A Bíblia é um livro violento e não estou acusando, é a constatação de quem cresceu dentro do Cristianismo e tem pelo menos uns 15 exemplares do livro em casa, versões de estudo e normais, na linguagem de hoje, em inglês, a versão hebraica de Sêfer etc. E eu li a Bíblia e no livro de Gênesis estão algumas de minhas histórias favoritas do livro todo, em especial, o drama de José do Egito. Sei que faz um bom tempo que virei manteiga derretida, mas eu choro, ou quase sempre choro quando José se revela aos irmãos e os perdoa.
Eu não estou assistindo Gênesis, até queria, mas não tive como encaixar a novela e acho que, no geral, as novela s bíblicas da Record começaram a deixar de serem interessantes, divertidas e criativas depois que a filha do Bispo Macedo passou a censurá-las. Eu tenho vários textos sobre as novelas da Record, aqui, no blog, e acredito que alguns atores, como Petrônio Gontijo, só foram mostrar seu talento de verdade quando foram para a emissora. Enfim, mas desde A Terra Prometida, a censura passou a ser um problema, mas, normalmente, ela ocorria em material que não era bíblico, mas algo criado para a novela, ou material extra bíblico, não canônico, que é agregado ao roteiro. Pois bem, ao que parece, agora, a censura está sendo feita em material oriundo do próprio livro sagrado dos cristãos.
Segundo o texto da UOL chamado "Record corta cenas de Gênesis após reclamações do público; entenda", o público reclamou de passagens muito violentas e duas sequências são citadas especificamente como tendo sido censuradas. Uma é a do (quase) sacrifício de Isaque (capítulo 22:1-19), a outra, a do incesto das filhas de Ló (capítulo 19:30-38). Para quem não conhece a Bíblia, vou comentar as duas passagens e peço que lembrem que estou colocando nelas as minhas considerações como historiadora, mas, também, a partir da minha formação protestante.
A destruição de Sodoma é uma passagem famosa e ocupa a primeira parte do capítulo 19. Dois anjos foram enviados à cidade, conhecida por seus pecados, para instar Ló, sobrinho de Abraão, um homem justo e rico, a abandonar a cidade, que seria destruída. Naquela mesma noite, os homens de Sodoma, embriagados, batem na porta de Ló, exigindo que ele lhes entregue seus hóspedes (*esta palavra é muito importante*), porque queriam "conhecê-los". "Conhecer" em jargão bíblico é fazer sexo com, neste caso, seria violentar os dois anjos. Ló tenta chamar os homens de Sodoma à razão e diz que não pode entregar seus hóspedes, mas que tem em sua casa duas filhas virgens e que as entregaria aos homens para que fizessem delas o que quisessem.
Ló amargurado vai morar no deserto com suas filhas. A passagem do incesto, que mostra a origem dos moabitas e amonitas, dois povos inimigos dos israelitas. Este texto é tratado pela Bíblia de Jerusalém, a melhor de todas as Bíblias de estudo disponíveis no Brasil, como uma narrativa popular acrescentada ao texto do livro de Gênesis, que é uma colcha de retalhos. As filhas de Ló, isoladas com o pai, temendo o fim da linhagem paterna, o que em uma sociedade patriarcal é algo muito triste, decidem enganar seu pai, um homem justo, o embebedam e engravidam dele. Trata-se, dentro da lógica do livro, de um ato de piedade filial. Não é um ato de luxúria, não era considerado um estupro dentro da lógica do livro, como seria o incidente dos anjos e, ao mesmo tempo, deu aos inimigos de Israel uma origem ilustre, pois descendem de Ló. Já nas Bíblias protestantes, a notinha de rodapé normalmente ressalta que o ato foi um pecado e que a passagem era para destacar o caráter desprezível dos inimigos de Israel na sua origem. Eu imagino as filhas de Ló como boas moças, a Record carregou nas tintas, vide a foto abaixo, para que elas parecessem o contrário.
Já a passagem de Abraão rende muita interpretação teológica entre os protestantes e evangélicos. Durante muito tempo, Abraão sofreu por não ter um filho com sua esposa Sara. O menino da promessa, Isaque, nasce, quando ele já está crescido, adolescente, ou jovem adulto, cronologia de idade nessa parte da Bíblia é problemática, Deus dá uma ordem para Abraão. O patriarca deve sacrificar o seu filho único ao Senhor. Abraão sofre, claro, mas obedece. É sobre isso o texto, obediência à Deus, a capacidade de entregar-lhe tudo. Os sentimentos do menino não estão na balança, mas teriam que aparecer em uma novela. Ele é um prolongamento do pai. O Senhor o deu e, agora, o pediu. Grande drama, sem dúvida. O garoto se deixaria matar pelo pai, Abraão está dilacerado, mas cumpriria seu dever e, no último momento, revela-se a pegadinha. Sim, alguns olham para esse texto como uma grande trollagem divina.
Deus manda um cordeiro para ser sacrificado no lugar de Isaque, a divindade de Israel não quer sacrifícios humanos, o texto de Gênesis, que só foi fixado muito depois dos supostos acontecimentos relatados, traça uma linha de separação entre os israelitas e os povos cananeus. Para os cristãos, era uma imagem do Cristo que seria sacrificado pelos pecados da humanidade. Em todos os meus anos de igreja, assisti várias pregações e lições de revista de Escola Bíblica Dominical sobre o sacrifício de Abraão, porque é dele o sacrifício, não de Isaque, o filho. É o pai que eliminaria sua linhagem, mataria o futuro de sua família, para mostrar sua obediência. Agora, sobre as filhas de Ló, não, não me recordo, mas sobre Sodoma, descartando a questão da hospitalidade, que demanda conhecimento histórico concreto, e enfatizando que os sodomitas seriam homossexuais, quando, se muito, eram estupradores.
Enfim, se confio no texto do UOL, talvez essas duas passagens e sabe-se quantas outras, serão amenizadas, retiradas para não ferir as sensibilidades. Novelas e filmes são adaptações, precisam fundir coisas, modificar passagens, mas o consumidor da novela bíblica da Record, aquele crente médio que vive de fofoca bíblica, pode achar que a produção é uma reprodução fiel do texto. E nunca é. Outra coisa que sempre me chama a atenção e que é importante nas minhas análises de produto da cultura pop, e uma novela é isso, é que tipo de alteração, negociação, exclusão é feita e por qual motivo. Em Terra Prometida, a mocinha guerreira criada para a trama, não era personagem bíblica, teve que ser transformada em uma dócil, submissa e desastrada criatura adorável. A mudança foi tão grande que até meu marido, que só via flashes da novela ficou surpreso.
Concluindo, mesmo se não tivessem inventado nada, o livro de Gênesis já é muito violento por ele mesmo. E os cortes vieram exatamente no material canônico, por assim dizer, ou seja, a Bíblia como ela é parece demasiado bíblica para o público da novela. Curioso, mas não surpreendente, se a gente percebe o quanto aas pessoas costumam ler o texto bíblico de forma seletiva e projetado nele somente os sentidos que lhes importam e interessam. E gente, o que é essa foto de Isaque sorrindo sobre o altar de sacrifício é bizarra, salvo se o menino tivesse sido drogado para aceitar a situação. Realmente, sem noção. Mas, sei lá, de repente, esta é a leitura que a Universal faz do texto bíblico e, sim, as novelas da Record são veículos de promoção de uma leitura específica da do texto bíblico, a da igreja do Bispo Macedo.
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