Essa montagem está circulando no Facebook e um amigo repostou. Quem leu minha resenha de Enola Holmes, sabe que eu fiz várias ponderações sobre o filme e seus problemas históricos, mas que elogiei bastante a atuação de Susie Wokoma, no papel de Edith. No filme, ela é professora em uma academia secreta de Jiu-Jitsu, que funcionava sobre uma confeitaria, na qual ela mesma trabalhava. Para não ter que explicar de novo, havia população negra na Inglaterra desde a época romana e isso é documentado, Jane Austen tem pelo menos uma personagem negra, uma mocinha rica, aliás, e que negros não são uma invenção de cineasta que quer ser politicamente correto, ou, como alguns gostam de escrever "lacrar". Agora, é uma opção de cineastas e escritores colocá-los, ou não, em suas histórias e, o que é também importante, em que tipo de história eles cabem, ou não cabem.
Pois bem, prontamente, um rapaz deixou um comentário bem bobinho no post do meu amigo dizendo que isso jamais (*ele usou JAMAIS*) seria dito por uma negra, que elas só falariam sobre o jantar e coisas domésticas. Ele não escreveu um negro, já que imagino que ele consiga lembrar de algum homem negro politicamente expressivo do século XIX, porque imagino que ele não estivesse pensando somente em Inglaterra, ele especificou que uma mulher negra não seria capaz de discutir política naquela época (*o filme se passa em 1900 em uma linha de tempo que eu considero alternativa*).
Será que alguém um dia vai contar pra ele (*eu não tenho paciência nem tempo para dar uma aula particular para desconhecidos aleatórios na internet, eu escrevo textos aqui e torço para que leiam*) que havia mulheres negras que estudavam até a universidade (*quando lhes era possível e permitido*), que participavam de movimentos políticos, desde o abolicionismo até o sufragismo, que eram pregadoras e líderes religiosas, professoras, cientistas, musicistas etc.?
Enfim, Enola Holmes tem muitos problemas em relação às questões raciais, coloquei isso em minha resenha, mas não é Edith o problema. Ela pertence a uma rede de militantes feministas-sufragistas subterrânea. Esse grupo foi inspirado no Women's Social and Political Union (WSPU), mostrado no filme Sufragistas. Elas não eram sufragistas pacifistas, por assim dizer, mas praticavam uma série de pequenos atos violentos, ou que atrairiam uma atenção sensacionalista, para conseguirem fazer avançar sua causa. E, bom lembrar, elas foram agredidas primeiro, a adesão as ações violentas se deu depois.
O WSPU existiu de 1903 até 1918, a Primeira Guerra ajudou a esvaziar o movimento, porque sua líder, Emmeline Pankhurst, mesmo do exílio forçado para não ser presa, decidiu que a organização deveria suspender suas atividades e aderir ao esforço patriótico de guerra. As sufragistas socialistas, como sua própria filha Sylvia, foram contra essa atitude e o movimento, que era somente o mais radical dentro dos grupos sufragistas britânicos, rachou.
Emmeline Pankhurst foi presa várias vezes, assim como suas filhas (Christabel, Sylvia e Adela), e várias mulheres membros do movimento. Elas eram presas, sofriam diversos maus tratos, eram pressionadas por autoridades e parentes e, ao reagir com greves de fome, eram alimentadas à força. Voltando para Edith, dentro da lógica do filme e, neste caso, a histórica, ela, como mulher negra, deveria ter duplo cuidado e manter-se nas sombras. Falando nisso, é difícil encontrar nomes de sufragistas negras na Inglaterra, diferentemente das indianas, mas as que tem seu nome lembrados eram todas, sem distinção, mulheres das elites, princesas mesmo, como Sophia Duleep Singh.
Uma das grandes críticas feitas ao filme Sufragistas foi o fato de ter apagado essas mulheres indianas. Acabei de descobrir que outra crítica poderia ser ao apagamento de Adelaide Knight, importante sufragista, membro do WSPU, mulher das classes populares, com deficiência e casada com um homem negro, que apoiava sua luta política e cuidava da casa e das crianças enquanto a mulher estava em sua militância política, ou na prisão. Ela deixou o WSPU, porque acreditava que o movimento era elitista e que não tinha um programa para as mulheres pobres.
Agora, se eu não consigo encontrar mulheres negras na luta sufragista britânica, quer dizer que elas não existiam? De forma alguma, mas estavam diluídas na massa de mulheres pobres, ou nem tanto, cujo nome não ficou registrado. E mais, é um absurdo afirmar que elas todas, porque são um bloco monolítico, não se preocupassem com nada além de suas panelas e dos cueiros de seus filhos e filhas. Mas é muito interessante manter essas ideias para continuar com o blá-blá-blá de que evoluímos de um pior para um melhor, de que as mulheres brancas lutaram para que todas as outras tivessem direitos e que homens brancos bons foram seus aliados. Agora, se eu for para o outro lado do Atlântico, eu tenho o nome de muitas sufragistas e militantes politicas norte-americanas, mulheres cultas e sem muita instrução, algumas bem posicionadas na sociedade e outras das classes populares.
Com o centenário da 19ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América, a que deu o direito de voto para as mulheres, seu papel vem sendo resgatado, porque, sim, durante muito tempo se deu todo o protagonismo foi dado para as mulheres brancas e, também, porque o direito de voto não chegou imediatamente para as mulheres de cor em várias regiões dos EUA. Antes mesmo do centenário, o filme Iron Jawed Angels (Anjos Rebeldes, no Brasil) protagonizado por Hilary Swank no papel da militante sufragista Alice Paul, discutiu esse "pequeno" incômodo, o racismo de parte das sufragistas norte americanas.
Não pensem que só por estar na moda hoje comprar pacotes fechados de ideias, que as pessoas são coerentes em suas crenças. Não entendeu? Hoje, se um sujeito se afirma como de direita e conservador (*que nem a cara dele, na maioria das vezes, mas deixa pra lá*), normalmente pode esperar que ele se posicione contra os direitos das mulheres e outras minorias (políticas), que acredite que não existe aquecimento global, que pense que os comunistas dominam as universidades, os bancos e a mídia, e, talvez, até que a Terra seja plana. Em outros tempos, as pessoas eram mais seletivas, ou menos radicais em sua ignorância e insensibilidade.
Querem um exemplo curioso? Gertrude Bell (1868-1926), a primeira mulher a se formar com honras máximas em Oxford, arqueóloga pioneira, espiã britânica, cartógrafa, escritora, ativista política, figura que viajou sozinha por vários países e regiões bem perigosas antes até que os homens brancos, era contra o voto feminino. Ela era membro desde os 17 anos de uma associação anti-sufragista. Bell acreditava que as mulheres não estavam prontas para votar, que havia hierarquias que mantinham a sociedade coesa e que, bem, ela era uma exceção e podia dar um jeitinho para conseguir o que quisesse usando sua inteligência, cultura, dinheiro, enfim. Ela estava errada? Claro, que eu penso que estava, mas ela é menos brilhante por causa disso? Não.
Enfim, muitas sufragistas brancas queriam o direito de voto para si e suas filhas e netas, mas, não, para as mulheres negras, porque acreditavam que elas eram inferiores, ou que não tinham discernimento para votar ainda. Alice Paul, no filme, prometo resenhá-lo um dia, quer uma aliança com uma organização negra sufragista, mas sabe que mulheres negras e brancas não poderiam marchar juntas, que muitas de suas companheiras não aceitariam isso e que a opinião pública poderia se voltar ainda mais contra elas. Os Estados Unidos eram, e ainda são, um país racista. As líderes negras não aceitam um acordo de cooperação que mantivesse a segregação.
O que eu quero dizer é que se a pessoa estiver disposta a largar de modelos prontos sobre como eram os séculos passados e abrir a mente para perceber os indícios, as contradições dos discursos, as fontes que estão ao nosso dispôr, mas para as quais ainda não fizemos algumas perguntas, a gente consegue descobrir que a nossa História é muito mais rica do que ela aparenta. No caso do sufragismo britânico, talvez não tenhamos lideranças negras, mas Edith, no filme, não era uma liderança, mas um soldado fiel que estava cuidando do treinamento das militantes que iriam enfrentar a polícia e outros homens nas manifestações. Agora, o grande problema nesse diálogo, se me permitem falar como mínima conhecedora de Sherlock Holmes, é a fala do detetive.
Holmes não se preocupava com nada que não fosse ajudar no seu trabalho. Por isso, Watson, seu parceiro e biógrafo ficou tão chocado ao descobrir que Holmes sequer sabia que a Terra orbitava o Sol. Ele fica alegre feito uma criança ao ser comunicado disso para, em seguida, dizer para Watson que iria esquecer da informação, porque o cérebro é como um sótão que deve ser mantido bem organizado e não entulhado de coisas inúteis. Horrível, mas Sherlock Holmes não era um sujeito que se preocupava se uma coisa era chata, ou não, mas com a instrumentalização do conhecimento para se atingir uma meta, isto é, se tornar o melhor investigador que o mundo já conheceu.
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