoridade?  Provavelmente, a última opção e ele iria tratá-la como um animal a ser domado.  Mas, ao mesmo tempo, o ator consegue imprimir uma dúvida.  Ele ama Pilar?  Ele sofreu com o abandono?  Só que como todas as paixões desse novela, mesmo a de Tonico por Pilar foi súbita.  De qualquer forma, a cena dele ensaiando no espelho com Nélio como iria pedi-la em casamento foi nota dez para os dois, João Pedro Zappa está muitíssimo bem no papel e queria que sua personagem tivesse um bom desenvolvimento na segunda fase.

Mas como Tonico separou Pilar de Samuel?  Um dos melhores lances da novela até agora foi a manipulação de Dolores por parte de Tonico.  E a coisa só funcionou bem, porque Julia Freitas é muito competente.  Conversando com Pilar, ela foi capaz de mudar o olhar, a atitude corporal de forma muito convincente.  Agora, a trama, que era acusar Samuel e Barral de terem um caso, só funcionou porque Pilar já estava com ciúme.  E não me refiro à cena muito suspeita do batom no cassino, ou quando ela interrompeu confidências entre a condessa e Samuel e ouviu um "Pilar não pode saber", ou algo assim.  Mesmo antes, um dos traços da personalidade da mocinha, além do seu egoísmo que é vendido como virtude, é sentir ciúmes do moço.  A dúvida que já estava lá só foi potencializada pela palavra de Dolores.  Como duvidar?  

Nesse ponto, a novela caminhou bem, ainda que tenha recorrido a uma facilidade que foi retirar a Condessa de Barral e D. Pedro da corte eliminando um possível confronto e revelação da verdade.  Mas o que seria uma novela, boa, mediana, ou ruim, se não fossem alguns mal-entendidos e recursos não tão elegantes?  A Barral poderia ter confidenciado seu romance com o imperador para a moça?  Sim, poderia, mas lembrem que ela tem língua solta e é fiel à imperatriz.  Pelo menos, Pilar não foi enganada por burrice, criou-se um solo bem fértil para que vicejasse a dúvida e ela e Samuel pudessem romper.  E Tonico foi rápido e competente em retirar Dolores e o Coronel Eudoro, José Dumont no seu melhor, da corte, assim como Nélio foi hábil para segurá-los no Rio.  

Aliás, Eudoro é uma personagem crível e ele, nas suas limitações autoritárias de patriarca, ama as filhas.  Mesmo a sua rejeição à Pilar, na cena muito boa que os dois tiveram no cassino, foi bem construída e carregada de uma dose certa de emoção.  Talvez, mais adiante, ele até consiga romper com Tonico.  Talvez, porque vai depender do talento dos autores da trama.  Fazer as pazes com Pilar será difícil, mas vai que criam uma situação na qual ela salve a vida do pai ou de Dolores?

Acho que serão os únicos elogios a se fazer à novela nesse texto.  Vamos para as críticas umas valem para esse conjunto de capítulos, outras para a primeira fase como um todo.  O Coronel levou Dolores para uma barbearia.  Quando um pai levaria a filha para um ambiente que era essencialmente masculino?  A deixaria em casa.  Qual foi o motivo?  Possibilitar um encontro com Pilar.  A coisa poderia ser feita de outra forma, aliás, quando precisou, a mocinha recorreu à imperatriz e deu certo.  Aliás, Tereza Cristina é uma espécie de fada madrinha da protagonista e é mais doce ainda por estar na pele de Letícia Sabatella.

Ainda no núcleo de Tonico, ele chega ao Rio com uns três ou quatro escravos, chega inclusive a dizer para Pilar e Samuel que igual ao protagonista, ele tinha vários.  Só que os escravos somem.  Não sei se por causa da pandemia, ou por falta de informação de quem escreve a novela, todo o serviço da casa estava sendo feito por Lota e Dolores.  Um princípio básico de uma sociedade escravista é que todos os serviços deveriam ser feitos por escravizados.  Era humilhante, era inadequado, um livre faria tudo para não estar envolvido com trabalhos manuais.  Mas é assim na casa de Tonico, é assim no cassino, com Clemência responsável por todos os serviços, e no palácio do imperador.  Em São Cristóvão, só vimos criados, e eram negros, quando houve a recepção aos deputados.  O resto do tempo, o mordomo faz tudo, a baronesa faz tudo, e, agora, Lurdes morreu.  É um núcleo inexplicavelmente minúsculo o do palácio.  Deveríamos ter uma dezena de criados, a maioria, em 1856-57, negros e negras escravizados.

Continua muito forte na narrativa da novela a ideia de que a família imperial era abolicionista militante e D. Pedro II um homem impedido de governar.  Acusa-se o parlamento de corrupção e de impedir que o iluminado interpretado pro Selton Mello possa fazer o bem para o Brasil.  A imprensa, que só cairia em cima de D. Pedro lá na década de 1880, não faz nada além de criticar o soberano. De repente, se o imperador fechasse o parlamento e censurasse a imprensa as coisas funcionariam, não é mesmo?  E o braço direito de D. Pedro, o Marquês de Caxias, esse homem probo, lhe traria o apoio do Exército.  Será que assim como no caso do racismo reverso, ninguém avisou para os autores da novela que esse discurso parece perigosamente próximo do usado por nosso presidente?  

Ao mesmo tempo que D. Pedro reclama que não o deixam trabalhar, ele não quer fazer o que precisa fazer, como cumprir suas funções cerimoniais, algo super importante para qualquer monarquia, como a Barral tentou lhe recordar algumas vezes.  Veja, a monarquia se mantém através do reforço de seus símbolos e da contínua criação e manutenção de tradições.  O D. Pedro II histórico tinha plena consciência disso, o da novela, por opção dos autores, quer se afastar de tudo o que o tornaria indispensável, tudo o que reforçaria a sua posição.  Ele reclama, e o fez com Samuel no capítulo de sábado, de não ter o poder pessoal ilimitado.  Isso não era bem uma preocupação de D. Pedro II real, que tinha campo para interferir na política, e o fazia constitucionalmente, sem precisar ser, ou parecer autoritário.

Apesar de reclamar do excesso de trabalho, não vemos o monarca trabalhar muito.  Quando anunciaram a novela, imaginei que ela poderia se prestar a fazer propaganda da monarquia, afinal, D. Pedro II é meio que um santo, mas, não, não, corre o risco do imperador sair difamado.  Aliás, uma das coisas que o acusaram recentemente, a personagem de José de Alencar, que era deputado e se tornou inimigo do imperador, de trocar títulos de nobreza por favores e apoio.  Certamente, tinha muito valor um título de nobreza, você era elevado acima dos demais, mas sabiam que era caro, muito caro?  O sujeito virava barão, sonho de Lota e Batista, mas tinha que pagar um bom dinheiro por isso, em valores atualizados, mais de 230 mil reais.  O imperador se mantinha normalmente à margem das picuinhas e dos jogos de poder, a maioria dos títulos de nobreza eram fruto de sugestões do conselho de ministros e outras instâncias de poder, o problema eram as amantes!  Sobre isso nos diz o Paulo Rezzutti:

“D. Pedro estivera até então acima das negociatas e dos jogos de poder. Ninguém podia acusá-lo de enriquecimento ilícito, por exemplo. A sua renda era assegurada pela dotação e ele fizera de tudo para nunca elevá-la, mesmo se endividando durante anos para saldar as viagens feitas ao exterior. Entretanto, ele se imiscuiu em diversas nomeações, como comprovam as cartas de suas amantes com pedidos de cargos e postos no exterior, geralmente dados pelo soberano.” (REZZUTTI, Paulo. D. Pedro II (A história não contada) . Leya. Edição do Kindle.)

Não era incomum em monarquias que maridos oferecessem suas esposas, de forma direta, ou indireta, ao monarca em troca de favores.  Isso aconteceu no Brasil, também.  Você imagina algo assim rolando em Nos Tempos do Imperador?  O Pedro II de Selton Mello compensando algum marido com um cargo pelos chifres tomados?  A resposta é não, porque isso feriria as nossas sensibilidades contemporâneas.  Mais ainda, você imagina a novela colocando D. Pedro com várias amantes nessa novela?  Não de novo!  Somente a Barral, o amor de sua vida, sua alma gêmea.  No entanto, as várias amantes eram comuns e os ciúmes da imperatriz, também, ao que parece: 

"Educado, diferente do pai, d. Pedro II não daria escândalos públicos com seus casos extraconjugais, quase todos passageiros. Mas, no início, o medo dos funcionários da Casa Imperial a respeito do legado da imagem de d. Pedro I era um temor constante. Em carta de 31 de julho de 1850, o superintendente da Fazenda de Santa Cruz, o coronel Conrado Jacob de Niemeyer, após a passagem do imperador e de sua família pela propriedade, escreveu ao mordomo Paulo Barbosa acerca da imperatriz: Ao meu ver o seu maior receio é que seu esposo faça em Santa Cruz as mesmas galanterias que fazia o senhor d. Pedro I, e como ela é talvez a única esposa que desvirginando-se desvirginou o esposo tem muito ciúme dele. É isto bem mal, mas que muito se deve desculpar às senhoras. É ele, se bem que de uma moral austera, homem, e se o diabo tentou Jesus Cristo quanto mais a ele que já provou o fruto de Adão. (REZZUTTI, Paulo. D. Pedro II (A história não contada) . Leya. Edição do Kindle.)

Não sabemos muito como ela expressava seu ciúme, mas o fato é que a imperatriz está na novela com aquela eterna cara de sofrimento.  Eu lamento muito que tenham engrenado o romance dele com a Barral tão rápido, sem nenhuma culpa, nenhuma restrição da parte da personagem de Mariana Ximenes.  Cria-se, inclusive, uma sombra de leviandade sobre a personagem.  O fandom da imperatriz na internet é grande, mas acho que a rejeição à D. Pedro também é.  Muita gente torce pelo que não pode ocorrer, salvo, claro, se os autores chutarem toda e qualquer coerência... Pensando bem, pode acontecer qualquer coisa, sim.  


Humor à parte, foi muito boa a cena da carruagem entre a Barral e a Imperatriz. O tom de voz baixo, porém firme, de Letícia Sabatella, que incomodou alguns, mostrou bem a situação de humilhação na qual ela estava.  Eu não gostei da cena de Leopoldina dizendo preferir ser filha da Barral e dos seus desdobramentos, como a menina vendo o pai aos beijos com a amante, no entanto, foi boa a cena da menina com a imperatriz.  Um pacto de silêncio pela boa imagem da família.  A cena não precisava estar lá, era, afinal, uma criança, mas terminou por criar um laço entre a imperatriz e a filha.  Se os autores forem espertos, irão investir nesse aspecto nessa fase que começa amanhã.

O fato é que D. Pedro II se comporta de uma forma muito diversa do que deveria ser nesses assuntos romântico-sexuais.  De que estou falando?  Certamente, ele não se agarraria com a Barral em todo o lugar possível, na sua própria casa e correndo o risco, como foi na novela, de ser visto, como foi por uma das filhas.  Estávamos em plena Era Vitoriana (1837-1901), ter amantes não tornaria um homem infame, mas colocar a amante dentro de casa e exibir-se com ela como D. Pedro da novela faz sem se preocupar em poupar as filhas da sua devassidão, ou a esposa de ser humilhada, sim.  A ideia de que D. Pedro era discreto com suas escapadelas e de que o romance dele com a Barral, caso tenha existido, não era esfregado na cara da sociedade, também está no livro As Barbas do Imperador:

“Por sinal, d. Pedro teria uma atitude oposta à de seu pai: a discrição será a marca de suas relações.  Ter amantes não era problema.  Sobretudo em um reino como o Brasil, seria um mau sinal o comentário geral sobre a escassa virilidade do imperador.  Há histórias e boatos sobre as amantes de d. Pedro II – condessa de Villeneuve, a Guedes Pinho, Maria Francisca, condessa de Goiás, a condessa de la Tour –, mas o que mais impressiona é o silêncio.  Comentava-se, inclusive, que d. Pedro distribuía a todos os seus filhos naturais o nome Alcântara Brasileiro, um reconhecimento de filiação e uma homenagem ao santo protetor.  É o próprio imperador que, em seu diário de 1861, o único que traz reflexões um pouco mais pessoais, fala com moderação sobre a relação com Teresa Cristina – “Respeito e estimo sinceramente minha mulher, cujas qualidades constitutivas do caráter individual são excelentes” –, que com o passar do tempo se acomodara.  Mas d. Pedro achava-a carola, e parece ter se encantado com a proximidade de uma dama da corte, educada e cheia de personalidade, como a Barral.  Depois da partida da condessa, já na década de 80, é com saudade que ambos relembram momentos de intimidade.  (...) Em carta datada de 3 de dezembro de 1884, d. Pedro insiste em falar das raras ocasiões de maior privacidade: “D. Pedro: – Lembra-se do hotel Orléans?  Barral: – Como não!  D. Pedro: – Lembra-se do nome do nosso porteiro?  Barral: – Se me lembro do Sr. Rozano.  Estou ouvindo o sino!!”.  (SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador - D. Pedro II, um monarca nos trópicos.  São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 381-382.)

Não sabemos muitos detalhes da vida íntima de D. Pedro, Teresa Cristina e da Condessa de Barral, mas o fato é que a novela está criando ranço em muita gente por causa da forma leviana como está retratando o relacionamento do imperador com a da personagem de Mariana Ximenes.  A imperatriz está sendo apresentada como mártir.  Umas vigas quase caem em cima dela, o que seria sua morte, e o imperador sovina nem se move como se não se preocupasse com a esposa.  Mais tarde, a filha Leopoldina humilha a mãe dizendo que prefere a Barral.  Não sei qual foi a pior cena, ó fato é que não sei como será a dinâmica das personagens na próxima fase, se vão tentar demonizar a imperatriz, lhe arranjar amantes, o que será de ruim que vão inventar.  Sim, estão regravando cenas e a gente não sabe o que pode vir por aí.

Queria terminar falando de algo que eu gosto muito:  figurino.  Não sou especialista, recomendo os canais da Eneida Queiroz e da Modista do Desterro (*que já fez vários vídeos sobre a novela*) para se aprofundar em moda histórica, mas sei alguma coisa e a novela está me incomodando muito.  Boa parte do figurino parece pobre, improvisado e a foto acima da Barral foi um dos ápices desse desarranjo.  O figurino é assinado pela experiente e competente Beth Filipecki e, segundo essa matéria da Marie Claire, ela optou por seguir um percurso semelhante ao de Orgulho & Paixão, novela que eu gosto muito.  Ela escolheu uma cor para estar sempre presente na roupa das personagens femininas.  A da Barral é verde, a de Pilar é o monótono amarelo desmaiado.  O problema é que o que funcionou em uma novela que não era realista,, não está dando certo em Nos Tempos do Imperador.

Não estou reclamando do figurino ser para-realista [1], isto é, tomar liberdade com a moda da época, ainda que mantenha um pé firme na realidade, o problema é que salvo pela Barral, as princesas, Mãe Cândida, Zayla e Dolores na corte todo o resto é muito feio.  A escolha da cor azul escuro para a Imperatriz já seria ruim, mas não foi só isso, todas as roupas de Letícia Sabatella parecem iguais, ou muito pouco diferentes.  E não distinguiram uma roupa de dia de uma usada à noite, nem no jantar, nem no cassino. Ela não seria menos séria, menos religiosa, se se vestisse de forma mais decotada à noite, porque isso era a norma e ela era a imperatriz. E isso mesmo tendo muitas referências visuais da imperatriz vestindo-se na moda, usando cores fortes como vermelho, tudo foi ignorado.  Teresa Cristina só adota os tons escuros na velhice, na primeira fase da novela, ela  tem menos de 40 anos.

Pilar, para passar a ideia de praticidade, usa pouca crinolina e parece quase sempre estar com a mesma roupa.  O mesmo ocorre com a imperatriz. As diferenças na roupa são muito pequenas.  Não vou falar do cabelo, porque virou moda não prender cabelo da mocinha, mas será que mesmo no retorno de Boston, médica, com mais de trinta anos, Pilar vai andar de cabelo solto?  E chapéu a Pilar também não usa, parece que decidiram seguir o padrão de Bridgerton.  A imperatriz também parece só usar chapéu, um item obrigatório em uma dama, de vez em quando.  

Outra coisa, vi fotos de Dolores na segunda fase bem deslocada da moda da época.  Será que não pararam para pensar que um homem como Tonico iria querer exibir a noiva na última moda, porque isso servia para marcar o seu próprio prestígio?  Sim, uma esposa e filhas bem vestidas apontavam para o poder do patriarca mais do que para os interesses particulares das mulheres envolvidas.  Eu sempre acho interessante as discussões que tentam apresentar a moda como uma forma de empoderamento das mulheres no século XIX e esquecem que elas se vestiam, não raro, com um dinheiro que não era seu e para atender as expectativas de sua classe social e dos homens de sua vida.

Falando dos homens, não sei qual o problema, também.  Tudo parece pobre e desconjuntado.  Pegue a imagem comparando o quadro com a novela e veja como Selton Mello está parecendo um cospobre do imperador.  Pode isso?  A Globo sabe fazer melhor.  Tonico parece usar bota em todo lugar.  De novo, se ele quer impressionar, e quer, ele se vestiria na última moda e poderia cometer exageros e se tornar alvo de piada por isso.  Como detalhe menor, a bota do Coronel Eudoro em um dos últimos capítulos tinha um zíper, algo que nem inventado fora ainda.

Concluindo, porque estiquei demais, aconteceu a cena infeliz com Leopoldina de calças compridas e dizendo que queria ser uma grande amazona como a Condessa de Barral.  Primeiro, uma dama como a Barral nunca montaria como um homem, ainda mais na corte.  Seria totalmente inadequado, ela precisava dar o exemplo, afinal, a novela fez questão de marcar que a Condessa foi contratada, entre outras coisas, para transformar as princesas em damas refinadas.  Sim, um dos problemas da novela é vender a ideia de que eram todos uns jecas na corte de Pedro II e a imperatriz, uma princesa europeia legítima, nada tinha a ensinar às próprias filhas.


Segundo, havia selas feitas para mulheres e que eram usadas pelas damas.  Sim, até entendo que uma Pilar possa montar à cavaleiro, como um homem faria, mas a Condessa de Barral teria selas adequadas e o treinamento necessário para montar como uma dama e não usaria roupas "masculinas"  por conforto.  Sim, eu acredito que fosse muito mais confortável montar como um homem, mas era um mundo de comportamentos bem gendrados e no qual uma mulher muitas vezes deveria fingir não saber fazer algumas coisas para parecer "educada".  Enfim, esse treinamento para montar atravessada na sela começava cedo e quem viu o filme E o Vento Levou lembra da tragédia com a filhinha de Scarlet e Rhett Butler, porque a menina vai saltar um obstáculo sem dominar ainda o equilíbrio em uma sela feminina, ela aprendera a montar da forma mais cômoda e segura, mas deveria ser uma dama.

A própria ideia de grande amazona dentro da nobreza ou das classes abastadas passava por ser capaz de montar atravessada na sela e conseguir fazer qualquer coisa que um homem fizesse desse jeito, com vestido e tudo.  Claro, a maioria das mulheres não eram amazonas ousadas, até eram proibidas de tentar, mas algumas se destacavam muito, como como a australiana Esther Stace.  Seu recorde de salto  usando uma sela feminina continuava de pé no ano passado, quase cem anos depois.  E, sim, era mais difícil montar assim e as filhas de Pedro II (*vide a gravura acima*) adoravam andar à cavalo.

E quero terminar marcando que a primeira fase da novela não foi boa.  Não daria nem um 6,0, que foi a nota dada pelo Coisas de TV no seu vídeo de hoje.  Não culpo os atores, culpo o texto.  Não acho que a novela tem problemas, porque escolheu uma época "chata" da História do Brasil, é falta de competência para produzir um material decente.  Também não é culpa da pandemia, a maioria dos problemas nada tem a ver com  a tragédia na qual estamos metidos.  Se há situações inaceitáveis, como racismo reverso, não é falta de gente para orientar o que é certo, porque gente minimamente informada sabe que isso não existe.  

Como deveria ser muito evidente que um casal interracial teria que enfrentar muitos problemas, especialmente, se a mulher era branca e o homem, negro. Inverter a lógica da dominação, mexe com as estruturas do sistema e atinge em cheio a masculinidade frágil do homem branco.  Só que colocar situações do século XXI, comportamentos da nossa época, no século XIX é um dos problemas da novela.  De novo, não me parece inocente essa tentativa recente de construir passados limpos de racismo, de sexismo e outros ismos horríveis em recentes produções muito competentes e bonitinhas.  BridgertonGambito da RainhaEnola Holmes.  E a última versão de Éramos Seis vem no mesmo balaio.  A gritaria com Nos Tempos do Imperador só está sendo grande, porque a lambança é muito evidente e é a única novela inédita no ar.  


E, sim, a insistência com a escola militar para o menino negro continua me incomodando muito, mas é coisa que deve ser largada pelo caminho, como outras ideias da trama.  Lembram da briga por causa dos horários das princesas?  Quem se lembra disso?  E as meninas vivem de folga mesmo, não é?  Afinal, o pai precisa continuar se pegando com a Condessa em horário de trabalho.  Terminando, o final de Germana e Licurgo foi grotesco, muito desagradável mesmo.  Talvez não seja meu tipo de humor, talvez funcione com você, mas colocá-los sendo mortos por um trem foi horrível.  Mas não se preocupem, o casal que em nada contribui para a novela voltará como fantasmas na segunda fase, foram atropelados e morreram da forma horrível que morreram para nada.  De repente, as joias da imperatriz, que eles haviam roubado, sejam encontradas pelos filhos de Clemência e Quinzinho, que serão assombrados por eles.

[1] A separação do figurino de novela/séries/whatever entre realista, para-realista e simbólico está no capítulo "O que veste Capitu?" de Genaneti Tavares Salomon  do livro SILVA, Camila Borges da, MONTELEONE, Joana, DEBOM, Paulo. (orgs.)  A História na Moda, a Moda na História.  São Paulo: Alameda, 2019..

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