Hoje, 19 de agosto, é o Dia do Historiador e da Historiadora. A data foi criada em 2009 e homenageia o político, diplomata e historiador abolicionista Joaquim Nabuco, pernambucano nascido nesta data. Enfim, sou historiadora e estou acompanhando a novela Nos Tempos do Imperador. Dede que as primeiras imagens e vídeos começaram a circular no ano passado, fiquei muito preocupada com a forma caricatural como retrataram Solano Lopez, ditador do Paraguai e alçado a vilão da novela da Globo. Sabia que isso poderia dar problema e, bem, o jornal La Voz Paraguaya publicou um artigo indignadíssimo com o título de "Brasil busca tapar el saqueo y genocidio que cometió contra Paraguay mediante falsificación de la historia" (Brasil busca acobertar saques e genocídios que cometeu contra o Paraguai, falsificando a história).
Não sei como o Paraguai trata Pedro II em suas obras ficcionais, ou se mesmo produzem material nesse sentido, mas desconfio que não deva ser de forma equilibrada, mas não estou aqui para fazer esse jogo de "você não pode reclamar, porque faz, também", porque isso é palhaçada e é possível fazer ficção histórica sem recorrer a esses recursos que a novela está recorrendo. Aliás, eu estou me convencendo que os escritores da novela não consultaram a historiografia mais recente sobre a Guerra do Paraguai, sobre D. Pedro II, enfim, ou, se o fizeram, decidiram seguir outro percurso, um que considero mesmo perigoso, dado o nível de desinformação do brasileiro médio sobre a sua própria História e a veneração que o último imperador do Brasil vem recebendo ao longo das décadas.
É fato que parte da historiografia paraguaia heroicizou Solano Lopez, especialmente, a partir das primeiras décadas do século XX. Não sei o grau de disseminação dessa versão entre a população, nunca li um artigo sequer de História do Paraguai escrita por paraguaios. Não sou especializada em História do Brasil, do Paraguai, ou do século XIX, ou mesmo em História Militar. Minha área é Idade Média e Estudos Feministas e de Gênero e dou aula para o Ensino Médio, tenho que me manter minimamente informada, mas não sou especialista. Muito bem, parte dos escritores brasileiros, muitos não eram historiadores, embarcaram nessa ideia e se criou uma imagem da Guerra do Paraguai (1864-1870), ou da Tríplice Aliança, que foi a que eu estudei no colégio: o Paraguai, futura potência mundial e paraíso na terra (*herdeiro dos Sete Povos das Missões que eram idealizadas, também*), foi massacrada numa guerra covarde por Brasil, Argentina e Uruguai a mando da Inglaterra que temia a o caráter independente dos paraguaios e uma futura competição. Sim, era esse o nível da alopração. Na faculdade, para se ter uma ideia, fiz um curso muito mais ou menos de Brasil II (Império) e sequer falei de Guerra do Paraguai, o centro do curso foram as revoltas regenciais, o resto foi pelas beiradas.
Enfim, com pesquisa mais sérias, fontes mais diversificadas (*desde as oficiais até as íntimas, como cartas e diários*) as coisas começaram a ficar um pouco mais equilibradas. A guerra teve mais a ver com a dinâmica local, as disputas por hegemonia entre Brasil e Argentina, as rivalidades crescentes entre Brasil e Paraguai (*a partir do momento que esse país sai do isolamento*), a necessidade do Brasil em garantir a navegação na bacia no Prata, as intervenções de Paraguai e Brasil na política uruguaia e a tentativa dos paraguaios de assegurar o acesso ao porto de Montevidéu, o que não agradava aos argentinos, também. O Paraguai começou a guerra, sim, ser pequeno não lhe assegura o papel de vítima, o Brasil e seus aliados acreditaram que o conflito seria rápido, D. Pedro II estendeu a guerra até a destruição completa de Solano Lopez, mesmo contra o conselho do Duque de Caxias etc. Tenho um professor que foi meu colega, que é especialista em Guerra do Paraguai e, mais ainda, como a imprensa retratou a guerra, aqui, no Brasil, e no exterior, participou de uma live recentemente. Para quem quiser, é um vislumbre do tipo de trabalho que historiadores sérios produzem sobre o conflito.
Pois bem, a novela muito provavelmente vai tratar todo esse imbróglio da guerra de forma leviana, isso está claro desde a apresentação de Lopez. Como novela tem função pedagógica, porque muita gente não lembra o que aprendeu na escola, ou sequer estudou o assunto mesmo, eu me preocupo com o que as pessoas vão aprender na novela. Sendo na Globo, mais ainda, dada a visibilidade. Neste sentido, eu concordo com a preocupação do texto, ainda que essa louvação de Solano Lopez seja tão absurda quanto a heroicização de Pedro II na novela. E antes que alguém venha dizer que se fosse uma produção inglesa, francesa, norte-americana, esse tipo de caricatura não aconteceria. Olha, crianças, vocês não sabem de nada,ou fecham os olhos para as bobagens que as produções estrangeiras inventam sobre História, ou discriminam as produções brasileiras, especialmente, as telenovelas.
Vou citar exemplos e nem vou falar de cinema americano, porque é super fácil, mas de uma das minhas séries favoritas da BBC, Fall of Eagles (1974), seríssima, elogiadíssima, tem no Youtube, mas nunca me esquecerei do rei da Prússia, futuro kaiser Guilherme I, histérico, pendurado e ameaçando se jogar da janela se seus ministros, especialmente, Bismarck, que era um dos vilões da série, não fizessem o que ele queria. Daí, pego outra série tão elogiada quanto, Edward the Seventh (1975) e a mesma representação ridícula está lá, agora estendida ao neto do kaiser, o futuro Guilherme II. Ou seja, é algo assentado nas produções inglesas ridicularizar o primeiro e o terceiro kaiser, debochar deles, pintando-os como loucos, ou perto disso. Por que não o segundo kaiser, Frederico III? Porque ele reinou poucos meses? Não, porque ele era marido da filha mais velha da Rainha Vitória e é pintado em toda produção inglesa como um homem de ideias modernas e liberais, a moda inglesa, que foi impedido pelo pai e Bismarck de ajudar a Alemanha a ser um país melhor e, claro, impedir que coisas como a Primeira Guerra pudesse acontecer. Sabe, falar de uma coisa para falar de outra? Pois bem, toda produção histórica tende a fazer isso. Os autores de Nos Tempos do Imperador estão fazendo isso o tempo inteiro. É uma novela política e que se traveste de drama romântico.
Agora, debochar de Solano Lopez fingindo que está falando sério, porque a novela chama para si uma seriedade que Novo Mundo não tinha, talvez caia muito mal, porque, bem, as feridas da Guerra do Paraguai continuam meio abertas, ainda há documentos que precisam ser estudados, alguns estão em sigilo (*ou estavam*) e D. Pedro II mais atrapalhou do que ajudou na guerra. Enfim, se você estiver interessado/a em saber mais sobre a Guerra do Paraguai, sem as caricaturas da novela, sugiro ouvir o episódio do podcast História FM sobre a Guerra do Paraguai com a participação do Prof. Francisco Doratioto (UnB), talvez o maior especialista no tema hoje. É longo, mas vale a pena. E ele vai discutindo todos os aspectos do conflito, inclusive suas personagens, os mitos e a historiografia sobre o tema, a brasileira e a paraguaia. É isso, momento histórico no Shoujo Café sem ser sobre mulheres, ou alguma minoria política, mas houve mulheres na Guerra do Paraguai, e não somente como enfermeiras. Me estiquei demais, abaixo, traduzi o artigo do jornal La Voz Paraguaya.
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