Enola Holmes, o filme da Netflix (resenha aqui), vem atraindo muita atenção, o que não é surpresa, pois Millie Bobby Brown é muito talentosa e carismática e a película ficou bem divertida. Agora, o filme chamou atenção, como não poderia ser diferente, para o detetive, Sherlock Holmes. Assim como na época do seriado Sherlock da BBC, muita gente está descobrindo, ou redescobrindo Holmes agora e isso ótimo. Esta semana viralizou o post de uma moça que diz só ter descoberto que Holmes não era uma personagem real graças ao filme. Muita gente riu, eu ri, mas o fato é que não é tão absurdo, durante muitas décadas foi criado todo um culto em torno da personagem que tinha como objetivo lhe dar materialidade.
Na verdade, meu riso é mais fruto de um ridículo elitismo meu mesmo, não há nada de errado em descobrir na idade que seja que uma personagem ficcional não existiu de verdade, ou melhor, ela existe, mas não como um agente histórico. Curiosamente, muitas personagens históricas tiveram sua existência tão embelezada que elas, de uma certa forma, também são um pouco ficcionais. Tiradentes, por exemplo, teve sua vida romanceada para se tornar o mártir da república, um ícone para um novo regime sem símbolos e, no momento em que iniciou, sem muito apoio popular, também. Agora, no caso de Holmes, houve muita gente que se esforçou para que a personagem ficcional parecesse histórica a tal ponto que ele virou uma entidade autônoma e eclipsou seu criador, Sir Arthur Conan Doyle.
Por exemplo, se você for até Londres poderá visitar a casa da personagem em Baker Street 221B. É como as casas de personagens históricas preservadas para o deleite do grande público. William S. Baring-Gould escreveu uma biografia detalhadíssima da personagem preocupando-se em colocar tudo em ordem cronológica, além de outros livros sobre a personagem. Holmes parece muito real graças a Conan Doyle e os especialistas que se esforçam por tentar dar sentido aquilo que o autor deixou em aberto. Por exemplo, Holmes tinha um irmão mais velho que Mycroft? Eu comentei sobre isso em um texto, antes da estreia de Enola Holmes. Resumindo, não é um sinal de ignorância descobrir somente agora que uma das personagens mais representadas da ficção (*cinema, seriados, animação, teatro, rádio novela, games etc.*) é ficcional.
Vamos para a segunda parte agora, saiu uma matéria na BBC intitulada Como Enola Holmes: 4 mulheres da vida real ofuscadas por seus irmãos mais famosos. Como parte da propaganda do filme, a Netflix erigiu estátuas temporárias de uma mulher, a irmã esquecida, perto da de homens famosos. Enola perto de Sherlock Holmes, Frances 'Fanny' Elizabeth Dickens ao lado de Charles Dickens, Mary Hardy ao lado de Thomas Hardy, Maria Anna 'Nannerl' Mozart ao lado de Wolfgan Amadeus Mozart, e a Princesa Helena ao lado do Rei Eduardo VII. Muita gente achou super legal e feminista, eu fiquei olhando e realmente não achei muito legal, não. Vou explicar.
Primeira coisa, Enola Holmes é criação de Nancy Springer; ela nunca existiu. Não houve uma irmã genial eclipsada pelo irmão genial, porque a sociedade patriarcal discriminava as mulheres. Tenho medo que gente comece a colocar na cabeça, porque não sabe que Enola Holmes deriva de uma série de livros, que Conan Doyle a escondeu, ou que Holmes, que para muita gente é uma personagem de verdade, impediu a irmã de seguir sua carreira como detetive. Aliás, a discussão relevante do texto da BBC é que os contos com mulheres detetives existiam na década de 1880, quando Holmes foi criado, mas elas não conseguiram se tornar ícones literários. O que já faria com que Loveday Brooke, de 1893, não fosse a primeira.
Das mulheres eclipsadas que foram citadas, a única que teve uma vida realmente triste foi Nannerl, porque era uma criança musicista prodígio, foi exibida pelo pai nas cortes europeias junto com sue irmão menor, mas, ao chegar na adolescência, foi proibida de se apresentar em público. Para Leopold Mozart, e boa parte da sociedade, mulheres de bem não trabalhavam, a profissão de artista não era muito diferente da de prostituta e se a moça tocasse de graça, qual seria o lucro para a família? As composições de Nannerl foram elogiadas pelo irmão, ou seja, Mozart não atuou contra ela. Agora, o pai nunca fez menção aos trabalhos musicais da filha. Viúva, Nannerl lecionou música para sobreviver e sustentou filhos com seu salário, economizando e deixando uma fortuna considerável, mas nada do que ela compôs sobreviveu.
Quando li a primeira vez sobre Nannerl, imaginei que poderia ter ocorrido o seguinte, ela compôs algumas das peças de Mozart, mas o irmão as assinou para que elas pudessem ser executadas. Ele não teria roubado a irmã, mas sido um canal para a divulgação de sua música. Mas isso é Valéria imaginando mesmo. De resto, salvo por Nannerl, que era musicista como seu irmão, todas as demais não atuavam no mesmo campo de seus irmãos. Como se pode falar em ofuscamento nesse caso?
Fanny Dickens, por exemplo, teve seu talento reconhecido pela família, que fez algo incomum para uma família de classe média da época, retirou recursos da educação de seus filhos homens para que ela pudesse ter uma educação musical de primeira linha. Isso era muito incomum. Casada, ela continuou sua carreira junto com o marido, que também era músico, porém, um de seus filhos tinha uma saúde precária e, como era esperado de uma mulher da época e mesmo hoje, Fanny passou a se dedicar quase que exclusivamente à família. Fora isso, ela desenvolveu tuberculose e morreu com 38 anos. Em que Dickens eclipsou, ou ofuscou, a irmã? Dickens era péssimo marido, mas nada teve a ver com a carreira da irmã.
A princesa Helena era bem conhecida nos seus dias, mas não foi rainha e tinha mais oito irmãos e irmãs com quem dividir os holofotes, ela não era sequer a irmã mais velha e nenhum de seus filhos, ou filhas, obteve algum destaque histórico maior. Além disso, seu irmão, o rei Eduardo VII, é bem irrelevante, também. Motivo? Foi ofuscado por uma mulher, a mãe dos dois, a formidável Rainha Vitória. Ainda que tenha sido um rei razoável, ele não tem como competir com a mãe. Quanto à Mary Hardy, ela foi professora e diretora de escola. Uma carreira como educadora era uma das poucas opções respeitáveis abertas para uma mulher no século XIX. Agora, quem é professor/a sabe que raramente nos tornamos famosos, nossa felicidade é servir de degrau para que nossos alunos e alunas possa ascender e voar. Thomas Hardy não ofuscou a irmã, eles não estavam competindo na mesma liga.
O que eu quero dizer é que a sorte dessas mulheres, ou pelo menos de algumas delas, foi determinada pelas limitações de seu tempo, ainda assim, salvo por Nannerl, todas tiveram uma vida produtiva e confortável. Não sei se vem ao caso usar os irmãos como se eles fossem responsáveis por elas não serem mais famosas. Resumindo, achei a campanha da Netflix de um feminismo bem rasteiro, porque quem limitava as mulheres eram as estruturas sociais e os homens selecionados pouco ou nada determinaram na condição de suas irmãs, por assim dizer. No caso de Nannerl, por exemplo, o agente castrador foi o pai, mas seria possível listar outras mulheres que tiveram seu trabalho explorado, ou roubado, por maridos ou irmãos ou pais, enfim. De homens que atrapalharam ativamente a vida das irmãs, basta pegar o caso das irmãs Brontë. E, ainda assim, para a nossa felicidade, elas deixaram seu legado, enquanto seu irmão, bem...
E, só reforçando, Sherlock Holmes nunca existiu, mesmo que ele pareça muito real. Enola Holmes não existe no cânon, assim como nenhuma outra irmã do detetive, mas eu acho divertida essa história de criar outros familiares para o grande detetive, normalmente, gente que tem o mesmo dom que ele E, sim, para quem viu o filme, Mycroft era o irmão mais esperto de Sherlock Holmes e, não, um idiota pomposo. Aliás, um dos defeitos do próprio livro é carregar Mycroft de tintas negativas. Terminando, já estão discutindo o segundo filme de Enola Holmes e é bom que ele aconteça e que esqueçamos Mycroft Holmes, porque, do jeito que ele foi construído, não faz falta alguma.
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