Ontem, comemoramos os 245 anos do nascimento de Jane Austen. No fim de semana, mesmo sem planejar, reassisti a primeira grande adaptação para o cinema de Orgulho & Preconceito e pretendia fazer uma resenha comemorativa dos 80 anos do filme. Já era minha intenção resenhar o filme, mas o que me impulsionou foi ver um vídeo da atriz Marsha Hunt, que faz Mary Bennet, assistindo a si mesma em uma cena do filme. Ela tem 103 anos e ainda está viva e parecia bem emocionada. Comentar o filme de 1940 é uma boa forma de fechar a série de resenhas de adaptações do livro de Jane Austen que fiz este ano.
Pois bem, vamos a um resumo rápido do filme. Começamos nossa história na vila de Meryton, onde mora a família Bennet que tem cinco filhas solteiras e cuja propriedade só pode ser herdada por um parente do sexo masculino. Eles vivem de forma confortável, mais do que em outras adaptações, aliás, mas se acontecer alguma tragédia com o chefe da família, o destino da viúva e das moças pode ser muito ruim. Por isso mesmo, Mrs. Bennet (Mary Boland) tem urgência em casar as filhas e fica excitadíssima com a chegada de dois distintos cavalheiros vindos de Londres, ambos são solteiros e se tornam alvo do interesse das melhores famílias da cidade. Bingley (Bruce Lester) se interessa pela filha mais velha, Jane (Maureen O'Sullivan), enquanto Mr. Darcy (Laurence Olivier) inicia uma relação conturbada com outra das irmãs, Elizabeth (Greer Garson).
Após os desentendimentos iniciais, Darcy termina por se interessar por Elizabeth, mas ela se deixa convencer de que o rapaz seria uma pessoa desagradável e mesmo desonesta a partir de observações superficiais e das mentiras contadas por Mr. Wickham (Edward Ashley Cooper). A situação é agravada quando Elizabeth descobre que Darcy separou Bingley de Jane por acreditar que a união iria prejudicar seu amigo. Mas os acontecimentos acabam convencendo a moça de que ela está sendo movida por preconceitos e que Darcy errou, mas não era o sujeito sem caráter que ela pensara que ele era.
Nem sei se este é um bom resumo, talvez, devesse ir até uma das resenhas que fiz este ano e pegar o texto de lá alterando algumas coisas e os nomes do elenco. O fato é que essa primeira grande filmagem de Orgulho & Preconceito, e que foi fundamental para a publicação de Jane Austen no Brasil, é uma grande produção de sua época, mas tomou muitas liberdades em relação ao original. Isso não é ruim por princípio, toda adaptação toma liberdades em relação ao original, se afasta e se aproxima, mas no caso de Orgulho & Preconceito 1940, existe uma subordinação total ao modelo de cinema que se fazia na época. Sem concessões.
Primeira coisa a se destacar é que o filme transferiu a ação da década de 1810, que é a escolhida por boa parte das adaptações para situar a história, para a década de 1830. A rigor, Austen começou a escrever Orgulho & Preconceito em 1796 com o nome de First Impressions. O livro, no entanto, só foi publicado em 1813, sendo antecedido por Razão & Sensibilidade em 1811. Por exemplo, o filme de 2005 foi ambientado na virada do século XVIII para o XIX, já as minisséries de 1980 e 1995 jogaram a ação para a década de 1810. Não há problema nenhum nisso, desde que seja mantida a consistência.
Por qual motivo a produção de 1940 escolheu os anos 1830? Não sei, mas imagino que a ideia, talvez, fosse oferecer figurinos mais luxuosos, vestidos rodados e com muitos detalhes, já que o início do século XIX era marcado pela simplicidade. Havia demanda por essas produções luxuosas, E o Vento Levou... é do ano anterior, e Orgulho & Preconceito teve como figurinista um dos mais importantes de sua época, Adrian, que foi responsável pelo filme Maria Antonieta, entre outros.
Outra mudança foi transformar o filme em uma comédia assumida. Há humor em Jane Austen e não é pouco, mas dificilmente você vai gargalhar, ou lerá cenas de humor beirando o pastelão. O tom da película é dado desde suas cenas iniciais com Mrs. Bennet, na pele da maravilhosa Mary Boland, iniciando uma corrida de carruagens com Lady Lucas (Marjorie Wood) para que suas filhas possam ter a chance de encontrar os rapazes recém-chegados antes que a filha da outra dama, Charlotte (Karen Morley), o faça. Há, também, a sequência inteira da briga de Kitty (Heather Angel) com Mary, com direito à papagaio, louça quebrada e Lady Catherine de Bourgh (Edna May Oliver) sentando em uma caixinha de música.
Não há nada disso no original, mas é algo ao gosto da Hollywood da época. Algumas interpretações são particularmente cômicas, por exemplo, Mary é a irmã Bennet engraçada com as caras e bocas que faz, além da sua falta de noção. Vide a cena, que está no livro, em que Mary canta na festa de Netherfield. Agora, o que é diferente foi a transformação do baile em um dia de prazeres na propriedade alugada por Bingley. Sabe o que pareceu? A festa na casa dos Wilkes logo no início de E o Vento Levou...
Um terceiro ponto deste filme é que ele tem como objetivo promover a sua estrela, Greer Garson. Como era típico dos anos 1930 e dos anos 1940, a produção gira em torno de uma atriz que centraliza toda a ação do filme e pouco importa se ela estivesse velha demais para o papel. Sim, Garson tinha 36 anos e era mais velha que seu Mr. Darcy. Agora, se vocês pegarem Maria Antonieta, de dois anos antes, verão que é a mesma coisa. Norma Shearer era mais velha que seus parceiros em tela e começa o filme encarnando uma adolescente. Nessa versão de Orgulho & Preconceito, em nenhum momento nos é dito a idade de Elizabeth.
Essa era dos filmes com mulheres poderosas dominando a cena e fazendo par romântico com homens às vezes muito mais jovens, terminou com a Segunda Guerra. Os filmes centrados em mulheres continuaram existindo, mas com o backlash (*retrocesso*), suas tramas se tornaram cada vez mais domésticas e figuras fortes como as interpretadas nos anos 1930-40 por Joan Crawford, Bette Davis, Barbara Stanwyck, Katharine Hepburn, se tornaram muito raras, o que sobrou foram exceções e ainda estamos esperando que a representação de homens e mulheres em tela se equilibre pelo menos. De qualquer forma, esse tipo de filme nunca seria reprovado na Bechdel Rule.
Nesse Orgulho & Preconceito, temos uma Elizabeth Bennet forte, determinada, voluntariosa e (*que se acha*) racional. A protagonista, até para marcar sua diferença, é a única que usa um cabelo absolutamente descolado da década de 1830. Você olha para Greer Garson e ela tem um visual moderno e está com os dois pés na década de 1940. Fora isso, ainda que ela use também os vestidos super detalhados, o figurino da personagem tem roupas bem práticas, uma delas, um terninho, me parece gritar década de 1890, ficaria ótimo em uma feminista sufragista, mas nada tem de 1830. E me lembrou de cara o tipo de vestimenta que uma Katharine Hepburn usaria.
E como é o Darcy de Laurence Olivier? Assim como aconteceu com o Heathcliff interpretado pelo ator em O Morro dos Ventos Uivantes (1939), as características da personagem são atenuadas. Ele começa muito esnobe, verdade, e há o uso de vários trechos do livro um tanto modificados. Aliás, mexeram em duas falas importantes de Darcy. Quando ele responde para Sir William Lucas (E. E. Clive), que louva os benefícios da dança, que "every savage can dance" (todo selvagem pode dançar), o "savage" vira "hotentote", uma etnia negra, nativa da África do Sul, considerada muito primitiva pelos europeus. É algo bem racista, eu diria e não é Austen. Selvagens podem pertencer a qualquer grupo, ou etnia. A outra passagem é uma das mais icônicas do livro e a mudança é significativa.
Bingley quer convencer Darcy a dançar. Ele sugere Elizabeth e Darcy prontamente fala da mãe da moça. Bingley insiste, diz que ele vai dançar com a filha, não com a mãe e Darcy retruca "(...) she looks tolerable enough. But I'm in no humor tonight to give consequence to middle classes at play." ("ela parece tolerável o suficiente. Mas não estou com humor esta noite para dar importância à classe média à disposição.") No original era o seguinte “She is tolerable; but not handsome enough to tempt me; and I am in no humour at present to give consequence to young ladies who are slighted by other men." (“Ela é tolerável; mas não bonita o suficiente para me tentar; e no momento não estou com humor para dar importância às moças que são menosprezadas por outros homens.")
Percebam que Austen não faz nenhuma menção à classe, mas ela é muito importante neste filme. Talvez, por incompreensão de quem escreveu o roteiro, ou para facilitar o entendimento da audiência norte e, investiu-se pesadamente na ideia de que Elizabeth e Darcy são de classes sociais diferentes, quando não eram. Ambos eram membros da gentry, pequena nobreza rural, e dentro dela cabiam famílias de condições modestas até as muito, muito ricas. No livro, quando Lady Catherine de Bourgh tenta humilhar Elizabeth e fazê-la perceber que não pode se relacionar com seu sobrinho, a jovem retruca dizendo que Darcy é um cavalheiro e ela a filha de um cavalheiro, portanto, eles eram iguais (*quanto à classe*). O filme ignora isso completamente.
Mas, enfim, o Darcy do filme não demora nem uns quinze minutos para estar aos pés de Elizabeth. Ela chega a amolecer um pouco, só que Darcy recua em uma excelente sequência na qual todos os problemas da família disfuncional da moça ficam evidentes. Para se ter uma ideia, e isso é invenção do filme, Kitty aparece embriagada durante a festa em Netherfield. No entanto, passada a situação, Darcy logo decide esquecer de tudo isso e tentar conseguir o amor da moça de novo. Ainda assim, mesmo a cena do primeiro pedido de casamento é atenuada.
Desculpe quem gosta, a coisa até fica engraçada de tão constrangedora, mas eu considero o Darcy de Olivier, cheio de rapapés, tentando rir e fazer rir, se arrastando atrás de Elizabeth bem irritante. Ele é o não-Darcy para mim. E não sei o que passou pela cabeça da produção, afinal, Darcy, diferentemente de Heathcliff, que tem comportamentos criminosos mesmo, é uma personagem gostável, a história vai fluindo e oferecendo motivos para a gente acreditar que ele é uma pessoa legal, apesar de ser reservado demais e passar uma mensagem errada de excesso de orgulho. E isso nada tem a ver com o talento dele como ator, ou o filme ser divertido, porque ele é, só não se trata da personagem de Jane Austen. É outra personagem ocupando o lugar de Mr. Darcy.
Neste filme, Wickham está presente desde o início, ele e Darcy se encontram já no primeiro baile e a voluntariosa Elizabeth recusa o convite para dançar do mocinho como uma forma de afronta. Edward Ashley-Cooper segue a receita Clark Gable de canalha sedutor: moreno, alto, com bigodinho. Um tipo considerado atraente na época. Só que ele não tem tempo no filme para ser tão venenoso e a irmã de Darcy só é mencionada, mas esse Wickham tem algo de curioso, desde uma das primeiras cenas ele parece disposto a arruinar Lydia (Ann Rutherford). Ele deixa isso evidente em pelo menos um comentário quando a moça, que é muito mimada, tenta atrapalhar a aproximação entre o rapaz e Elizabeth.
Nesse filme não há a viagem de Lydia, ela foge com Wickham de Meryton mesmo. Como? Ninguém sabe, porque estávamos em Rosings quando tudo aconteceu. E Elizabeth não tem ciência da perfídia do rapaz, porque não existe a carta de Darcy. Eu fico imaginando como decidiram mudar algo tão importante. Darcy, mesmo humilhado, vai até Elizabeth consolá-la, prestar solidariedade e contar quem é Wickham quando a confusão está armada. Praticamente um bloco inteiro do livro (*os tios que vem de Londres, a visita à Pemberley, a aproximação entre Elizabeth e Darcy*) é retirada.
Cenas engraçadinhas, como a do arco e flecha, que expõe o machismo de Darcy, são criadas, mas elas não compensam as perdas. Por exemplo, é inventado que os Bennet, que foram descritos como classe média, tem uma casa na praia e iriam se retirar para lá e escapar da vergonha criada por Lydia. Quando Elizabeth volta, a família já está planejando essa "fuga" para se ver livre dos mexericos e da exclusão social.
Eu não comentei, nem irei falar de tudo, mas Mr. Collins (Melville Cooper) é uma graça nesse filme. Não se fala, eu não vi pelo menos, que ele é pastor, parece que ele é um funcionário de Lady Catherine (Edna May Oliver) em outra função. Mr. Collins é interpretado por um ator muito mais velho que a personagem, mais que a média, mas ele é tão divertido, que eu esqueço desse detalhe. Ele examina a prataria e a casa dos Bennet, porque irá herdar tudo, é hostilizado por Mrs. Bennet até que ele decidem que quer casar com uma das filhas da família. Ele persegue Elizabeth nos jardins de Netherfield e bebe demais. Há uma cena em Rosings, residência de Lady Catherine, na qual Charlotte discretamente tira o copo da mão dele.
Mais tarde, ele volta a aparecer na história, como no livro, quando da desgraça de Lydia. Diz até que era melhor que ela estivesse morta. Aqui, estamos seguindo o livro de perto, mas com toques de humor. Na casa de Lady Catherine, temos a presença do Coronel Fitzwilliam (Gerald Oliver Smith), que não contribui muito para a história. Ele está vestido com um uniforme escocês, quando deveria estar civil por causa da folga, e fica rindo do comportamento ridículo (*é mesmo*) do primo e da língua ferina de Elizabeth. Não há a cena dele contando para Elizabeth que Darcy separou Bingley de Jane, é a moça que faz referência à conversa.
Agora, uma coisa bem curiosa, esta adaptação é a única que tem uma Anne de Bourgh (Gia Kent), a prima prometida à Darcy, que é arrogante e desdenha de Elizabeth. Ela nem parece tão doente assim, aliás. E já que falei de Anne malvada, vamos para Caroline Bingley. A atriz que a interpreta, Frieda Inescort, tem uma voz grave, rica e uma presença bem forte em cena. Ela é, talvez, a Caroline mais pérfida de todas as adaptações. Venenosa mesmo. Caroline é que precipita a tomada de posição de Bingley (Bruce Lester) de voltar para Jane. Bruce Lester é bem elegante, bonito e mais assertivo que os outros Bingley. Ele tem a aparência do playboy galã bonzinho dos filmes daquela época.
Vamos lá, uma mudança curiosa. Logo no início do filme, Mrs. Bennet e outras senhoras estão falando de Darcy e dizem que ele é neto do Marquês de Scarlingford. Não sei por qual motivo mexeram nisso, mas Darcy é neto de um conde. O coronel Fitzwilliam fala que é o filho mais jovem de um conde. Lady Catherine e a mãe de Darcy, Anne, são ladies, porque são filhas de conde. Agora, marquês é um degrau acima. De repente, o objetivo fosse exaltar Darcy ainda mais, pergunto-me, no entanto, se a audiência do filme estava ciente dessas hierarquias.
Ah, sim! A única das moças que tem a idade revelada é Lydia e bem no final do filme. Mrs. Bennet diz cheia de orgulho que sua filha está casada e só tem 16 anos. Não sabemos se Elizabeth está fazendo 21 anos, ou é bem mais velha. Não temos ideia da idade de Charlotte Lucas, também. De resto, não falei de Mr. Bennet (Edmund Gwenn), mas ele é totalmente conivente com a esposa na sua sanha de casar as filhas. Ele alfineta, brinca, mas está longe de ser o pai e marido bully das outras adaptações e do original. E o ator me parece pequeninho em cena comparado com o resto do elenco.
É isso. Fazia uns dez anos que não revia este filme. Queria ter a cópia colorizada, a primeira vez que vi foi nesse formato, e era muito bonito, mesmo que artificial. Se eu esqueço um pouco o livro, consigo gostar da Elizabeth de Greer Garson, mas o Darcy de Laurence Olivier é uma versão muito ridícula do original. E, repito, isso nada tem a ver com ele atuar bem, ou estar lindo, porque está. E o final do filme é exatamente a cena que a Marsha Hunt estava assistindo. Depois de Elizabeth e Jane se entenderem com Darcy e Bingley, dois caras se materializam na casa dos Bennet para Mary e Kitty. Final feliz, bem engraçadinho, mas pouco a ver com o livro original.
1 pessoas comentaram:
Muito boa, sua resenha!
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