Em 2017, foi revelado que o esqueleto de um guerreiro viking icônico descoberto em 1880 era de uma mulher. "Mas, Valéria, como assim eles não sabiam?" Ora, apesar das características anatômicas que sinalizam se um esqueleto é masculino, ou feminino, a ideia de que uma mulher pudesse ser uma guerreira parecia tão absurda que os cientistas decidiram ignorar as EVIDÊNCIAS para não terem que repensar a forma como eles viam o passado a partir das suas experiências do presente. A ciência não é neutra, os cientistas não estão em uma bolha impermeável a todos os -ismos mais ofensivos.
Por qual motivo estou fazendo esse preâmbulo? Ora, nas últimas duas semanas, e não comentei por falta de tempo e porque minha mão direita está machucada, multiplicaram-se matérias que falavam da existência de mulheres caçadoras naquele período que chamamos de Pré-História e que as sociedades daquele período da História da humanidade seriam muito mais igualitárias do que os cientistas imaginavam. Sim, imaginavam, projetavam no passado suas ideias a respeito das possibilidades de organização social dos nossos ancestrais. Eu ri muito com a surpresa e com as reações das pessoas "Você viu, Valéria? Você viu?"
Resumindo a brincadeira, encontraram-se evidências sólidas de que havia mulheres caçadoras de grandes animais nas Américas. E daí? Bem um a das narrativas sobre a origem da divisão social do trabalho e, claro, dos papéis femininos e masculinos nas sociedades pré-históricas é que os homens eram caçadores, enquanto as mulheres ficavam nas cavernas, ou nos acampamentos e aldeias, cuidando das crianças, coletando alimento (*posteriormente plantando*) e preparando a carne que os valorosos membros do sexo masculino traziam para casa. Sabe todas aquelas construções de gênero que são tão comuns até hoje? Homens sempre se arriscavam pelo grupo, já as mulheres sempre foram as cuidadoras. Mulheres no ambiente doméstico, homens no ambiente público, blá-blá-blá. Enfim, esse estudo muito sólido questiona todas essas fantasias que naturalizavam comportamentos. Citando o texto da Hyperscience:
“Nossas descobertas me fizeram repensar a estrutura organizacional mais básica dos antigos grupos de caçadores-coletores, e grupos humanos em geral”, disse Haas. “Possivelmente por causa de suposições [históricas] sexistas sobre a divisão de trabalho na sociedade ocidental, descobertas arqueológica de mulheres com ferramentas de caça simplesmente não se encaixavam nas visões predominantes do mundo. Foi preciso um caso forte para nos ajudar a reconhecer que o padrão arqueológico indicava o comportamento de caça real das mulheres.”
Valéria está surpresa? Não. Como historiadora já vi essas ideias projetadas em vários contextos diferentes. Estudei mulheres religiosas no século XIII e já encontrei gente que se resumia a escrever, ou dizer, que as mulheres não participaram dos movimentos espirituais de sua época, porque tinham que ficar em clausura (*sem poder sair do espaço do convento-mosteiro*) e o poder na Igreja Católica era masculino. Era se submeter, ou a heresia. Daí, você mostra textos de época e evidências de que a própria noção de clausura estava sendo construída e sendo imposta entre os séculos XII e início do século XIV e muita gente ignora.
É mais cômodo repetir a mesma narrativa que em alguns casos nem é somente machista, é misógina mesmo, porque estabelecer um padrão de comportamento masculino e feminino (*e nem vou discutir da própria existência de masculino e feminino, minha mão não permite*) é atemporal permite garantir a manutenção das hierarquias e relações de poder em nossos dias. E quando a criatura não consegue mais negar as evidências, pode recorrer ao argumento de que esse tipo de estudo não é relevante.
Retomando, essa descoberta e estudo publicado tem impacto, porque choca os inocentes, mais vai provocar a reação, também, gente vindo dizer que é exceção, que as fontes não são conclusivas, que é impossível desconsiderar todos os estudos anteriores. De qualquer forma é importante ressaltar que a imagem do poderoso caçador do sexo masculino é uma construção e que a divisão de tarefas entre mulheres e homens deveria ser muito mais diversa nos primeiros grupamentos humanos. E tem uma parte engraçada no artigo que estou usando como base: "“Os objetos que acompanham as pessoas na morte tendem a ser aqueles que as acompanharam em vida”, escrevem os autores do estudo."
Você encontra um túmulo de mulher com "coisas de homem" (*Há Há Há*) como armas de caçador, ou de guerreiro, ou signos de poder inequívoco, ou essa mulher é homem, lembre do nosso viking, ou a tendência seria fazer um tremendo malabarismo para explicar que aquilo teria uma função ritualística, simbólica, nunca real. Tenho 44 anos, já li e ouvi muita coisa absurda, especialmente, quando o assunto é papel das mulheres, ou diversidade sexual. Lembram dos Amantes de Módena? Durante muito tempo, arqueólogos, historiadores e público em geral romantizavam em cima de dois esqueletos enterrados de mãos dadas. Um casal, sem dúvida, afinal, naquela posição, de mãos dadas, comparem como outros túmulos e trá-lá-lá. Daí, chegaram a conclusão, lembrem de nossa guerreira viking, de que eram dois meninos. Começam do saltos interpretativos: são irmãos, amigos, enterrados em tempos diferentes etc.
Na verdade, ninguém sabe se eram de fato amantes, para mim, aliás, isso é o de menos, PORÉM isso não era um problema até que se colocou em risco a heteronormatividade e as narrativas sobre o passado, aquilo que eu chamei na minha tese de doutorado de "eco historiográfico". Um diz, outro repete, e o outro e mais outro e, bem, ninguém sabe mais onde começou, mas está todo mundo cansado de ler e ouvir em algum lugar. E há um comentário nesse texto dos amantes de Módena dizendo que os historiadores honestos não ficam projetando sentidos, ou suas crenças e (pre)conceitos em suas fontes. Desculpe, não é questão em muitos casos de honestidade, ou não, você simplesmente não consegue ver, porque suas estruturas mentais não lhe permitem. Mas os casos de adulteração para evitar "um mal maior" existem, também. E recomendo um episódio da Família Dinossauro em que os arqueólogos e paleontólogos encontram uma TV e o chefe da escavação manda enterrar de novo, porque eles não teriam como encaixar o artefato na sua narrativa sobre o passado.
É por essas e outras que velhas fontes podem oferecer possibilidades de estudos e discussões mesmo depois de serem visitadas várias e várias vezes. Cada época faz suas perguntas, e estou parafraseando March Bloch, eu acrescentaria que, às vezes, a gente faz as perguntas que é capaz de fazer, em virtude de nossas condições de produção (*recursos, possibilidades, tempo*), ou de imaginação. Sim, é um texto meio mal humorado, mas escrever textos longos me faz sentir dor e estou com a cabeça ocupada por montes de preocupações, então, eu fico feliz com os resultados dessa pesquisa (*o artigo pode ser lido aqui*) e que elas sejam publicizadas, apesar de ter encontrado um texto de 2015 sobre o mesmo assunto, sei que é importante para o grande público, mas tenho que lembrar que o buraco é muito mais embaixo.
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