terça-feira, 15 de junho de 2021

Um pouco de Humor: Novela Gênesis da Record censura a Bíblia por excesso de violência

A Bíblia é um livro violento e não estou acusando, é a constatação de quem cresceu dentro do Cristianismo e tem pelo menos uns 15 exemplares do livro em casa, versões de estudo e normais, na linguagem de hoje, em inglês, a versão hebraica de Sêfer etc.  E eu li a Bíblia e no livro de Gênesis estão algumas de minhas histórias favoritas do livro todo, em especial, o drama de José do Egito.  Sei que faz um bom tempo que virei manteiga derretida, mas eu choro, ou quase sempre choro quando José se revela aos irmãos e os perdoa.

Eu não estou assistindo Gênesis, até queria, mas não tive como encaixar a novela e acho que, no geral, as novela s bíblicas da Record começaram a deixar de serem interessantes, divertidas e criativas depois que a filha do Bispo Macedo passou a censurá-las.  Eu tenho vários textos sobre as novelas da Record, aqui, no blog, e acredito que alguns atores, como Petrônio Gontijo, só foram mostrar seu talento de verdade quando foram para a emissora.  Enfim, mas desde A Terra Prometida, a censura passou a ser um problema, mas, normalmente, ela ocorria em material que não era bíblico, mas algo criado para a novela, ou material extra bíblico, não canônico, que é agregado ao roteiro.  Pois bem, ao que parece, agora, a censura está sendo feita em material oriundo do próprio livro sagrado dos cristãos.

Segundo o texto da UOL chamado "Record corta cenas de Gênesis após reclamações do público; entenda", o público reclamou de passagens muito violentas e duas sequências são citadas especificamente como tendo sido censuradas.  Uma é a do (quase) sacrifício de Isaque (capítulo 22:1-19), a outra, a do incesto das filhas de Ló (capítulo 19:30-38).  Para quem não conhece a Bíblia, vou comentar as duas passagens e peço que lembrem que estou colocando nelas as minhas considerações como historiadora, mas, também, a partir da minha formação protestante.

A destruição de Sodoma é uma passagem famosa e ocupa a primeira parte do capítulo 19.  Dois anjos foram enviados à cidade, conhecida por seus pecados, para instar Ló, sobrinho de Abraão, um homem justo e rico, a abandonar a cidade, que seria destruída.  Naquela mesma noite, os homens de Sodoma, embriagados, batem na porta de Ló, exigindo que ele lhes entregue seus hóspedes (*esta palavra é muito importante*), porque queriam "conhecê-los".  "Conhecer" em jargão bíblico é fazer sexo com, neste caso, seria violentar os dois anjos.  Ló tenta chamar os homens de Sodoma à razão e diz que não pode entregar seus hóspedes, mas que tem em sua casa duas filhas virgens e que as entregaria aos homens para que fizessem delas o que quisessem.

Ló não tinha filhos homens, não sei se os entregaria aos sodomitas caso os tivesse, PORÉM em todo o Mediterrâneo, basta ver as histórias de Zeus disfarçado de peregrino pobre pedindo hospitalidade para testar os seres humanos, o hóspede é sagrado.  Se Ló entregasse seus hóspedes ele estaria cometendo um pecado sem tamanho.  Se entregasse suas filhas, ele poderia se sentir miserável, as moças poderiam passar por mil humilhações, mas sua falta diante da sociedade e de leis não escritas seria pior.  Por isso, eu não leio o maior pecado dos sodomitas como o de querer violentar (*e estupro não é sexo, é um ato de violência*) os anjos em forma de homens, mas de, em maior escala, agirem, também, contra a hospitalidade.  E vem a destruição de Sodoma e Ló e sua família são poupados, recebem a ordem de partir sem olhar para trás, mas a esposa do patriarca desobedece e vira uma estátua de sal.  

Ló amargurado vai morar no deserto com suas filhas.  A passagem do incesto, que mostra a origem dos moabitas e amonitas, dois povos inimigos dos israelitas.  Este texto é tratado pela Bíblia de Jerusalém, a melhor de todas as Bíblias de estudo disponíveis no Brasil, como uma narrativa popular acrescentada ao texto do livro de Gênesis, que é uma colcha de retalhos.  As filhas de Ló, isoladas com o pai, temendo o fim da linhagem paterna, o que em uma sociedade patriarcal é algo muito triste, decidem enganar seu pai, um homem  justo, o embebedam e engravidam dele.  Trata-se, dentro da lógica do livro, de um ato de piedade filial.  Não é um ato de luxúria, não era considerado um estupro dentro da lógica do livro, como seria o incidente dos anjos e, ao mesmo tempo, deu aos inimigos de Israel uma origem ilustre, pois descendem de Ló.  Já nas Bíblias protestantes, a notinha de rodapé normalmente ressalta que o ato foi um pecado e que a passagem era para destacar o caráter desprezível dos inimigos de Israel na sua origem.  Eu imagino as filhas de Ló como boas moças, a Record carregou nas tintas, vide a foto abaixo, para que elas parecessem o contrário.


Estamos agora nos dias de hoje, incesto é considerado um pecado, além de algo socialmente condenável, ainda mais nesse grau, ainda que crime não seja, e a novela teve que se curvar às sensibilidades modernas.  E isso já tinha ocorrido muitos anos atrás com a série Rei Davi (*e vão fazer novela, vai se recontado*), quando o pecado do rei modelo foi embelezado para que deixasse de ser a sacanagem (*duplamente falando, aliás*) que foi. E a mudança privou a audiência de ver as qualidades da personagem, que errava, sim, mas se arrependia e buscava se consertar. Fui ler o texto que está em um dos links da matéria e o ator Emilio Orciollo Netto, que interpreta Ló, diz que foi surpreendido pela passagem, que não sabia do incesto e que se sentiu desconfortável.  Enfim, a Record vai resolver isso, nada de incesto, ou, talvez, ele exista mas seja colocado para parecer outra coisa, enfim... 

Já a passagem de Abraão rende muita interpretação teológica entre os protestantes e evangélicos.  Durante muito tempo, Abraão sofreu por não ter um filho com sua esposa Sara.  O menino da promessa, Isaque, nasce, quando ele já está crescido, adolescente, ou jovem adulto, cronologia de idade nessa parte da Bíblia é problemática, Deus dá uma ordem para Abraão.  O patriarca deve sacrificar o seu filho único ao Senhor.  Abraão sofre, claro, mas obedece.  É sobre isso o texto, obediência à Deus, a capacidade de entregar-lhe tudo.  Os sentimentos do menino não estão na balança, mas teriam que aparecer em uma novela.  Ele é um prolongamento do pai.  O Senhor o deu e, agora, o pediu.  Grande drama, sem dúvida.  O garoto se deixaria matar pelo pai, Abraão está dilacerado, mas cumpriria seu dever e, no último momento, revela-se a pegadinha.  Sim, alguns olham para esse texto como uma grande trollagem divina.

Deus manda um cordeiro para ser sacrificado no lugar de Isaque, a divindade de Israel não quer sacrifícios humanos, o texto de Gênesis, que só foi fixado muito depois dos supostos acontecimentos relatados, traça uma linha de separação entre os israelitas e os povos cananeus.  Para os cristãos, era uma imagem do Cristo que seria sacrificado pelos pecados da humanidade.  Em todos os meus anos de igreja, assisti várias pregações e lições de revista de Escola Bíblica Dominical sobre o sacrifício de Abraão, porque é dele o sacrifício, não de Isaque, o filho.  É o pai que eliminaria sua linhagem, mataria o futuro de sua família, para mostrar sua obediência.  Agora, sobre as filhas de Ló, não, não me recordo, mas sobre Sodoma, descartando a questão da hospitalidade, que demanda conhecimento histórico concreto, e enfatizando que os sodomitas seriam homossexuais, quando, se muito, eram estupradores.

Enfim, se confio no texto do UOL, talvez essas duas passagens e sabe-se quantas outras, serão amenizadas, retiradas para não ferir as sensibilidades.  Novelas e filmes são adaptações, precisam fundir coisas, modificar passagens, mas o consumidor da novela bíblica da Record, aquele crente médio que vive de fofoca bíblica, pode achar que a produção é uma reprodução fiel do texto.  E nunca é.  Outra coisa que sempre me chama a atenção e que é importante nas minhas análises de produto da cultura pop, e uma novela é isso, é que tipo de alteração, negociação, exclusão é feita e por qual motivo.  Em Terra Prometida, a mocinha guerreira criada para a trama, não era personagem bíblica, teve que ser transformada em uma dócil, submissa e desastrada criatura adorável.  A mudança foi tão grande que até meu marido, que só via flashes da novela ficou surpreso.  

Concluindo, mesmo se não tivessem inventado nada, o livro de Gênesis já é muito violento por ele mesmo.  E os cortes vieram exatamente no material canônico, por assim dizer, ou seja, a Bíblia como ela é parece demasiado bíblica para o  público da novela. Curioso, mas não surpreendente, se a gente percebe o quanto aas pessoas costumam ler o texto bíblico de forma seletiva e projetado nele somente os sentidos que lhes importam e interessam.  E gente, o que é essa foto de Isaque sorrindo sobre o altar de sacrifício é bizarra, salvo se o menino tivesse sido drogado para aceitar a situação.  Realmente, sem noção.  Mas, sei lá, de repente, esta é a leitura que a Universal faz do texto bíblico e, sim, as novelas da Record são veículos de promoção de uma leitura específica da do texto bíblico, a da igreja do Bispo Macedo.

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