sábado, 14 de agosto de 2021

Comentando Doutor Gama (Brasil/2021): "O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa."

Finalmente, uma produção sobre Luís Gama!  Já falei dele mais de uma vez em posts no Shoujo Café (*Exemplo*) e escrevi em todos os posts que era um absurdo que não tivéssemos filme, minissérie, ou novela sobre ele e que torcia para que Lázaro Ramos interpretasse o escravizado que se tornou advogado e conseguiu livrar da servidão quase aproximadamente 500 pessoas.  Doutor Gama é o nome do primeiro filme sobre ele e foi um bom filme, ainda que muito curto para marcar a grandeza da personagem.

O filme não tem pretensões de ser um relato biográfico linear, ele começa com Luís Gama adulto (César Mello) e em um tribunal defendendo um homem que só saberemos quem é no terço final do filme.  Retrocedemos então para a Bahia, onde conhecemos o menino Luís Gama (Pedro Guilherme), sua mãe, negra forra e envolvida com os Malês, a partida da mesma e o choque que foi ser vendido pelo pai para sanar as dívidas.  Acompanhamos o menino no barco, no mercado no Rio, na travessia à pé para São Paulo e temos outro salto no tempo.  O jovem Luís Gama (Angelo Fernandes), escravo de dentro, conhece o estudante Antônio (Johnny Massaro) que lhe apresenta as letras e as leis.  Liberto, outro salto, Gama adulto retorna para assumir um caso muito difícil e que faz eco em eventos de sua própria vida.

Que dizer?  O filme é bem concatenado apesar da proposta dos saltos no tempo.  Não fica faltando nada, na medida que já está dado que não teríamos uma narrativa linear ou a pretensão de mostrar toda a vida de Gama.  Por exemplo, o filme nos mostra sua faceta de poeta, mas não seu envolvimento com o jornalismo, ou com a maçonaria. Como o filme é curto demais, a proposta foi focar a parte final em um caos emblemático, e aposto que inventado, que pudesse sintetizar a forma como Gama atuava.  Temos a legítima defesa do escravizado que mata o senhor, temos a reviravolta ao sabermos que o homem acusado na verdade era livre e foi sequestrado ainda criança e escravizado, temos a eloquência do advogado (*apesar do ator me lembrar mais um pastor falando*) em provar que os negros podem dominar e se sair bem em todas as áreas criadas pelos brancos.

Sim, o filme faz bem essa defesa da igualdade entre negros e brancos, a crítica ao racismo que poderia, ou não, ter matiz científico, e ainda enfatizar que o fundamental reside nas oportunidades.  Ainda, claro, que Gama fosse um sujeito visivelmente dotado para as letras e as leis, ou, pelo menos, o filme assim sugere.  Mesmo de forma tímida, faz-se a crítica à monarquia, afinal, Gama era republicano, como uma instituição cúmplice da escravidão.  As falas reacionárias ficam para o promotor (Erom Cordeiro), que em nada se parece com seu eu jovem, um racista que tenta parecer civilizado e culto.

Gama é mostrado como um homem que confiava nas leis e não compactuava com a violência.  Daí, sua recusa em defender o "criminoso" do caso em destaque no filme.  Não conheço Luís Gama o suficiente para dizer se procede, o fato é que ele defende o assassino do senhor por motivos pessoais, mas acaba tendo que contar com a ajuda e um grupo de escravos fugidos, uma espécie de quilombo em movimento, e que recorria à violência se e quando necessário.  Gama ainda pede que não matem o jagunço que quase o despachou para o além, mas não é atendido por eles, na verdade, por ela, porque a liderança do grupo era de uma mulher, a excelente Dani Ornellas.

Apesar de curto, o filme tem um número relativo de personagens.  Antônio é apresentado como amigo de toda a vida de Gama e é interpretado por dois atores, Higor Campagnaro (adulto) e Johnny Massaro (jovem) e os dois atores tem grande semelhança física.  A película consegue caracterizar muito bem a corte de Luís Gama à futura esposa, Claudina (Samira Carvalho Bento/Mariana Nunes), uma negra que sabia ler e escrever, aliás, a cultura, a educação é muito valorizada no filme como mecanismo não somente de ascensão social, mas de ganho de respeitabilidade em um mundo que julgava os negros e negras inferiores. Zezé Motta faz uma ponta como a sogra de Gama.  E Romeu Evaristo, o Saci do Sítio do Pica-Pau Amarelo da minha infância tem um papel importante a cumprir no filme.  E Doutor Gama cumpre a Bechdel Rule e dá a algumas mulheres um espaço bem grande no filme, especialmente, se levarmos em consideração que ele é sobre um homem e tão curto.

E vamos comentar o problema maior do filme.  Quando Luís Gama descobre que pela lei ele é livre, ele simplesmente diz para o senhor o que descobriu, o afronta e vai embora.  Ao que parece, trata-se de uma parte obscura da vida de Gama, o relato do próprio não diz muito, porém, seria muito estranho um escravo simplesmente dizer para seu senhor que estava livre, sair pela porta da frente e ainda receber de uma escravizada um par de sapatos, símbolo de liberdade explorado mais de uma vez no filme, e ir embora.  Simplesmente não conseguiu me convencer.

E escrevi até agora sem explicar o mecanismo jurídico usado por Luiz Gama para libertar a maioria de seus clientes.  A lei de 7 de novembro de 1831 proibiu o tráfico negreiro para o Brasil e declarou que eram livres todos os que aqui chegassem.  O problema é que muitos senhores continuaram comprando pessoas contrabandeadas, em alguns casos, conseguindo regularizar sua situação por meios fraudulentos.  Gama usava esta lei para conseguir garantir na justiça a liberdade de homens e mulheres, assim como seus filhos aqui nascidos e escravizados, que tivessem entrado no Brasil depois da data.  Aliás, as políticas compensatórias se justificam em cima dessa lei, porque o governo brasileiro foi conivente na entrada de pessoas contrabandeadas e na sua regularização, ou seja, permitiu que fossem escravos pessoas que pela lei do país na época deveriam ser livres.


Algo interessante do filme é conseguir mostrar a existência de uma pequena classe média negra no Segundo Império.  Era gente que, normalmente, ascendia via educação, seja por receber acesso às escolas e faculdades de elite, porque seus pais se sacrificaram para isso, ou mediante bolsas de estudo, seja, como no caso de Luís Gama, por abrir caminho à força, mas, ainda assim, usando a educação como sua marreta.  Alguns desses membros das camadas médias era monarquista e gozava da intimidade do Imperador Pedro II.  Por outro lado, o filme não tocou nos Malês, a maior revolta de escravizados ocorrida no Brasil, tampouco na rejeição aos escravizados baianos, daí, Gama e os outros que vieram no mesmo barco terem sido revendidos em São Paulo, porque foram rejeitados no Rio.

Concluindo, Doutor Gama é um bom filme, mas muito aquém daquilo que uma figura da grandeza de Luís Gama merecia.  O filme já está no Globoplay, mesmo tendo estreado no mês passado no cinema.  Infelizmente, a pandemia está aí prejudicando todos os filmes, os grandes e os pequenos.  De resto, gostei muito do Gama adulto e da sua versão infantil, o menino é muito bom e carismáticos, já o jovem Gama é só aceitável, eu diria. Ah, sim, nos últimos anos há uma disputa cretina (*talvez criada por matérias imbecis*) por Luís Gama entre os liberais (*alguns deles reacionários*) e grupos de esquerda.  Sinceramente?   Acho que Luís Gama não cabe em nenhuma caixinha contemporânea, afinal, ele não está aqui para se posicionar, mas é imoral querer usá-lo como propaganda contra políticas de inclusão social para pessoas pretas ou de combate ao racismo, ainda mais usando uma figura como Luís Gama.   É isso!  Vou assistir ao capítulo de Nos Tempos do Imperador.

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