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domingo, 27 de setembro de 2020

Comentando Enola Holmes (Netflix/2020): A Irmã Mais Esperta de Sherlock Holmes

Enola Holmes, novo filme da Netflix baseado na obra de Nancy Springer e Sir Arthur Conan Doyle, estreou no dia 23 de setembro.  Logo que o filme foi anunciado, comprei o livro que lhe daria origem, The Case of the Missing Marquess, e comecei a ler.  Como quase sempre acontece, começo um livro, paro, pego outro, me distraio.  Resumindo, não concluí a leitura.  Estava mesmo disposta a deixar para fazer a resenha depois de terminá-lo, estou com 48% dele lido, mas, melhor, não, vamos resenhar.  Estou com umas quatro resenhas que deixei pra lá e não fiz.  OK.  Como começa nosso filme?

Enola Holmes (Millie Bobby Brown) mora com sua mãe, Eudoria (Helena Bonham Carter), na propriedade rural da família.  Uma mulher pouco ortodoxa, obcecada por códigos secretos e como decifrá-los, Eudoria dá para sua filha uma educação pouco convencional e moderna, mas a mantém reclusa e distante do mundo. A menina explica mesmo que seu nome é um anagrama, isto é, uma palavra que pode ser lida de outras formas.  Enola = Alone, sozinha.  No dia do 16º aniversário da menina,  ela acorda para descobrir que sua mãe desapareceu sem deixar vestígio.  Enola, então, precisa chamar seus dois irmãos mais velhos que não vê faz anos, Mycroft (Sam Claflin) e Sherlock (Henry Cavill), sim, o famoso detetive, para encontrarem sua mãe.

Os dois não reconhecem a irmã na estação de trem e Mycroft fica horrorizado com sua aparência, falta de modos e porque percebe que o dinheiro que repassava para a mãe não tinha sido utilizado nem na educação da menina, nem na manutenção da casa.  Mycroft decide dividir as tarefas, Sherlock deve encontrar a mãe desaparecida, enquanto ele deve conseguir uma escola para Enola e manda chamar Miss Harrison (Fiona Shaw), a diretora, para buscar a menina.

Enola suplica para nãos er mandada para o internato, mas Mycroft não se comove e Sherlock não interfere.  Miss Harrison se mostra cruel com a adolescente, que decide escapar e procurar sua mãe com as pistas e o dinheiro que ela deixara para trás escondido.  No trem, o caminho de Enola se cruza com o do jovem Marquês de Tewkesbury (Louis Partridge).  O rapaz está fugindo como ela e há gente querendo matá-lo.  Enola acaba se compadecendo dele e decide investigar quem deseja assassinar o garoto.  Esta decisão aumenta seus problemas, porque ela ainda tem que encontrar sua mãe e se livrar dos irmãos, que desejam encontrá-la.

Que eu posso dizer de Enola Holmes?  É um filme divertido e Millie Bobby Brown está maravilhosa como a menina irmã do famoso detetive e que compartilha do seu talento para a investigação.  Eu não assisto Stranger Things, nunca tinha visto Brown atuando e fiquei impressionada com sua competência para carregar o filme nas costas ancorada em um bom elenco, claro, começando com o jovem Louis Partridge, que está muito bem no papel do marquês que acabou de herdar as propriedades e o título do pai.  Para quem só quer se divertir e de bônus ter Helena Bonham-Carter como uma engajada feminista e Henry Cavill lindo enfeitando a tela, serão 2 horas de diversão garantida.

O filme, no entanto, não quer ficar somente aí.  Ele quer trazer discussões sobre reformas sociais (*sufrágio universal masculino*) e feministas que tocam diretamente a protagonista.  Enola não foi educada para se enquadrar, para se submeter à convenções, só que é isso que seu irmão mais velho espera dela, submissão e ajuste ao que a sociedade exige.  Só que sua mãe não deixou Enola desarmada, além de sua afiada inteligência, ela tem a coragem para tomar seu destino em suas mãos e é isso que ela faz.

Para despistar os irmãos e proteger o marquês, ela usa de vários disfarces e muita coragem.  E o crime em andamento, o assassinato do rapaz, tem a ver com as discussões sobre as mudanças sociais em andamento.  Enola tem contato com uma rede de militantes feministas sufragistas, obviamente inspiradas na Women's Social and Political Union (WSPU), mostrada no filme Sufragistas, e que praticava pequenos atentados para provocar o avanço nas discussões sobre os direitos das mulheres.  Helena Bonham-Carter faz uma Eudoria que não é muito diferente do seu papel em Sufragistas, aliás.

Falando nisso, o Jiu-jitsu é mostrado no filme, Enola recebeu lições de sua mãe e, em Londres, ela entra em contato com Edith (Susan Wokoma), que mantém uma academia para mulheres.  Essa história de juntar Jiu-jitsu e o movimento de mulheres pelo voto procede?  Sim.  Algumas sufragistas aprendiam a arte marcial para se defender da violência policial e de homens que as atacavam em suas manifestações de rua.  Há um quadrinho chamado Suffragitsu, que aborda o tema.  Eu gostei muito de Susan Wokoma nesse filme, queria mais cenas dela com Enola e seu irmão, Sherlock Holmes.

Falando em Wokoma, vamos para a representatividade.  O elenco é multirracial.  Isso é bom, porque não havia somente brancos na Inglaterra, porém, acredito que o filme mostra uma ideia de inclusão racial equivocada para aquele período.  Uma escola como a para qual Enola é enviada, voltada para moças mais velhas que estavam concluindo sua formação antes do casamento, poderia ter alunas asiáticas e negras, afinal, o Império Britânico era multirracial.  Mas teria professoras?  E duas ainda?  Lestrade, o inspetor sempre diminuído nos contos por Sherlock Holmes, é interpretado por um ator de origem paquistanesa, Adeel Akhtar.  

Meu receio é que filmes assim ajudem a criar na cabeça da audiência uma ideia de democracia racial que não existia, com pessoas de cor em funções de poder e destaque sem que ninguém lhes aponte o dedo, ou tente rebaixar.  Gente como o Mycroft do filme, não seria somente classista e misógino, ele seria racista, também, afinal, a ciência do século XIX era eugênica e partia da ideia de uma hierarquia entre as "raças".  O filme quer discutir reformas sociais, direitos das mulheres, mas passa ao largo do racismo.  Isso é bom?  Não, não é, me parece artificial e perigoso.

Já que falei de Mycroft, uma das piores coisas do filme é a personagem de Sam Claflin.  Começamos pelo que eu já pontuei antes da estreia da película, o ator é muito jovem para o papel, porque Mycroft era sete anos mais velho que Sherlock.  Outra coisa, o construíram como uma feroz caricatura reacionária.  O cânon nada nos fornece sobre as opiniões políticas de Mycroft.  Ele e Holmes eram parecidos, se o detetive era misógino e adepto dos racismos do século XIX, ele deveria ser, também.  

Agora, Mycroft era inteligente, Sherlock não cansava de dizer, nos poucos casos em que o irmão aparece, que ele era mais inteligente e com um cérebro mais dedutivo, só não tinha energia.  Era sedentário e fisicamente corpulento se comparado com o irmão, e um misantropo, alguém que queria ficar o mais longe possível do resto da humanidade.  Uma regra de ouro no Diógenes, o clube frequentado pela personagem, é que os seus membros não podiam sequer conversar.  Enfim, o Mycroft do livro já não era bom, o do filme é uma coisa triste.  Ele, no entanto, não é o vilão de Enola Holmes, longe disso, ele é somente um antagonista irritante.  Depois do trailer, quero registar algumas palavras sobre quem queria matar o marquês, então, se você não tiver problemas com spoilers, siga para lá.  

Outros problemas do filme, vamos lá.  No livro, Enola tem 14 anos.  eu preferia que ela fosse mais jovem, mas decidiram que ela seria mais velha, talvez, para não ter problema com o clima de apaixonamento pelo jovem marquês.  O povo hoje anda muito neurótico e acredita que adolescentes não têm libido, porque o que temos em alguns momentos entre Enola e o marquês é tensão sexual, além de ser uma situação evidente de descoberta do primeiro amor.  Independentemente disso, temos as questões de cronologia.  No livro, Eudoria tem a filha com 50 anos, um milagre para os padrões da época e coisa muito difícil ainda hoje.  A menina, inclusive suspeita que os irmãos se mantém longe, porque acreditam que seu nascimento foi escandaloso.  

No livro, não existe data de nascimento de Enola, a gente só tem que fazer os cálculos mesmo.  Holmes é vinte anos mais velho que ela, Mycroft vinte e sete.  Sua mãe tem sessenta e quatro anos quando de seu desaparecimento.  Nessa altura da sua vida,  nos livros, Holmes já conhecia Watson.  Em um dos casos de Holmes, ele dá o ano de seu nascimento como 1854, mas é em um conto tardio, daqueles que não estão em domínio público.  De qualquer forma, Enola teria nascido por volta de 1774.  O filme além de colocar a menina mais velha, a mãe mais jovem, visivelmente diminui a diferença de idade entre os irmãos.  Problema?  Nenhum, mas se a Enola do filme nasceu em 1884, a data aparece no filme, nossa história se passa em 1900.

Em dado momento do início do livro, o bustle, aquela almofadinha de vestido da mãe de Enola é encontrado.  Então, estamos na Bustle Era, que vai até 1889, quando já estava morrendo.  Se estamos em 1900, o figurino feminino é uma bagunça e eu culpo a produção por agir de forma tão preguiçosa, porque bastaria um ajuste nas datas, respeitar o livro, por exemplo, para amenizar o problema.  No livro, Enola tem horror aos espartilhos, sua mãe era uma militante pela sua abolição, e ela mesma nunca tinha usado um, parte do processo de disciplinamento imposto por Mycroft implica em obrigar a menina a usá-lo.  No filme, ela entra e sai dos espartilhos com facilidade.  E nem Enola, nem Sherlock, usam chapéu.  O disfarce de dama da menina cairia por terra por não incluir essa peça em seu vestuário.

Falando do marquês, e eu não perdoo o filme por Enola e o garoto não trocarem um beijo leve sequer, ele iria tomar assento na Casa dos Lordes e era o voto fundamental para conceder o sufrágio universal masculino que tanta gente queria evitar.  OK.  Quantos anos ele tem?  O ator tem 17 e parece ter essa idade, ou até menos.  Nada no filme sinaliza que ele não fosse um adolescente, um menino sendo empurrado pelos adultos e fugindo para não se curvar.  Para tomar assento na Casa dos Lordes é preciso ter pelo menos vinte e um anos.  Ninguém pesquisou, não é?  Monarquia é bagunça? E  a culpa não é do livro, isso não é discutido lá.  Outra coisa, o voto para todos os homens sem levar em conta a renda só é aprovado depois da 1ª Guerra  Mundial na Inglaterra.  Dezoito anos para os combatentes e 21 para os que não tinham lutado na guerra (*falo disso na resenha de Sufragistas que já linkei*).  A data de 1900 está errada, portanto.

Mas há um indício, pelo menos para mim, de que o filme deveria se passar nos anos 1880, quer dizer, na verdade nem isso, é somente mais uma lambança do roteiro mesmo.  O tio do marquês deixa de ser suspeito do crime, do assassinato do pai do garoto, porque Holmes diz que ele estava fora da Inglaterra quando da morte do irmão mais velho.  Ele estava lutando na guerra no Afeganistão.  Os britânicos lutaram em duas guerras no Afeganistão no século XIX, uma em 1839–1842, outra entre 1878-1880.  É nessa segunda que Watson é ferido e que o obriga a voltar para a Inglaterra para se recuperar.  

A guerra em curso quando o filme está ocorrendo, 1900, é a 2ª Guerra dos Bôeres (1899-1902).  Infelizmente, esse tipo de "erro" não ajuda a destacar o brilhantismo de Holmes, porque um sujeito pode deixar instruções para um assassinato mesmo fora de casa.   Mais uma vez, isso não é coisa do livro original, mas invenção "esperta" do roteiro.  Um bom filme, sem dúvida, mas sem nenhuma preocupação com coerência histórica, nem com o racismo, também.

Terminando.  O filme é um bom entretenimento, porque Millie Bobby Brown é muito talentosa e carismática.  Ela conversa com o público o tempo inteiro, quebrando a quarta parede, com tanta naturalidade que a gente se encanta.  Só que é uma salada tão grande, tantas questões que o roteiro quer discutir sem aprofundar, sem levar em conta a temporalidade, que deprecia o produto final.  Tenho nada contra brincarem com o cânon, ou com Henry Cavill de Sherlock Holmes.  Ele está bem no papel e a graça, claro, é mostrar a menina chegando aos criminosos, no caso do marquês, antes do irmão detetive.

De resto, este filme, que é feminista até a medula, tem tudo para ser o primeiro de uma franquia, há mais seis livros para adaptar.  Agora, trata-se de uma outra linha temporal, não a nossa, na qual adolescentes assumem assentos no Parlamento inglês, Watson não existe e o sufrágio universal masculino veio quase vinte anos antes na Inglaterra.  Ah, sim, eu assisti ao filme dublado, com a Júlia, e no original.  A versão brasileira está boa, só fizeram o óbvio, deixaram o Mycroft mais irritante do que ele já estava no original.  Concluindo, Millie Bobby Brown daria uma excelente Elizabeth Bennet, basta esperar alguns anos e lhe dar o papel quando ela tiver vinte anos, vai cair exatamente duas décadas depois do filme de 2005.  Fala encontrar um Darcy.


Se você está aqui, não se importa com spoilers.  O menino-marquês-membro do parlamento estava sendo perseguido por um assassino daqueles tipo Exterminador do Futuro.  Não parava nunca.  Caía e levantava.  Mas quem era o mandante?  A avó do menino.  O filme contrapõe as forças de mudança, Enola faz parte delas, e as de resistência e conservação, na verdade elamentos reacionários mesmo, que não percebem que o mundo está se transformando.  Mycroft é um deles, a avó do marquês, também.  Existem mulheres reacionárias?  Patriarcais?  Existem.  Mas uma viúva nessa posição tem muito poder, também.

Agora, é muito difícil acreditar que uma mulher da alta nobreza iria conspirar para matar seu filho e herdeiro, seu único neto homem, para conseguir impedir que o sujeito votasse em uma reforma eleitoral.  Quando o assassino está morrendo, ele diz que fez o que fez pela Inglaterra, enfim... E eu joguei o termo "dowager" (viúva de um rei, ou nobre) na busca do livro e não achei, nem sei se o menino está sendo perseguido por ordem da avó.  Enfim, o esquema criminoso me pareceu muito exagerado e dependente de inconsistências históricas.  Isso estraga a diversão?  Não, mas eu não poderia deixar de ponderar. 

3 comentários:

  1. Eu gostei do filme também. Achei tão terna a cena em que (spoiler) ela reencontra a mãe no fim. E muito positiva também. Bom ver um filme feminista esse mês que funciona, porque tentei ver o novo Mulan, mas não consegui. Tudo no filme está tão errado e absurdo que não aguentei. Mensagem de empoderamento tosca e num pacote em que nada faz sentido. Fico com a animação mesmo que é muito melhor.

    Acho que a idade da protagonista mudou mais em função da própria Millie Bobby Brown ser uma das produtoras do filme, junto com a irmã dela. Ela não ia produzir um filme para colocar uma outra atriz no papel porque a idade seria mais próxima do livro. Só achei curioso porque nunca tinha visto alguém tão jovem envolvida na parte da produção, mas ela esteve envolvida até na escalação do Louis Partridge. Acho admirável e positivo, porque isso sempre dá mais liberdade e prestígio para as atrizes. A Margot Robbie, Reese Witherspoon e Nicole Kidman têm feito isso também e ajudado a contar mais histórias complexas de mulheres no cinema e na televisão americanas, para além dos clichês de sempre.

    Enfim, pelo visto o filme está fazendo sucesso. Espero que as continuações venham.

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  2. Não sei, Luiz, quando o filme foi anunciado, ela ainda tinha 15 anos, então, ela estava pensando nele antes. Ela passaria por uma garota de 14 anos e se a intenção é fazer uma série, poderia ser interessante manter as idades. Aliás, ela ter 14 anos a tornava ainda mais vulnerável e dependente aos olhos dos irmãos.

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  3. Ahh, entendi melhor o seu ponto agora. De fato, ela poderia passar por 14 anos mesmo.

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