sexta-feira, 12 de março de 2021

"Como a presença feminina tem mudado a produção de quadrinhos no Brasil, com narrativas cada vez mais plurais" Comentando a matéria


Guardei esta matéria do Globo para comentar, porque ela é ótima e muito problemática ao mesmo tempo.  Antes de prosseguir no meu texto, peço que abra e leia a matéria que parece um título de TCC ou dissertação de mestrado, bastava tirar o "como" e ficava ótimo.  Já leu?  Favor continuar. 

A matéria, que é escrita por um homem, se propõe a dar visibilidade ao trabalho das mulheres quadrinistas, só que lança uma ideia que não é discutida em nenhum momento, a do elogio de que uma boa quadrinista é aquela que desenha como um homem.  "Mulheres costumam fazer quadrinhos fofos".  Essa questão é muito incômoda, porque serve para demarcar o bom do mau quadrinho feito por mulheres.  Se parece ser feito por um homem, o quadrinho tem chances de chamar a atenção.  Sobre o mesmo tema, o Quadrinhos na Sarjeta apresentou um filme que foi exemplar para questionar e derrubar preconceitos sobre a arte das mulheres quadrinistas.  E é uma pessoa que nem trabalha com gênero, mas diz no vídeo que toda vez que faz algum vídeo sobre artistas mulheres, ele é menos visitado.

Resumindo a minha crítica, quadrinhos fofos podem ser feitos por homens e mulheres e eles podem ser bons sendo desse jeitinho.  Quadrinhos bobos podem ser feitos por homens e mulheres, assim como HQs com linhas mais pesadas e sombrias, ou temas macabros, ou eróticos.  Dizer que uma mulher "desenha feito homem" é uma forma de estigmatizar os quadrinhos feitos por mulheres, a multiplicidade de temas abordados como algo menos interessante, a não ser, claro, que receba ou joinha de um homem.  Quando a gente pensa que virou a página, não que eu pense isso, afinal, para que eu abri o Shoujo Café mesmo?  Queria que a matéria fizesse a crítica a essa ideia, mas ela não faz.  E o texto circulou e ninguém pareceu perceber o problema..

Quando alguém como a Germana, uma das artistas citadas no texto, e que eu conheço pessoalmente, dá o nome para a sua antologia de  “Gibi de menininha”, ela está se apropriando do termo que serve para estigmatizar e o subverte.  Agora, se uma mulher diz que "escreve como homem", "desenha como homem", normalmente, o faz para se afirmar em um meio que discrimina as mulheres e, talvez, ela mesma veja o trabalho de outras mulheres como inferiores, porque, bem, sua obra é reconhecida automaticamente como feminina, seja por não usarem siglas ao invés de seu nome verdadeiro, seja por se preocuparem como temáticas que não são do interesse (geral) dos homens.

Pois bem, o último ponto é Laerte não deveria ser a mulher trans de destaque no artigo. Adoro Laerte, já a vi duas vezes em eventos de quadrinhos, um na UnB e outro na USP, só que  Laerte se tornou Laerte antes de transicionar, seu sucesso foi alcançado quando ainda se percebia como homem cis e é bem legal como ela fala de como seu trabalho mudou nessa nova fase de sua vida. Agora, será que se ela já se apresentasse como é hoje no início de sua carreira teria o espaço para produzir, trabalhar, sem receber qualquer estigma?  Sua experiência como mulher trans impacta seu trabalho, PORÉM Laerte já era Laerte, muito antes disso.  

Se a matéria queria dar espaço para artistas trans, até poderia ter Laerte, mas deveria buscar mulheres que estão lutando por um lugar ao sol neste momento e trabalhando apesar dos estigmas e da resistência.  Repito, Laerte era Laerte quando ainda não se percebia e era percebida como um homem cis.  Pensem nisso e vejam como a matéria perdeu o foco várias vezes.

Sim, é ótimo falar da diversidade, dar voz às artistas, lhes nomear para que quem não conhece possa ir atrás do seu trabalho, agora, lançar o "desenha feito homem" sem relativizar, ou sugerir que essas mulheres se destacam, porque se afastaram do "fofo", não é algo que sirva para ajudar as mulheres artistas no geral, só reforça preconceitos mesmo em relação às mulheres artistas e ao que é quadrinho de qualidade, que merece ser lido, lançado, e os que não são.

4 pessoas comentaram:

Tenho reportagem de jornal belga "Le Soir" sobre vitória de Rumiko em Angouleme !!
O jornal aborda a imensa força das japonesas em contraste com as estadunidenses e europeias.
confira no onedrive!
https://1drv.ms/u/s!AoTWdIn8bUurgth6k0pCpRZPK6lhLw?e=Iz9Ix0

e os jornalistas e youtubers japoneses ?? como abordam esse assunto ?

Mulheres sempre estiveram desenhando, escrevendo e ilustrando, como bem disse o texto, entretanto como os homens detiveram majoritariamente os meios de produção, nunca se fez questão de perceber a presença feminina nesse meio. Acho até óbvio eles enxergarem o quadrinho feminino como algo "delicado", porque nunca interessou conhecer o que as mulheres produziam, então achar que sombras e contrastes fortes é "coisa de homem" parece um caminho normal pra eles. Isso me dá preguiça.

Agora, colocar Laerte como segunda pessoa mencionada no texto foi estarrecedor. Um sem número de mulheres desenhistas merecendo espaço, desconhecidas do grande público, cheias de talento e capacidade para dar destaque a uma pessoa que já desenhou as coisas mais machistas e misóginas (não devemos esquecer isso) em quase sessenta anos não me desceu. E a charge de sua autoria no texto me fez questionar: o que é ser mulher no mundo?

Adoro essas matérias sobre gênero e quadrinhos. Desenho por hobbie e as vezes fico até constrangida em dizer que faço quadrinhos, justo por esses motivos. Essa questão de desenho fofinho é bem verdade, conheço meninos que têm um traço muito mais fofinho e delicado do que o meu, por exemplo. Não li a matéria, mas foram realmente vários vacilos, a começar pela Laerte e por falar em desenhar como homem para elogiar o trabalho de uma mulher quadrinista, Me dá muita preguiça também esse tipo de coisa. As pessoas podem ser muito mais inteligentes do que isso. Agora deu saudade do blog Lady's Comics.

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