quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Bisneta de Monteiro Lobato publica versão não-racista da obra do autor

 

Essa conversa já está rolando faz dias, mas decidi fazer um pequeno post, porque saiu matéria na Folha comentando da insatisfação de elementos do governo, em especial o presidente da Fundação Palmares, em relação à nova versão.  Vamos lá, já escrevi um, ou mais posts, sobre as polêmicas relacionadas ao Sítio do Pica-Pau Amarelo antes, achei dois posts de 2010 (*1 - 2*).  Apesar da desgraceira toda que aconteceu em nosso país desde então, minha opinião segue a mesma, a obra original não deve ser mutilada, deve estar disponível nas bibliotecas escolares com o acréscimo de notas de rodapé e uma introdução crítica explicando o racismo do autor.  

Sim, ponto importante, Monteiro Lobato era racista e em um nível além daquele que era socialmente comum na época em que viveu.  Lobato era militante e sua obra foi rejeitada nos EUA, vejam só, por esse motivo, o que o deixou furibundo. Para se ter uma ideia, Monteiro Lobato louvava a Ku Klux Klan.  E segue um trecho de uma carta do autor para ilustrar: "País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan (sic), é país perdido para altos destinos [...] Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva".

Isso vai fazer com que eu pegue a obra dele e diga "Jogue fora!".  Não, mas não podemos ignorar isso de forma alguma.  Com o passar do tempo, infelizmente, eu me sinto cada vez mais tentada a duvidar que muitos professores e professoras estejam habilitados a perceber o racismo do autor, por um lado, sem negar a importância do mesmo para a literatura nacional, por outro.  Eu não vou romantizar minha classe profissional, tenham certeza disso.  É complicado, sim.

Voltando à essa versão depurada da “A Menina do Narizinho Arrebitado”, eu achei as ilustrações muito fofas, mas, se tiver que escolher uma edição para a Júlia, optarei pela original, porque, sim, ela continua disponível.  Não se trata, como muita gente, inclusive os membros do governo que criticaram parece acreditar, que a versão original será tirada de circulação.  Compre a que quiser, ou não compre.  Vou reproduzir as palavras de  Cleo Monteiro Lobato: "A gente queria uma versão atualizada, cujo teor fosse compatível com os valores sociais contemporâneos, mas que mantivesse o estilo do Lobato (...) Nós não a desvirtuamos, porque a original continua lá, existindo e disponível. Se eu tenho a possibilidade de me posicionar de maneira positiva, eu escolho a mudança.”

Há inúmeros livros, de vários autores e autoras, que são adaptados e vendidos faz décadas.  Provavelmente, há várias versões reduzidas e adaptadas de Monteiro Lobato no mercado, mas nenhuma feita pela bisneta do autor e corrigindo conscientemente as passagens racistas do original.   Eu já comentei por aqui que a primeira edição de Little Women (Adoráveis Mulheres, As Filhas do Dr. March) lida por mim na adolescência não mostrava a morte da Beth.  Era da coleção Elefante da Ediouro.  Nem lembro mais qual o malabarismo feito, mas Beth não morreu.  Quando assisti o filme de 1949, fiquei meio que em choque com a morte da menina e o sofrimento de Jo.  Vejam, alguém lá nos anos 1960, 1970, achava que a morte da personagem em um livro infanto-juvenil poderia ser omitida, uma morte que era fundamental para o andamento da história.  Não havia movimento social algum clamando por isso, enfim.

Voltando ao presidente da Fundação Palmares, há poucas pessoas nesse governo atual que me causem tanta repulsa.  Trata-se de uma autoridade que tem particular apreço em disseminar o racismo, perseguir desafetos e descredenciar causas sociais importantes.  Sua última ação a ter grande divulgação midiática, foi a desqualificação do cabelo crespo, atiçando ainda seus milhares de seguidores contra um rapaz na internet.  É horrendo. E basta abrir os jornais todos os dias e ver o quanto o racismo é presente em nosso país e que não precisamos de autoridades disseminando esse tipo de comportamento social escudando-se no fato de ser ele mesmo um homem negro.  Racismo é crime e deveria ser punido sempre.  

1 pessoas comentaram:

Estou vendo sua discussão só agora, depois de mais de um ano ausente nas leituras aqui do blog, mas agradeço seu posicionamento, Valéria.
A maioria de nós lemos obras, como você mesmo mencionou, reeditadas e nem sabemos o que pode ter mudado em relação a obra original mas nem por isso deixamos de ler. Quem tem interesse em pesquisar e ler ambas as versões, que o faça. Quem optar por uma delas, que o faça. O que não havia era necessidade dessa figura, colocada para presidir a Fundação Palmares e outros adeptos de ideias do mesmo naipe que ele, fazerem críticas a algo que em nada fere o direito de escolha no interesse literário social, e que se trata de uma decisão que coube estritamente aos descendentes do próprio autor da obra, e não dele. Muitos que criticaram nunca devem sequer ter se importado em ler Monteiro Lobato, principalmente com a facilidade que as adaptações televisivas do Sítio do Pica-pau Amarelo trouxe.
Nem é preciso dizer o quão estúpido foi da parte dele fazer uma crítica negativa a essa versão editada da obra. Se ainda pudesse estar vivo, Monteiro Lobato nem teria simpatia pelo presidente da Fundação, ainda que ele estivesse em sua defesa.. -.-

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