Graças a um post do Frock Flicks, o site especializado em figurino de filmes históricos, descobri o filme O Libertador (El Libertador), uma produção espanhola e venezuelana sobre a vida de Simón Bolívar (1783-1830). Como vou começar a falar de Independência das América Espanhola com meus alunos e alunas, achei que valia a pena assistir. No geral, gostei do filme, achei bem executado e com uma produção de qualidade. Como conheço quase nada da vida de Bolívar, tive que ler algumas coisas para escrever a resenha e, bem, parece que o filme não perdeu de vista o que temos de informação sobre o protagonista.
O filme começa em 1828, quando Bolívar (Édgar Ramírez) escapa por pouco de uma tentativa de assassinato a mando de um adversário político, o general Francisco de Paula Santander (Orlando Valenzuela). Na sua figa, ele conta com a ajuda de sua amante e companheira de causa, Manuela Sáenz (Juana Acosta). A partir daí, temos um longo flashback mostrando Bolívar desde a infância e em vários momentos chave de sua vida até que retornamos ao acontecimento que deu início ao filme e o desfecho da vida do Libertador, um homem que sonhou com uma grande nação que unisse todas as colônias espanholas em um só estado, uma só América.
Manuela Sáenz salva a vida de Bolívar logo no início do filme. |
Vejo nessa apresentação de Bolívar como um homem que reconhecia suas fragilidades uma tentativa, também, de romper com a ideia do herói invencível e perfeito. A cena da tentativa de assassinato se mistura com um flashback do menino Bolívar tentando não chorar a morte da mãe e o tio dizendo que era correto expressar seus sentimentos. Acredito que o filme tentou projetar no passado uma imagem de masculinidade positiva aos nossos olhos contemporâneos. Um homem pode se mostrar vulnerável e isso não é um defeito.
Nosso herói aparece descamisado, também. Um líder sem frescuras. |
Depois desse incidente inicial, somos levados para a Espanha em 1800. Bolívar, como a maioria dos jovens de seu grupo social, o dos criollos (*filhos de espanhóis nascidos na América*) ricos, deveria completar seus estudos na Europa. O herói é mostrado na corte espanhola onde conhece o futuro rei Fernando VII (Andrés Gertrúdix), que é apresentado como um mal perdedor e uma figura um tanto patética.
Ele parece um adolescente de 16 anos? Não parece, certo? |
Voltando para a corte, lá Bolívar conhece sua futura esposa, Maria Teresa (María Valverde), que era dois anos mais velha que ele. Foi por causa das roupas usadas pela atriz María Valverde no filme que as moças do Frock Flicks fizeram resenha do Libertador. Para as cenas na corte espanhola foram alugadas as roupas usadas no filme Maria Antonieta (2006) e que estava defasadas quase trinta anos em termos de moda. Agora, algo que percebi é que nessas cenas na Espanha tínhamos uma mistura, roupas de tinta anos antes com outras contemporâneas ao período que o filme retrata. De qualquer forma, tudo estava muito bonito.
María Teresa, o amor da vida de Bolívar. |
Bolívar é o "bom senhor" de escravos, ele está satisfeito consigo mesmo. Além disso, ele trata a negra Hipólita (Zenaida Gamboa) como a única mãe que teve na vida, para ele, nesse momento, é o suficiente. Ao ser cobrado pela esposa, Bolívar diz que a mulher não era sua para que ele interviesse e que ele trata bem seus escravos. Para a esposa, não é suficiente, ele está sendo complacente com a barbárie. Mais tarde, somos apresentados ao professor e maior influenciador de Bolívar no campo das ideias, o professor Simón Rodríguez (Francisco Denis).
O "bom senhor" de escravos. |
Com a cabeça colocada à prêmio pela Coroa espanhola, o professor foge para a Europa, mais especificamente, a França de Napoleão. No filme, ele empurra Bolívar para a guerra de independência, espicaçando seus brios e sua consciência. E ainda tem a audácia de dizer (*duas vezes*) que foi bom que Bolívar tenha perdido a esposa, porque, assim, ele poderia viver para a Revolução. Neste caso, a ideia colocada na boca do professor aparece nos escritos de Bolívar.
O professor revolucionário. |
Bolívar fica viúvo com míseros 19 anos, depois de oito meses de casamento. Maria Teresa contrai febre amarela e não resiste. A perda da esposa faz com que Bolívar jure que nunca mais se casaria, voto que ele cumpriu. No filme, a jovem diz estar grávida, mas esse detalhe parece inventado para o filme. Acredita-se que Bolívar tivesse algum problema de fertilidade, porque ele teve muitas amantes, ainda que o filme só o mostre com três mulheres (*a esposa, uma prostituta parisiense e Manuela*), e nenhum filho lhe foi atribuído.
E ele encontra em Manuela uma parceira revolucionária. |
Voltando ao figurino de María Teresa, ele é muito bonito, salvo por um vestido que parece saído de um filme de fantasia. Um deslize do filme foi colocarem a personagem montando a cavalo como um homem e com as pernas de fora, não ficou bom, não. Além disso, pareceu descuido de Bolívar não perceber que a esposa estava passando mal, mas quem assistir ao filme tire suas conclusões. Engraçado é que quando Bolívar volta a passar por sua hacienda, muitos anos depois, a cama em que a esposa morreu continua intacta, do mesmo jeito. É uma das cenas absurdas do filme, ou, talvez, e ideia fosse de realismo fantástico mesmo.
Vestidos do filme Maria Antonieta. |
De qualquer forma, ela era uma mulher que afrontava convenções sociais. Separada do marido, ela parecia não estar preocupada com o que poderiam pensar dela e nem Bolívar, ao que parece. O figurino de Manuela também é bonito e o filme a coloca em algumas cenas usando roupas masculinas. É Manuela que toma a iniciativa em relação ao romance com o protagonista. Quando ela soube da morte de Bolívar, tentou o suicídio, mas isso não foi colocado na película.
Mulheres e crianças também estavam no exército de Bolívar. |
Todas essas mulheres retratadas eram negras, índias, ou mestiças. falando nisso, um dos destaques do filme, aliás, é a diversidade. Pode pegar qualquer foto de multidão na película que isso é evidente. Agora, quando você olha a assembleia surgida depois da independência da Gran Colômbia (*formada por Colômbia, Panamá, Venezuela, Equador, Bolívia e outros pedacinhos*), o que temos são homens brancos, a elite colonial branca, ou que assim se vê, exclui negros, índios e mestiços pobres das decisões políticas.
Torkington, o banqueiro inglês, parece se materializar na frente de Bolívar em alguns momentos chave do filme. |
Torkington será figura presente ao longo do filme, apoiando e patrocinando Bolívar. E fica parecendo que o protagonista foi ingênuo demais ao não perceber que o inglês iria cobrar por seu auxílio, que não seria barato, aliás, e que não devia confiar nele. A partir do encontro com o General Miranda, Bolívar entra de cabeça na luta pela independência. Miranda, que era o revolucionário pau para toda obra, afinal, tinha lutada na Revolução Americana e na Francesa, entre outras guerras menores, se desentende com Bolívar, quer fazer um acordo com os espanhóis. Bolívar se insurge contra ele e esse embate o leva a sua primeira derrota e um dos atos mais controvertidos do Libertador. Ele entrega Miranda aos espanhóis e é capturado, também.
Bolívar estava sempre sempre no meio da multidão e sem roupas pomposas, mas ele é membro das elites da terra. |
É nesse momento do filme que ele conhece Francisco de Paula Santander (Orlando Valenzuela), um coronel que o apoia com tropas a mando do vice-rei de Nova Granada. Nada disso era oficial e Santander não tinha autorização para cruzar a fronteira com a Venezuela. Tanto Bolívar, quanto Santander, são heróis da independência da América Espanhola. Se Bolívar é O Libertador, Santander é o Legislador. O filme não se aprofunda nisso, mas sinaliza as diferenças entre os dois quando um quer cumprir a lei e não cruzar o rio-fronteira.
Santander, sempre arrumadinho, está preocupado com a lei, Bolívar, com a revolução. |
Ainda assim, Bolívar tem outro revés quando tenta tomar Caracas e precisa partir para o exílio na Jamaica. Ele passou pelo Haiti, também, mas o filme omite isso. Curiosamente, há outro filme sobre Bolívar do mesmo ano, 2013, uma produção bem mais pobre, que foca somente nos anos de 1818 e 1819 e que mostra Bolívar no Haiti. Só que O Libertador quer abarcar a vida inteira do homem. Resultado? Algumas partes são suprimidas e ao retirar coisas, se está, sempre, fazendo uma escolha..
O filme não esclarece, também, o fato de que a ocupação napoleônica da Espanha (1808-1813) ajudou no processo de independência das colônias. Se não havia rei na Espanha, ou melhor, se o irmão de Napoleão era o rei, as colônias não teriam como ser abastecidas com soldados e outras formas de apoio vindas da Europa. De qualquer forma, com a derrota de Napoleão, em 1815, vem o Congresso de Viena e a Santa Aliança estimulam a Espanha a tentar reconquistar a América. É nesse momento que a luta se intensifica no Continente.
Bolívar foi um grande orador. |
A partir daí, o filme acompanha, então, as dificuldades de Bolívar em conseguir aliados. De novo, tem uma mãozinha de Torkington e de apoios como o de Antonio José de Sucre (Erich Wildpret), Francisco de Paula Santander, Rafael Urdaneta (Alejandro Furth), Daniel Florence O'Leary (Iwan Rheon), James Rooke (Gary Lewis), além da Legião Britânica (*ou Albion Legion*). Esse grupo era formada principalmente por veteranos ingleses e irlandeses das guerras napoleônicas, além de alguns alemães, que se engajaram ao lado de Bolívar por apoiar suas ideias revolucionárias e, também, por interesses financeiros. Eram mercenários idealistas, por assim dizer. Rooke, O'Leary e outros também são considerados heróis da independência.
Sucre, O'Leary e Urdaneta. |
A partir daí, o filme dá um salto no tempo, de 1819 para 1828. Agora, Bolívar é presidente, a união da república da Gran Colômbia está em risco. Como o filme não tem nem duas nem duas horas completas, não temos um aprofundamento das discussões políticas, mas uma rápida deterioração da situação de Bolívar e da república, seu sonho indo por água abaixo. Rodríguez volta para cobrar que ele lute. Torkington vem exigir compensações por sua ajuda e a negativa conduz à tentativa de assassinato. Voltamos a uma situação de guerra civil.
O inglês James Rooke, atrás de Bolívar, morre na Batalha de Boyacá. |
Enfim, já estiquei demais e contei o filme quase todo, mas não posos me omitir de comentar a questão da morte de Bolívar. Oficialmente, ele morreu de tuberculose. A sua morte ocorreu duas semanas depois do assassinato de Sucre e oficialmente a morte do amigo acelerou as coisas. Ele foi acompanhado por dois médicos, um francês (Alejandro Próspero Révérend), que esteve com ele ao longo dos seus últimos dias, outro o Dr. M. Night, militar do USS Grampus. Os relatórios dos dois apontam para tuberculose. O problema é que havia boatos de assassinato que competiam com a História oficial, além de dúvidas sobre se a causa mortis tinha sido de fato tuberculose.
Foto da cena da ponte na Batalha de Boyacá. |
Isso quer dizer o quê? Desde que Bolívar não morreu de tuberculose, passando por não é o corpo do Libertador, até um possível laudo falso. Não achei nada sobre terem feito algum exame de DNA utilizando material colhido dos descendentes dos sobrinhos de Bolívar. Sim, ele tinha irmãos e sobrinhos. Não era incomum descobrir a tuberculose e morrer rápido, ou esconder os sintomas e tentar levar adiante a sua missão, caso que poderia ser o de Bolívar. O filme acaba abraçando uma visão que é advogada pelo governo da Venezuela, mataram Bolívar.
Bolívar atravessou com um exército os Andes no inverno. |
Voltando ao Bolívar histórico, ele participou de 472 batalhas, percorreu durante suas campanhas 123.000 quilômetros, 10 vezes mais que Aníbal, três vezes mais que Napoleão (*que invadiu a Rússia*) e duas vezes mais que Alexandre, o Grande. E morreu relativamente jovem, com 47 anos. Aliás, um dos problemas do filme, mas eu entendo o motivo, é que Édgar Ramírez não consegue parecer um adolescente. O ator está muito bem como o Bolívar adulto, passa a ideia que querem dele (*virilidade, charme, força etc.*) mas quando o interpreta no início do filme, não parece convincente.
Um dos cartazes do filme. |
Terminando, o filme é bom, a produção é cara. Apesar da imagem pró-Bolívar, afinal, o filme é dele, não nos vendem um herói imaculado. O problema é que todo mundo que aparece nesse filme é, a rigor, herói da independência da América Espanhola e suas imagens pode ser interpretada de diversas formas a depender de quem conta a história. Assistindo ao filme, percebo, também, o quão distante o Brasil está dos seus irmãos latino americanos. Falando como professora de história, eu posso listar vários personagens da História Antiga, Medieval (*claro*), de diversos países europeus dos Estados Unidos da América, mas sei muito pouco sobre as independências e da história dos nossos vizinhos.
Em um curto período, houve várias produções sobre Bolívar. A última é da Netflix. |
Eu mesma, sei o mínimo, na verdade. Fiz somente as disciplinas obrigatórias de América na faculdade e raramente tive que dar aula sobre América Espanhola que não fosse colonização e algum tópico do século XX (*Revolução Mexicana, Revolução Cubana, Peronismo etc.*). Acredito que o Brasil seja pouco estudado por eles, também. Estivemos quase sempre de costas para a América Espanhola, olhando para a Europa e para os Estados Unidos. Agora, com a reforma do Ensino Médio, o espanhol está fora do currículo obrigatório. É um brutal retrocesso. Mas é isso. Vejam O Libertador, o filme é bom como filme e ajuda a gente a refletir sobre algumas coisas, também.
1 pessoas comentaram:
"O filme não esclarece, também, o fato de que a ocupação napoleônica da Espanha (1808–1813) ajudou no processo de independência das colônias. "
Verdade... há "males" que vem para o "bem"... o "inimigo do meu inimigo" é meu "amigo"....
O Paraguai se libertou antes da Grã-Colômbia.... em 1811... se aproveitando da debilidade espanhola..
Fato similar a esse... foi na 2ª guerra mundial... alguns dos países ocupados pela Alemanha...
eram potências coloniais (França, Bélgica e Holanda) ... a guerra debilitou essa potências e abriu caminho pra independência de parte das colônias....
Os indochineses e indonésios se aproveitaram disso e conseguiram a independência pelas armas...
Postar um comentário