Quando eu estava terminando a faculdade, comecei a fazer uma disciplina sobre o Império Português com um dos melhores que tínhamos na época, o Prof. João Fragoso. A matéria abriu um mundo novo para mim, porque mostrou Portugal para além das suas relações com Brasil e com a África (*a questão do Sistema Escravista*) e como um grande empreendimento que, não fosse algumas questões que fugiam do planejamento (*D. Sebastião e a União Ibérica, por exemplo*), pretendia incorporar o Japão. Mais tarde, quando eu estava no mestrado, uma colega da minha turma trabalhava com as cartas dos jesuítas portugueses enviados para o Geral da Ordem relatando os progressos e dificuldades do trabalho no arquipélago.
Os grandes senhores japoneses usaram os ocidentais para definir sua guerra civil, usando, por exemplo, o catolicismo para enfraquecer a influência dos poderosos mosteiros budistas e as armas de fogo. Depois, a partir de 1603, com Ieyasu Tokugawa, começaram a dar um pé na bunda dos portugueses, espanhóis (*ingleses e franceses nunca viram muito futuro no arquipélago*) e da Igreja Católica, que precisa ser vista como uma instituição supra-estatal com uma agenda própria. Chegaram a um acordo nos seus próprios termos com os holandeses e se fecharam para contatos com o mundo exterior que não fossem controlados e administrados pelo Shogunato.
Enfim, ontem apareceu uma matéria na BBC sobre a pesquisa do professor português Lúcio de Sousa, da Universidade de Estudos Estrangeiros de Tokyo. Ele começou estudando a vida de um menino raptado em 1585 por japoneses, sim, havia escravidão no país e a prática não era estranha aos costumes locais, e vendido ao comerciante português Rui Pérez,que atuava em Nagasaki. O menino, que ficou conhecido como Gaspar Fernandes, nasceu em Bungo (atual província de Oita, no sul do Japão) e foi o primeiro de cinco escravos asiáticos que Pérez adquiriria nos anos seguintes.
Junto à família de Pérez, Gaspar passou a atuar como um serviçal. Ele aprendeu português e espanhol e acabou levado com a família para Manila, nas Filipinas, onde Pérez foi perseguido e condenado por praticar o judaismo em segredo. Prática judaizante era a principal acusação da Inquisição Espanhola e Portuguesa e, nesse momento, estávamos já na União Ibérica (1580-1640), ou seja, não havia rei em Portugal e o Império Português era governado pelo rei da Espanha. Por isso mesmo, Rui Pérez foi enviado para ser julgado no México e foi lá que o pesquisador encontrou documentos sobre os escravos japoneses dentro do Império Português, na verdade, dentro desse grande conglomerado de territórios sob o domínio da Espanha.
Segundo a matéria, "Gaspar foi um entre milhares de crianças, adultos, homens e mulheres capturados no Japão entre o fim do século 16 e o início do século 17. As vítimas eram raptadas nas camadas mais desfavorecidas da sociedade, depois eram acorrentadas e empurradas aos navios. Os japoneses acabavam forçados a deixar o país e suas famílias para sofrer abusos e torturas em terras estrangeiras. Não há dados sobre quantos japoneses foram escravizados e exportados para o mundo durante uma lacuna de pelo menos cinquenta anos. Pesquisadores estimam que milhares de japoneses foram submetidos a este mercado, que funcionava de forma ilegal e velada no sul do Japão."
Mais adiante o pesquisador português conta sua experiência: "Passei um mês no México, pesquisando horas por dia, até que o registro do transporte do Gaspar e outros escravos caiu nas minhas mãos. Eu sabia que não estava apenas atrás de um simples documento, eu estava lidando com a vida de pessoas que existiram de verdade, foram exploradas e esquecidas (...) O mercado de escravos não começou com uma estrutura organizada. Alguns eram raptados, outros se vendiam por causa da fome extrema e da guerra. Havia japoneses que se vendiam para escapar de situações ou para dar o dinheiro à família, acreditavam que, quando chegassem a Macau, conseguiriam fugir. Muitos foram enganados e não receberam dinheiro algum, explica Lúcio. (...) Os portugueses estavam mais interessados em enviar escravos africanos ao Brasil, por causa da força braçal. Os asiáticos eram utilizados mais para tarefas domésticas. Em Lisboa, muitas famílias exibiam seus escravos japoneses como produtos importados."
A matéria fala, também, de como para as meninas e mulheres sequestradas e escravizadas a situação tinha um peso a mais, o da exploração sexual. E, aqui, é importante pontuar, não pensem que homens e meninos não eram abusadas, a questão é que, no caso das mulheres, isso era a regra. Citando a matéria: "A escravatura ainda é vista sob uma ótica masculina e machista. Em Nagasaki havia bordéis chocantes com escravas coreanas. Os homens escravos não passavam pelo que as mulheres eram submetidas. Foi chocante compreender isto, o quanto as mulheres são colocadas de fora do discurso da escravatura". A matéria diz, inclusive, que o primeiro registro de um japonês escravizado residindo em Portugal é de uma mulher, em 1573.
A matéria comenta que os jesuítas levaram meninos de 13 e 14 anos para a Europa, começando um our por Roma. Aqui, cabe informar que, para os jesuítas, os japoneses eram um povo inteligente e capaz de receber as ordens religiosas, o objetivo não era escravizar esses garotos. Agora, o texto comenta que em todo lugar os garotos japoneses causaram curiosidade e chamaram muito a atenção, menos em Portugal, porque eles estavam cansados de ver japoneses e eles eram, claro, destinados à escravidão, havia vários nessa condição em Lisboa.
Por fim, a matéria dá a palavra para a Prof.ª Mihoko Oka, da Universidade de Tokyo, ela é especializada em Japão nos séculos XVI e XVII. A especialista pontua que houve um número considerável de conversões ao catolicismo, mesmo entre as elites, mas que vários dos daymios pareciam mais interessados nos ganhos que poderiam ter com o comércio com os europeus.
Já o professor Tatsuo Fujita, do Departamento de Educação da Universidade de Mie, pontua que foi Toyotomi Hideyoshi, um poderoso senhor de guerra, conhecido por unificar o Japão, que começou o processo de expulsão. Em 1587, ele tomou conhecimento da escravização em massa de japoneses enviados para o exterior e mobilizou suas forças para acabar com esse comércio vil. Segundo o professor Fujita: ""Ele [Hideyoshi] ficou chocado com o domínio católico sob o apoio do clã Omura, depois que o 'daimyo' Sumitada Omura se tornou o primeiro senhor feudal cristão. No ano seguinte, Hideyoshi usou seu comandante militar, Todo Takatora, para recuperar o território ao Japão (...) Ele temia que o próximo passo após a conversão religiosa fosse a colonização. Podemos supor que ele sabia do Tratado de Tordesilhas, a divisão de territórios entre Portugal e Espanha na América do Sul, ocorrido quase um século antes.".
É isso, o texto completo está disponível e em português. Basta clicar e ler. Eu tenho um artigo grande que já pensei em traduzir várias vezes sobre os cristãos japoneses e nunca arrumo tempo, ou esqueço mesmo. De qualquer forma, a expulsão dos europeus e da Igreja Católica não colocou fim ao cristianismo (catolicismo, nesse caso), no Japão, e a maioria dos adeptos dessa fé não era membro da nobreza. Por isso mesmo, em 1637, quando os europeus já tinham sido expulsos, houve a Revolta de Shimabara liderada por camponeses. Houve milhares de mortos, os holandeses ajudaram na repressão, e, a partir daí, ser cristão no Japão passou a ser crime mesmo, com uma repressão duríssima, Essa revolta aparece em vários animes, inclusive no anime Samurai X, de forma totalmente esdrúxula. É isso. Infelizmente, o livro The Christian century in Japan 1549-1650 do Charles R. Boxer não tem edição brasileira e a estrangeira está por um preço proibitivo. Para mim, o Boxer é a maior referência quando se trata de analisar o Império Português.
1 pessoas comentaram:
Tenho antepassados Portugueses. A família de meu pai tem muitas pessoas com cabelo muito liso e olhos puxados. Uma de minhas filhas é assim , parece oriental. Será que esses escravos deixaram descendência em Portugal?
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