"(...) o pecado da sedutora é muito maior que o da pessoa seduzida": Colégio em Minas usa texto misógino para responsabilizar as mulheres pelo estupro

Sim, sim, esta frase do título estava em uma circular de um colégio mineiro, o Recanto do Espírito Santo.  Nunca tinha ouvido falar com Colégio Recanto do Espírito Santo, uma escola católica de Itaúna, Minas Gerais, fundada por um casal de religiosos ligada a essa comunidade Recanto do Espírito Santo.  A comunidade, de entendi bem, foi fundada pelo mesmo casal (*algo que veio por "revelação divina"*) e parece ligada ao movimento de Renovação Carismática Católica, que trouxe para o meio católico algumas ideias do neopentecostalismo com um viés católico conservador como forma de se contrapor à Teologia da Libertação, que era particularmente forte na América Latina.  Voltando ao ponto, trata-se de um colégio particular, isto é, matricula seu filho, ou filha, nele quem quer e quem pode.  Nenhum problema, desde que respeitados os marcos da legislação de educação e, claro, a lei como um todo, não há problema.  Muito bem, o tal colégio publicou uma circular nas suas redes sociais que vai contra tudo isso:

Para quem não conseguiu ler, o texto é o seguinte: "Quando a mulher decide expor partes do corpo que deveriam estar cobertas se torna uma sedutora, partilhando assim a culpa do homem. De fato, os teólogos ensinam que o pecado da sedutora é muito maior que o da pessoa seduzida. Guia Mariano de Modéstia".  Olhei o Facebook do colégio e as fotos dos uniformes das funcionárias, e até professoras (*que estava de tênis, pelo menos*), porque uma é apresentada como tal, segue mais ou menos a foto aí de cima, só que com uma mangá maior, mais "modesta".  Um visual que normalmente é associado ao povo pentecostal, mas que é comum nessas comunidades católicas ditas conservadoras.

Olha, está tudo tão errado nesse negócio que eu poderia partir do ponto de que a "mulher modesta" ela é sempre branca, que a mulher modesta sempre está usando saia e salto alto (*não seria esse um elemento de sedução, também?*), mas vamos começar pelo tal Guia Mariano de Modéstia ("Marylike Modesty Handbook of the Purity Crusade of Mary Immaculate).  Ele existe, ele está disponível na internet, ele é de autoria de um padre norte-americano chamado Bernard A. Kunkel, que morreu em 1969.  Ele culpa as mulheres pelo assédio que sofrem?  Sim, eu acabei de ler.  Ele vai além, ele diz que os homens são tentados por um rosto bonito, então, o que dirá um pedaço a mais de perna, ou ombro?  Ora, se um homem pode justificar que caiu em tentação por causa de um rosto, e se a mulher, por mais casta e modesta, é corresponsável pelos desejos dele, o que uma mulher poderá fazer para evitar estupros e assédios?  Eu realmente não sei, mas é fácil achar imagens do que seria "moda modesta" na internet, catei várias para este post.

Na verdade, os que defendem que uma mulher deve se vestir com modéstia nunca se sentirão plenamente satisfeitos, afinal, se um rosto pode ser a razão da perdição de um homem, só mesmo metida em uma burqa uma mulher estará SALVANDO os machos que a circundam.  Mas eis que mulheres de burqa também sofrem assédio.  Então, pode ter sido uma mão desnuda, ou um pé que ficou de fora, ou um sapato mais atraente, ou a sua voz.  Há alguns grupos islâmicos, como o Talebã, e ultra-ortodoxos judaicos que proíbem que as mulheres possam cantar.  O que quero dizer é que se a gente leva em consideração o que esses misóginos (*SIM, NÃO É MACHISMO, É MISOGINIA!*) falam e escrevem, a gente não vive, a gente para de existir.

Depois do escândalo provocado por essa circular , o colégio se desculpou “Olá, paz e alegria! Foi feita uma postagem indevida por quem administra nossas redes sociais. Apesar de concordarmos com a modéstia no vestir, o texto em questão deixou margem para interpretações que não são as do colégio. Pedimos desculpa. O post foi excluído. #nãoaoestupro, #aculpanuncaédavitima".  Continuam batendo na tecla da modéstia, claro, mas acho que vocês que leem este texto devem ter entendido como se trata de uma armadilha, porque, enfim, segundo o tal guia, até o rosto de uma mulher pode fazer um homem pecar, então, o que fazer?  (*Abaixo, outra foto adulterada para a que a mulher fique "modesta".*)

A presidenta do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres e integrante da Comissão da Mulher Advogada da OAB Minas Gerais, advogada Cristiane Lara soltou a seguinte nota: "Nós, mulheres e homens, temos o dever de zelarmos e vigiarmos para que nossos direitos não nos sejam tomados e essa publicação sugere justamente o contrário. Esperamos de uma escola que ensine que todos devemos respeitar mulheres e meninas como seres dotados dos mesmos direitos e deveres que os homens e meninos. Repudiamos o conteúdo desta postagem e entendemos como inadmissível a propagação de pensamentos preconceituosos e que não contribuem para uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária e liberta de preconceitos".  O que o colégio fez foi justificar a cultura do estupro e reforçar que as mulheres devem sempre se sentir culpadas pelo assédio que sofrem, pelo estupro do qual foram vítimas.  Pobres homens!  Eles são assim mesmo, não conseguem se controlar.  Daí, o "prendam suas cabritas, porque meu bode está solto."

É muito comum que se apontem os dedos para os muçulmanos quando se trata em impor vestimentas às mulheres, desde um simples hijab (véu) colorido e leve até uma burqa, porque é imposto, sim, por educação, por doutrinação religiosa, por cultura, por coerção familiar, mas o meio cristão está permeado de ideias semelhantes.  E há um agravante, no Islã, o homem transgressor sempre é considerado culpado em algum grau por um ato imodesto, pode escapar por algum recurso legal, por ser rico, por casar com a vítima, tudo varia de país para país, mas dentro da ortodoxia da religião, ele sempre será culpabilizado.  Agora, o cristianismo cria escapes para os homens, talvez, tudo seja um desdobramento um tanto esperado da forma como Eva é tratada dentro dos discursos, enfim, e estão ensinando isso nas escolas.  O texto desse colégio é criminoso, porque está em oposição à legislação vigente no país sobre estupro e assédio e por estar plantando a culpa na cabeça das meninas e a certeza da impunidade na dos meninos.  

Termino contando causos de minha vida.  Eu cresci em um meio religioso.  Nasci em uma família Batista que, pelo lado materno, remonta quatro gerações.  Para Brasil, isso é muita coisa, levando-se em consideração que os batistas vieram para o Brasil no final da década de 1880 e minha família é nordestina.  Lembro de uma revista da Mocidade que trazia a reprodução de um texto de 1922, acho, louvando as moças que eram modestas no vestir, porque a beleza de um rosto era suficiente, como uma flor que reluz em um jardim.  Era um textinho bonitinho e que não associava o pecado à mera exposição do rosto de uma mulher.  Agora, lembro, também, eu estava no final da adolescência, de uma palestra para as "moças" da igreja ministrada por uma mulher, porque nada melhor do que tornar mulheres porta-vozes desse tipo de discurso como uma forma de legitimação, que veio com algo semelhante, a mulher modesta não deve usar roupas chamativas, decotadas, enfim, porque os homens... Essa história de culpar as mulheres pelo assédio não é nova, não pensem que é.  Enfim, eu gostava muito da irmã que estava falando, mas lembro de ter feito uma intervenção.  Eu poderia ser um elemento bem desagradável em situações como essas e com dois agravantes, eu era articulada e minha mãe era meio que o modelão ideal da mulher virtuosa, era um escudo em algumas situações e um peso enorme, também, mas isso seria assunto para outro texto.

Finalizando, não acho que esse "deslize" vá prejudicar em nada a escola, que tem instalações muito boas, a julgar pelas fotos.  Eles não vão perder nenhum aluno, ou aluna, acredito, afinal, parece ser uma instituição voltada para um nicho religioso muito específico.  Tampouco, esse tipo de escola católica representa o conjunto das instituições de educação católicas, algumas com uma qualidade acadêmica acima da média, mas, sim, há católicos que pensam desse jeito e há escolas contaminadas.  Serve, portanto, de alerta para quem acredita que o pensamento reacionário e misógino não está se entranhando em todo lugar e a escola, claro, é um lugar importantíssimo, porque você está trabalhando com mentes em formação e as conformando a um mundo que é violento, hierarquizado e misógino.  Para quem quiser ler sobre o caso, Estado de Minas e  O Globo foram as minhas fontes.

P.S.1: Um hominho passou aqui no blog e deixou um comentário fingindo-se de desentendido e que a circular do colégio é somente uma declaração lícita de moral sexual.  Se assim fosse, caro comentarista, a instituição manteria a posição, afinal, quem coloca seu filho, ou filha, nessa escola ESCOLHEU um certo modelo de educação baseada em certo conjunto de valores, mas tudo, claro, tem imite, não é mesmo?  Apaguei seu nome para evitar a passagem de vergonha, mas tenho que deixo o comentário para apreciação geral do malabarismo discursivo da criatura.

P.S.2:  A pessoa voltou e deixou outro comentário, desta vez, tentando explicar o pedido de desculpas.  😉  Não sei se ele vai continuar postando, mas não vou publicar os comentários de quem acredita que plantar a culpa na cabeça de meninas e criar escapes para a violência sexual dos homens é o mesmo que seguir uma dieta alimentar determinada por princípios religiosos.  Isso nada tem a ver com ter moral sexual, tem a ver com misoginia.  Guilherme, seja meu antigo stalker de mais de uma década, ou algum visitante novo, arrume o que fazer.  Eu acredito que você tenha mais o que fazer, nem que seja rezar.