terça-feira, 28 de julho de 2020

Netflix cancela série turca após governo exigir remoção de personagem gay e algumas palavras sobre Hagia Sofia


No domingo, quando escrevi um post sobre a morte da Olivia de Havilland, citei o caso Hagia Sofia, mas não publiquei nada sobre isso, na verdade, não publiquei nada sobre o caso e já estava com esta matéria do Hollywood Reporter sobre a série If Only da Netflix.  O programa tinha sido anunciado em março como uma série romântica em oito partes.  Pode deixar que eu vou conectar as duas cosias e o Brasil.

Começando pela Netflix, segundo o HR, o governo turco negou licença para as filmagens da série If Only no país, caso uma personagem secundária homossexual não fosse tirada do roteiro.  Alguém poderá dizer, "Mas é um país muçulmano, oras!".  Sim, a Turquia é um país muçulmano, porém laico e a homossexualidade não é crime no país desde 1923.  E o que aconteceu neste ano?  A criação da República da Turquia sob o comando de Mustafa Kemal Atatürk.  Atatürk promoveu um processo de modernização e laicização do país,  e dava exemplo em sua própria casa, porque uma de suas filhas foi a primeira mulher piloto militar do mundo.  

Primeira mulher piloto militar foi uma turca.
As mudanças envolveram, entre outras coisas, a abolição da poligamia, a concessão do direito de voto às mulheres e a descriminalização da homossexualidade, ainda que, e ninguém se engane sobre isso, as práticas sociais não mudem de estalo em um aspecto como esse.  O HR fala inclusive de leis sobre decência pública que podem e são usadas contra a comunidade LGBTQ+, mas só da lei maior do país não lhe negar o direito de existir, acredito que é algo importante.

Até encontrei um bom resumo da questão no site The Indian Express "Embora a Turquia seja mais liberal do que alguns de seus vizinhos no que diz respeito aos direitos LGBTQ e a homossexualidade tenha sido legal na história moderna do país, ativistas dizem que o cenário está mudando sob o atual governo.".  Ou seja, apesar dos costumes islâmicos não serem pró-LGBTQ+, o laicidade do regime garantia que os homossexuais não seriam publicamente perseguidos.  

Após a censura de "If Only", muitos fãs internacionais
apontaram o governo turco  objetou a representação
da homossexualidade, mas fecha os olhos para programas
que mostram mulheres sendo torturadas, ou sofrendo
outras formas de violência.
O Middle East Eye deu voz aos líderes religiosos, um deles perguntou se a Netflix estava esperando um pedido de desculpas, e ao atual presidente (*falo dele daqui a pouco*), os homossexuais tem sido publicamente acusados de serem uma ameaça ao Islã, que trazem doenças e corrompem a juventude.  As marchas do Orgulho, que tinham começado em 2003, foram proibidas e bloqueadas de forma violenta pela polícia.  O clima da Turquia mudou muito nos últimos anos.  

O fato é que ao longo das décadas, o judiciário turco e os militares se tornaram guardiões da manutenção da laicidade do Estado mantendo os religiosos sob controle e dentro dos limites traçados pela própria legislação do país.  E quando as coisas começaram a ficar esquisitas? Quando o religioso Recep Tayyip Erdogan, fundador do partido Partido da Justiça e Desenvolvimento, tornou-se primeiro-ministro em 2003.  Ele havia sido anteriormente  prefeito de Istambul e promoveu uma política populista apoiando-se nos mais pobres e religiosos.

Cartaz sufragista de Quebec (Canadá) falando que as
mulheres iriam votar pela primeira vez na Turquia
em 1930.  No Quebec, isso só seria possível em 1940.
Ele venceu outras eleições, em  2007 e 2011, em 2014, ele se tornou presidente  também por via eleitoral.  o que eu li na segunda vitória dele em um jornal britânico foi o seguinte, Erdogan não era apreciado pelos setores progressistas, ou que prezavam o laicismo, porém, as eleições eram em feriados, o voto não era obrigatório, e quem não gostava do então primeiro-ministro ia para a praia, ou para a montanha, já os pobres e religiosos ficavam nas suas cidades e vilas e iam votar.   Deu no que deu.   

Erdogan, desde o início, trabalhou para modificar as leis que limitavam a intromissão dos religiosos na política, ou que impunham o laicismo, como a proibição do véu islâmico em repartições publicas, por exemplo. Minha atenção foi despertada por isso, afinal, em uma virada religiosa, e esta rolando uma discussão na Turquia para permitir que estupradores casem com suas vítimas (*sim, é possível em outros países islâmicos, mas, não, na Turquia*), as mulheres só tem a perder.  Enfim, foi assim, de passinho em passinho até 2016. Neste ano, Erdogan alegou uma tentativa de golpe para encarcerar, dar sumiço, perseguir e censurar a oposição.  

Mais de 100 generais foram presos depois do "golpe" de 2016.
A tia Lela, que acompanha Erdogan desde sua primeira eleição, não acredita que houve tentativa de golpe, na verdade, quem deu o golpe foi ele no que restava de resistência à destruição do legado de Atatürk.  Hoje, a Turquia é uma democracia no nome, por assim dizer e recomendo o livro Como as Democracias Morrem para maiores reflexões.  Enfim, todos os programas da Netflix passam sem censura no país, porém, isso pode mudar a qualquer momento, ou, talvez, nem mude, mas a produção audiovisual turca terá que se conformar aos ditames da política religiosa do presidente.

O HR comentou que houve acusações de que a Netflix já tinha cedido antes com a série turca Love 101, só que a empresa nega a censura e diz que nenhuma personagem LGBTQ+ foi cortada do show, porque não havia nenhuma.  A matéria ressalta ainda que a Turquia é um dos mercados que mais crescem quando o assunto é serviço de streaming, então, há interesse da Netflix em fazer séries turcas.  Falemos de Hagia Sofia agora.

Os protagonistas da série Love 101.
A Basílica de Santa Sofia, também conhecida como Hagia Sophia ou Hagia Sofia, é um imponente edifício construído entre 532 e 537 pelo Império Bizantino para ser a catedral de Constantinopla.  Quem acompanha meu blog, sabe que já escrevi sobre Teodora e Justiniano, mais sobre ela verdade.  Foi no governo desse imperador que a basílica foi construída. Com a conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453, a basílica foi transformada em mesquita.  Os mosaicos bizantinos foram cobertos, acréscimos foram feitos ao conjunto arquitetônico, mas a base da construção é romana e feita para durar pela eternidade.

Santa Sofia permaneceu mesquita até que, em 1931, Atatürk decidiu transformá-la em um museu.  Depois de reformas e restaurações, ele foi aberto em 1935 e permaneceu como o maior museu da Turquia até duas semanas atrás.  Hagia Sofia foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1985, mas desde a década de 2010 (*vejam as datas de eleição de Erdogan*) havia campanhas, inclusive de cristãos, para que o museu retornasse ao seu estado de templo religioso.  Em 2018, Erdogan assumiu oficialmente a bandeira e o equivalente da Suprema Corte do país decidiu em 20 de julho pela reversão, ignorando apelos de estudiosos de todo o mundo e da UNESCO.

Os minaretes são acréscimo á estrutura original. 
A reversão foi saudada por grupos de extremistas religiosos como uma vitória do Islã, um direito de conquista.  Um deles, um importante líder religioso do país, fez um pronunciamento na  reabertura da mesquita, com a presença de Erdogan, dizendo que aqueles que converteram Santa Sofia em museu estariam no inferno.  Ora, quem fez isso foi Atatürk, pai da república da Turquia.  Vejam só!  No mesmo dia, o presidente da Turquia afirmou que se tratava de uma reconquista e que a próxima seria a da Esplanada das Mesquitas (Al-Aqsa), em Jerusalém. É uma bravata, mas percebem o raciocínio? Erdogan conhece seu público, dentro e fora de seu país.

Enfim, um dos meus sonhos é visitar Santa Sophia, o museu.  Sei que não devo realizar esse desejo, imagino ainda que, agora, que não é mais museu, passear por lá não será a mesma coisa.  Os riscos de dano ao prédio são grandes, também.  De qualquer forma, vejam que não se trata de converter igreja em mesquita, mas um museu.  Trata-se de desprezo pela ciência e pela História do país, afinal, a basílica era um museu, não uma igreja ou mesquita, ou outro templo qualquer.  E não faltam mesquitas em Istambul, a própria Mesquita Azul, ao ser construída, tirou parte do status de Santa Sophia.

Orações no exterior de Hagia Sophia em 10 de julho.
O que eu quero dizer é que o que está acontecendo na Turquia é um exemplo claro da deterioração das instituições democráticas, que nunca foram muito fortes no país, verdade, e do laicismo.  É uma tentativa de apagar todo o esforço dos líderes turcos no início do século XX para trazer o país para o mundo moderno.  Os religiosos perderam relevância no espaço público a partir de 1923?  Sem dúvida, mas ganharam em bem estar social.  Enfim, toda essa destruição está sendo feita pelo voto e aparentemente por vias democráticas.  Erdogan não é tolo, seu fanatismo religioso é temperado com cálculo político.  E, bem, ele está sendo bem sucedido em seu país.  E, aqui, no Brasil, parece que as coisas podem caminhar para algo bem semelhante, afinal, foi o voto evangélico que definiu as últimas eleições, mas sem o toque de nacionalismo turco.

1 pessoas comentaram:

Que arquitetura maravilhosa é essa de Hagia Sofia e que lamentável o que está girando em torno dela e da política que está em voga na Turquia! É muito retrocesso e fanatismo religioso. Em casos como esse eu vejo o quão importante é o poder do voto, mesmo não sendo obrigatório na Turquia. Talvez muitas pessoas devessem ressignificá-lo como exercício de cidadania e comprometimento com as políticas públicas de um país.

Um governo que persegue homossexuais veladamente ou não e destitui um prédio como esse de um museu cheira justamente a um obscurantismo perigoso.

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