Atrasei bastante os comentários do episódio #17 e #18, o #19 entra no ar em alguns minutos, mas estava muito enrolada esses dias. Ainda estou, na verdade. Por isso, decidi fazer como post no blog comentando de forma geral e pontuando algumas coisas importantes. Comecemos pelo racismo reverso da semana anterior, a coisa acabou se desdobrando em críticas justas de ativistas negros como o AD Júnior e o Nilson Xavier, jornalista especializado em telenovelas, fez um texto sobre o caso. Recomendo a leitura, assim como o texto do Tony Goes. O mais chocante da história toda a autora falar que a cena passou, porque ela não tinha assessoria em 2018, como se racismo reverso não fosse algo mais que condenado na época, aquela cena, só para ficar nela, é um poço sem fundo. Estranho, também, a Globo estar economizando nessa área de assessoria histórica.
Falo que é estranho a Globo relaxar com essa parte técnica, porque um dos meus melhores professores era contratado para essas coisas e conheci gente que trabalhou fazendo esse tipo de tarefa. Agora, levando-se em consideração que Deus Salve o Rei teve assessoria histórica (*conheço o responsável, um colega dos tempos de faculdade*) e deu no que deu, não sei bem o que pensar do caso. O fato é que se você se propõe a escrever uma novela que quer ser histórica, é preciso estudar, ou ter alguém que estude por você e lhe dê alguns nortes, ainda que o autor, ou autora, possa recusar. O autor de um dos meus romances históricos favoritos, Os Pilares da Terra, falou que decidiu não seguir o que a historiadora que fez a pesquisa para ele recomendou em algumas cenas. Direito ficção, agora, é fato que Nos Tempos do Imperador vem sendo bem decepcionante em termos de consistência histórica e mesmo fidelidade às personagens reais que está usando. Antes de seguir, vamos tentar diferenciar "de época" de "histórica", porque são coisas distintas, ou deveriam ser. Vou usar como exemplo duas novelas que assisti e comentei no blog para exemplificar.
Um romance ou novela de época recorre somente de forma muito tênue à História. Raramente teremos datas, lugares e pessoas reais sendo apresentadas de forma rigorosa, ou consistente, porque o que importa mesmo é a mensagem que se quer passar, ou a história das personagens criadas para a obra que estão em cena. Por exemplo, a novela Além do Tempo era uma novela de época. Sabíamos que estávamos no final do século XIX, mas não sabíamos bem quando. Era possível supor que estávamos depois da abolição, mas o uso de excessivo de títulos de nobreza parecia não combinar bem com um Brasil República. E eram títulos estrangeiros, que nunca foram explicados na trama. O figurino também era frouxo, um tanto indefinido, mesmo que interessante. A única referência temporal que tivemos foi a existência da Torre Eiffel, porque uma personagem diz querer ir à Paris para vê-la. A obra foi inaugurada em 1889. Além do Tempo foi uma excelente em sua primeira fase e funcionava muito bem em recriar o clima geral do final do século XIX. As personagens, via de regra, não apreciam gente do século XXI perdidas no passado.
Já a novela Tempo de Amar era uma novela histórica. O período histórico era muito bem marcado, havia referências claras à acontecimentos no Brasil, em Portugal e no resto do mundo, como a quebra da Bolsa de Nova York e a Grande Depressão. Volta e meia alguma personagem histórica era referenciada (Salazar, Getúlio Vargas, Washington Luís etc.) para introduzir alguma questão política. A novela trouxe para a história discussões relevantes sobre os direitos das mulheres, racismo e tudo mais. Era uma boa novela. Era, sim, mas não raro colocava as personagens discursando (*esse mal das obras históricas da TV e cinema brasileiros*) e projetava nos anos 1920-30 comportamentos modernos demais, ou idealizados demais, que terminavam por minar a credibilidade de certas situações. No geral, a novela falava mais do presente (corrupção na política era tema constante) do que do passado que parecia retratar.
O que é uma obra de ficção histórica, então? Aquela que depende do pano de fundo histórico para funcionar, mesmo que as personagens históricas não estejam em cena, ou sejam meras coadjuvantes menores da produção. Uma obra histórica normalmente tenta ser o mais precisa possível, mesmo fazendo concessões, algo compreensível em uma obra ficcional. Vemos muito disso em A Casa das Sete Mulheres (foto acima), ainda assim, a minissérie funciona como ficção histórica, como aventura e, claro, como romance.
O que Nos Tempos do Imperador é afinal? Uma novela de época na qual o pano de fundo histórico importa muito pouco, ou uma novela histórica? Olha, eu não sei. Ainda que tenhamos em cena personagens reais em posição de protagonismo, elas se comportam de forma tão absurda que não há como dizer que é somente uma novela histórica que ainda não se encontrou. Algumas pessoas estão chamando a novela de fanfic, isto é uma obra de fãs usando personagens de outros autores e colocando-as para fazer coisas que em situação normal não fariam.
Quando Nos Tempos do Imperador foi anunciada, temia que fossem fazer uma tremenda propaganda, quase uma história de santo (hagiografia) de Pedro II. Se a novela tiver alguma repercussão, acho que terá o efeito contrário, teremos o imperador sendo lembrado como um adúltero sem nenhum respeito pela esposa, um desocupado que arruma desculpas para se encontrar com a amante a todo instante e um chorão que vive contando suas mágoas para todo mundo. D. Pedro II está sendo difamado pela novela, não encontro outro termo para colocar aqui. Seu defeitos reais não aparecem na trama, mas encheram o caminhão com outros que ele não tinha.
Quem se propõe a escrever uma novela histórica tem que se informar. Pegue o material histórico da Glória Perez, ela toma liberdades, ela voa, por assim dizer, mas ela é muito correta na abordagem da História em suas séries. Alguém poderia dizer "Ah, mas ela é formada em História!". Sim, ela é, mas estou falando de fazer o dever de casa. Pesquisar, não tomar liberdades excessivas, não beatificar, ou demonizar personagens reais. Quer ver? Citando novamente Casa da Sete Mulheres, a série se equilibrou muito bem entre ficção e história, tomou muitas liberdades, mas fez o que tinha que fazer, ofereceu entretenimento de qualidade usando personagens que de fato existiram. A gente torce por Bento Gonçalves, pelos Farrapos, por Garibaldi. Eles atravessam os capítulos pintados com tintas heróicas e convincentes, mas e D. Pedro II? O que vai sobrar dele para quem assiste a novela?
E a audiência vai mal, a Globo acredita que é porque as pessoas não sabem História e estão perdidas, pode ser em parte, mas é, também, pela falta de carisma da própria história que está sendo contada. Vamos aos capítulos, então? No capítulo #16, D. Pedro e a Barral transaram em um teatro vazio. Os dois, adultos de mais de trinta anos, casados, gente acostumada com o rigor dos costumes e o olhar atento da sociedade, se comportando como dois adolescentes. D. Pedro quer beijá-la no meio da rua, ela reclama, ela beija do mesmo jeito e ainda lança um olhar meio cafajeste que fez aquela personagem parecer meio gente normal de repente. Durou pouco, claro. Da janela, Jorge/Samuel, o nosso protagonista negro que gira em torno das histórias alheias e acredita em racismo reverso, observa tudo. O que D. Pedro fará? Vai transformá-lo em mais um confessor, das suas agruras amorosas.
Já tinha Caxias e D. Olú, já parecia ridículo demais, para quê mais um? Capítulo sim, outro, não, temos algum papo dele sobre sua vida de pobre órfão, ou seu casamento arranjado. Estou com pena do Selton Mello. Dá meio que vergonha alheia essas cenas de D. Pedro choramingando por causa de sua infância triste, ou do seu excesso de responsabilidades (que a gente não o vê executando) e do casamento sem amor. Apesar do romantismo, o amor era algo ainda raro no casamento. Matrimônios eram arranjos de família, nas casas reais eram questão de Estado. Se houvesse amor, paixão, o que seja, era um bônus. Vitória e Albert, Alexandra e Nicolau, Vicky e Fritz, eram casais incomuns.
Havia, claro, casos em que os noivos podiam escolher dentro de uma lista limitada de pretendentes, podiam rejeitar A ou B, desde que ficassem com a opção C, mas nem sempre isso era possível e o que estava em jogo não era o coração das pessoas. E essa história de D. Pedro expondo seu casamento de conveniências para todo mundo e se lamentando só debilita a personagem. Ele me faz lembrar o Mr. Knightley do novo Emma (*resenha*). Ele é sensível, ele chora, é uma revigorante abordagem moderna da masculinidade dizem algumas matérias. Não, não, é um homem de 30 e poucos anos, chefe de família, senhor de si, se comportando de forma pueril, não é um modelo de masculinidade saudável, não, e era ainda menos aceitável no século XIX.
Outra coisa, pela moral da época, era admissível que um marido tivesse amantes, mas era esperado, era de bom tom, que ele fosse discreto. Por tudo o que li, D. Pedro II era discreto. Ele não agia como o pai, ele não humilhava a imperatriz, ainda que ela soubesse de seus casos, mesmo que houvesse alguma animosidade dela pela Barral. E isso é tudo que esse Pedro da novela da Globo está fazendo. A amante é quase pública, está dentro de casa, aos beijos e convivendo com as filhas dele. "Ah, mas eles são almas gêmeas!" Sei...
Olha, eles poderiam construir um romance muito bonito entre Pedro e a Barral, se tivessem paciência para desenvolver a relação dos dois. Poderiam colocar dúvidas em ambos, culpas (Barral era muito católica), mas eles se atiram para o romance sem reservas. Nessas novelas mais recentes, todo mundo precisa transar rapidinho, ou não fica configurado que são um casal. Esta semana, se não houver mudança, será a vez de Pilar e Jorge. Só falta me inventarem que Pilar vai ser além de primeira médica do Brasil, mãe solo, também. Enfim, D. Pedro que já não trabalhava, apesar de falar muito das suas obrigações, agora vive dando escapadinhas com a Barral, que tem a responsabilidade de supervisionar a educação das princesas e não deveria estar batendo pernas por aí.
Não sei quem está achando bonito e romântico, mas eu estou achando forçado e injusto. Como se tratam de personagens históricas, está quase chegando na difamação. Aliás, foi o que fizeram com o Conde de Barral, ainda bem que a tal cena que apareceu relatada em uma matéria da internet de que ele bateria na esposa não se concretizou. O Conde simplesmente se retirou silenciosa e civilizadamente da trama. O consenso entre as pessoas que estudam a Barral é que, se houve um romance completo entre D. Pedro e a condessa, isto é, se a coisa não foi só platônica, ele só teria começado de fato após a morte do marido. E o Conde ainda vai viver bastante.
Nos dois capítulos, além desse desabrochar amoroso-sexual-afetivo de Pedro e Luíza, o que tivemos? Pilar foi encontrada e resgatada por Jorge/Samuel. Não que ela não tivesse se livrado sozinha do possível estuprador, mas ela ficara assustada demais e havia a chuva. Ela adoece, mas se cura à jato, porque ela é forte, muito forte e quer ser a primeira médica do Brasil. A cena dela com a irmã, o sonho de Dolores, o possível reencontro mediante viagem astral quando a mocinha estava febril, foi bonitinha. Gostei muito. É exatamente por estar na casa da Condessa cuidando de Pilar que Jorge vê o beijo. No outro dia, Pilar é readmitida no curso de parteira, porque a menininha que ela salvara era filha de um homem negro rico. Sim, existiam negros e negras ricos, mas eles eram a minoria da minoria. A sequência inteira foi para mostrar os princípios da moça e a hipocrisia da freira.
Zaíla é repreendida por ter colocado a vida de Pilar em risco e vai se desculpar com ela, mas também afrontar a protagonista e dizer que Jorge será seu. Colocar a adolescente negra como antagonista da mocinha branca não é a melhor ideia, na verdade, é um clichê que poderia ser evitado. A parte interessante da cena é que Pilar se reconhece em Zaíla. Ela queria ser médica, a garota quer Jorge. Sim, continua muito ruim isso daí, é o dispositivo amoroso dominando a vida de uma mulher. Mas pode ser pior, a menina forte pode ser promovida à vilã da trama, depois do salto temporal. Na trama, Zaíla tem 12 anos neste momento, deve ser a mesma idade de Dolores, talvez. A atriz que interpreta a personagem, Alana Cabral, parece ter 14 anos. Ela tem muito potencial, basta que existam boas personagens para serem interpretadas por ela.
Tonico se liberta e tivemos boas cenas com ele em ambos os capítulos. Ele chorou por estar realizando o sonho do pai, ele lembrou que vai se vingar de Pilar e Jorge, ele sonha com a corte e o quanto de dinheiro público poderá roubar. A parte da eleição, com o padre colocando em questão os eleitores dele foi interessante, a fraude eleitoral era uma constante na época. Foi meio que jogado, mas o fato de ter aparecido um oponente possibilitou, também, ver como se dava a apuração dos votos. O problema é que sabíamos que Tonico iria ganhar. O núcleo de Tonico é muito bom e espero que não tirem José Dumont da novela. Mesmo Julia Freitas, que faz Dolores, está muito bem no seu papel.
No palácio, a Imperatriz tentou interferir na política convidando um jornalista que estava difamando o imperador para conversar. O sujeito acaba publicando uma matéria que irrita D. Pedro II que repreende a imperatriz. Ela é napolitana, ele milanês, talvez, o desprezo venha daí, se ele é republicano radical, ele teria todos os motivos para tentar prejudicá-la. Vejam, a única coisa que Teresa Cristina com certeza não fazia, era interferir em política, a esfera de ação dela era outra. Ela também presencia o beijo que o marido dá na Barral e pede ajuda ao futuro Duque de Caxias para acabar com o caso dos dois. Teremos, em breve, a visita à Bahia, é meio que uma imposição de Caxias que chama o imperador às suas responsabilidades. Já Pedro invente de levar as filhas com ele para carregar a Barral junto.
A imperatriz pergunta se a Condessa de Barral não se preocupa com o próprio filho, em educá-lo. Enfim, pessoas da nobreza, gente rica, normalmente delegavam essa tarefa para outros. No máximo, supervisionavam parte da educação, que é o que a Barral faz. Mas este não foi o único erro grande dos últimos capítulos. As tranças nagô que serviriam de mapa é uma história sem fundamento e que circulou na internet anos atrás. Mais um problema de pesquisa dos autores. Já Isabel e Leopoldina comendo à mesa com os pais é algo que não ocorreria nunca. Crianças tomavam as refeições em separado nas casas ricas e nobres no século XIX. Não fazer isso gerava espanto, era exceção. Ao que parece, assim como foi com a filha mais velha da Rainha Vitória, a princesa Isabel só pode se sentar à mesa com os pais quando estava para se casar. Era uma questão de etiqueta mesmo.
De resto, procurem bons livros, As Barbas do Imperador da Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga, é um deles, a biografia de Pedro II do Paulo Rezzutti é outro. E tem o canal do Rezzutti, também, houve uma longa live sobre a Barral com uma das grandes especialistas na Condessa dia desses. Vale a pena. E é tudo isso por hoje.
1 pessoas comentaram:
Nossa, esse romance de Dom Pedro II e da Condessa é um senhor desperdício, como você disse. Dava tanto pra fazerem uma construção bonita e aí ter um ar quase épico no momento em que eles enfim resolvem se entregar. Novela meio que enjoou desse estilo de romance mais lento e dramático, né? Tava vendo Hilda Furacão no Globoplay e primeira vez de Hilda e Santo é um super evento que leva tempo (não muito longo já que é minissério, mas demora relativamente). Fiquei com saudades dessa vibe. E não sou nem um pouco puritana - existem novelas e casais em específico que faz todo sentido personagens ficarem juntos logo. Mas é bom uma coisa mais novelão às vezes...
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