sábado, 11 de abril de 2020

Será que LOGH é uma série que exalta o conservadorismo político?


Já comentei sobre LOGH, Lenda dos Heróis Galácticos (銀河英雄伝説 Ginga Eiyuu Densetsu), no Shoujo Café, não por ser shoujo, ainda que um dos mangás seja, mas por ser minha série de ficção científica japonesa favorita e a série de OAVs antiga é muito cara ao meu coração.  Além disso, claro, Yang Wen-li é o único historiador da ficção que me dá orgulho e não me canso de olhar para ele todos os dias, porque a estatueta está aqui ao lado do meu computador.  

Enfim, meu amigo Alexandre repassou um texto no Facebook chamado The Conservative Heart of “Legend of the Galactic Heroes” (O Coração Conservador da Lenda dos Heróis Galáticos).  Nunca parei para pensar LOGH a partir desse viés conversador X liberal (*progressista no sentido norte americano*), mas como discordei e muito do texto, escrevi o meu.  Para que não ficasse perdido no Facebook, trouxe para cá.  E começo citando a frase do texto original: "From its opening episodes, Legend of Galactic Heroes aims to tell the story of a battle between democracy and dictatorship." ("Desde o seu episódio de abertura, Legend of Galactic Heroes pretende contar a história de uma batalha entre democracia e ditadura.")

Acredito que a pessoa que escreveu o texto não viu a mesma série que eu, porque a República de LOGH é tudo menos uma democracia aos moldes liberais democráticos de nossos dias.  Salvo se ele estiver pensando em uma democracia que já morreu, mas continua levando esse nome, como no processo descrito no livro Como as Democracias MorremLogo no início da série, essa república é apresentada como truculenta e corrupta, oprimindo seus cidadãos que só podem se expressar se for para aplaudir seus líderes.  E isso, vejam bem, antes de acontecer um golpe militar, bem antes.  Trata-se de uma democracia?  Eu sempre vi a República de LOGH como uma organização corrupta bem próxima do fascismo.  

Uma República na qual as pessoas têm medo de
expressar suas ideias e desacordo com as diretrizes estatais.
Na República de LOGH para se ter acesso à educação pública gratuita a pessoa precisa se comprometer ao serviço militar por mais de uma década. Yang Wen-li  só queria ser professor de história, mas não tinha dinheiro para pagar os estudos e terminou metido no que terminou. Tornou-se um estrategista militar brilhante, mas só queria ser deixado em paz com seus livros e seu chá. E, bem, ele não é pintado como idiota na série por não aceitar ser ditador, como o autor do texto pontua, na verdade, ele prova não ser um idiota, por não aceitar esse cargo.  Algo fundamental para entender Yang Wen-Li é que ele tem princípios morais que o guiam e que, salvo em situações absolutamente incontornáveis, ele não abrirá mão deles, nem por um suposto bem maior. Se LOGH quer passar alguma mensagem é de ceticismo em relação ao ser humano com pouca esperança de  alguma melhora.

Ainda falando da República, qual democracia aos moldes da que o autor do texto defende que ela é, queima vivos no meio da rua quem está protestando contra seus políticos? Jessica, amiga e viúva do melhor amigo do Yang, líder de uma ONG, ou algo do gênero, depois eleita para um cargo público antes do golpe militar, morre dessa forma. O Império do outro lado é uma monarquia absoluta, sem dúvida, mas a República com seus políticos corruptos capazes de sacrificar civis e militares não é muito diferente.  Trata-se de uma exaltação da ditadura militar em detrimento da democracia civil, ou de uma crítica aos políticos corruptos e autoritários que somente fingem garantir os direitos fundamentais do cidadão?  

Yang só queria ler seus livros, beber seu chá
e que lhe deixassem dar aula.
E os militares são centrais na história, é verdade, há pouquíssimos civis relevantes durante toda a série,mas o principal motivo é que há uma guerra em andamento.  Por conta disso, fica difícil encontrar personagens que não estejam usando uniforme. É como querer um filme que se passe no campo de batalha da 2ª Guerra Mundial e reclamar que só há militares em condição de protagonismo.  Claro, eu posso reclamar de LOGH por outra coisa, esse mundo militarista futurístico é masculino e inspirado no século XIX, pelo menos o Império é.  Mas, claro, a falta de mulheres não incomoda o autor do texto da mesma forma que a falta de civis (*homens*) em posição de destaque e sob uma ótica positiva incomoda.

O mundo futurista de LOGH é masculino, todo mundo que realmente decide alguma coisa é homem. A gente conta as personagens femininas relevantes da série nos dedos de uma das mãos.  Quer ver?  Se esquecer de alguma, me avisem: Jessica (*morre cedo e é a figura civil sob luz positiva*), Annerose (*irmã de Reinhard e amor da vida de Siegfried, motivador da sanha de vingança do protagonista*), Frederica (*tenente e ajudante de ordens de Yang e se casa com ele*), Hildegard (*nobre, militar brilhante, renuncia à carreira para casar com Reinhard*), Katerose (*única mulher piloto de TODA a série e que termina em um relacionamento com Julian, filho adotivo de Yang*).  Perdi alguma personagem feminina que apareça em mais do que um ou dois episódios, com nomes e falas e que tenha alguma função na trama?  

Veja como as mulheres aparecem nessa imagem
que se remete aos primeiros capítulos. 
Annerose de um lado, Jessica, do outro.
O básico é que todas as poucas mulheres da série estão sempre ligadas a algum dos homens realmente importantes para a história, elas não tem importância por elas mesmas. Já sei que na nova versão há mais mulheres, mas não vou assistir ao remake e o texto que estou comentando fala da série original.  Agora, li alguém comentando que preferia um melhor desenvolvimento das personagens femininas que já existiam do que que saíssem simplesmente enxertando mulheres sem desenvolver realmente nenhuma delas.  Como feminista, isso me incomoda, claro.  Agora, o curioso é que no mangá shoujo de LOGH, feito por Katsumi Michihara, simplesmente decidiu pegar algumas personagens que eram homens e transformá-las em mulheres.  Subversivo e eficaz.

Agora, há uma ideia central em LOGH  e que nada tem a ver com elogio às ditaduras e que, se observado em comparação com a estrutura da sociedade japonesa, só pode ser uma crítica, afinal, o Japão é uma gerontocracia.  Qual o clichê? O de que os velhos são estúpidos, vale para os generais da República, que quase ferram com a frota da República logo no primeiro episódio; aliás, Yang só consegue “fazer mágica”, porque eles são mortos; vale para o imperador e os comandantes militares que o cercam.  Todos da alta nobreza, a credencial para estarem lá é essa.  Esses nobres militares que conquistaram suas posições, mais por berço do que por competência, nem percebem que Reinhard e seus jovens oficiais, esforçados e competentes, estão conspirando para tomar-lhes o poder e, quando se dão conta, é tarde demais.  

Siegfried não tem autonomia, diferente de Yang,
mas era boa influência sobre Reinhard.
Pergunto-me se mesmo na república os sujeitos não eram credenciados a ocupar altos cargos por suas relações familiares.  E basta pegar as repúblicas de nossos tempos nas quais certos sobrenomes "Kennedy", "Bush", "Barbalho", "Magalhães", "Bolsonaro", "Caiado", "Gomes" se perpetuam na política em muitos casos mais por seus ancestrais do que por sua real capacidade.  Mesmo quando são competentes, já recebem um empurrãozinho pelo fato de terem nascido na família certa, ou se casado com a pessoa com o sobrenome adequado.  Pensem nisso.

Voltando, se LOGH passa alguma mensagem não é de política nesse sentido que o autor defende, mas é de pessimismo em relação ao ser humano. Reinhard é um gênio militar, mas é movido pela vingança, e termina por se corromper quando cai sob a órbita de influência de Paul von Oberstein.  O capitão dos olhinhos robóticos, que não é mau, vejam bem, raramente aparece uma personagem que mereça tal rótulo em LOGH, simplesmente tem um projeto de poder e de Estado e está disposto a levá-lo até o fim. E veja que essa personagem já diz a que veio no primeiro capítulo. Conforme a sua influência sobre Reinhard aumenta, o kaiser começa a fazer escolhas controversas.  Siegfried, com suas virtudes, servia de freio para os lado ruim da personalidade de Reinhard e teve que ser anulado no processo.

Oberstein se torna uma influência
nefasta sobre o jovem imperador.
Siegfried pode ser moralmente superior à Reinhard, mas ele faria qualquer coisa que o mestre mandasse.  Ele é diferente de Yang nesse aspecto e paga o preço pela sua fidelidade e falta de autonomia.  Afinal, ele está em uma sociedade dominada pela nobreza e que reproduz fielmente relações de dependência comuns até o século XIX na Europa. E, bem, todo mundo MORRE ao longo da história, obrigando um recomeço forçado, o que só reforça a minha tese de que não há apologia ao conservadorismo, porque quem supostamente estaria levantar essa bandeira é obliterado no final. E, não, LOGH não é uma série progressista nesse sentido raso de quem quer separar o mundo em duas coisas absolutamente diferentes e imiscíveis.  Em LOGH, se discute o poder e o que se fazer com ele quando você finalmente o tem em suas mãos, as discussões políticas são bem mais complexas e fogem do raciocínio binário de quem quer colocar as coisas em caixinhas fechadas.

8 pessoas comentaram:

Para nao fazer um textao por aqui, creio que série só mostra que independente do sistema de governo que for aplicado , ele sempre terá falhas pois mesmos homens virtuosos acabam se corrompendo pois a humanidade é mesquinha e individualista

Salve, Valéria! Soube que "Spirou" lançou Wetboons pra celular ! Uma notória influência do manhwa !
https://pt.wikipedia.org/wiki/Spirou_(revista)
https://www.bdgest.com/news-1425-BD-Le-journal-Spirou-et-Webtoon-Factory-occupent-vos-enfants.html#.XnM8YUXXhQs.twitter
http://www.webtoonfactory.com/

Não li o texto original que o post se refere. Mas antes de comentar a postagem... Lembro de um economista japonês dar uma entrevista pontuando, que dependendo da ótica de quem via suas opiniões, mudava-se o espectro político de suas afirmações. A mesma mensagem era entendida de forma diferente no Japão (seu país de origem) e na Inglaterra (onde se especializou).

Conceitos básicos de Esquerda e Direita, Progressismo e Conservadorismo, Republicanismo e Democracias.... Todos acabam tendo um olhar diferenciado em cada cultura em que se encontram. Políticas econômicas protecionistas podem tantos erem consideradas conservadoras, quanto liberais dependendo de onde está sendo aplicada. Por tradição político jurídica, tentamos nos aproximar da fonte, a Europa ocidental.

Sobre a postagem em si, eu discordo por completo do ponto principal da autora, apresentado no inicio do texto. A Republica dos Planetas livres é de fato uma República. O momento em que ela passa na história é democrática porém, está em crise. Devido à má decisão tanto do "parlamento" quanto da decisão coletiva da população em escolher seus pares. Isso nada tem haver com fascismo. O fato de Yang Wen Li não ter finanças para bancar uma faculdade de história, e precisar ingressar nas forças armadas para isso, é comum. Vejam por que tantos americanos entram para a US Army ou US Navy. Garantia de salário e seguridade social como funcionários do Estado.

O Império, e as visões napoleônicas de Reinard, são uma tradição absolutista daquele povo. Assim como Rudolf no passado, Reinard usa a força ditatorial para se erguer e se tornar o novo monarca do império.

Tanto Yang Wen Li quanto Reinard são expoentes que evocam os princípios básicos da política de suas nações. Yang não é progressista em nenhum momento em suas convicções, ele enxerga a História e seu desfecho como algo cíclico. Ele acredita tanto no poder da democracia que a ideia de acabar com a corrupção de sua nação, com a força de seu prestigio é incongruente a sua própria filosofia. Ele é um republicano conservador, que acredita que o caminho para uma sociedade perfeita está na luta de anos, décadas através da conscientização do povo. Oras, ele é historiador, ele não prega a revolução, prega a conquista coletiva pelo letramento político de seus pares. Sua antítese é o próprio Reinard, que por vingança, acaba com a corrupção do império, destruindo o antigo para renovar do zero. Para Reinard, a sociedade não pode esperar anos de estudos para formar uma nação perfeita. É necessário o uso da força, do "imediatismo" para corrigir os problemas. Em quanto recebe conselhos mais maquiavélicos de Oberstein e freios de juízo de Hilda.

Ser conservador não é criar políticas retrogradas, mas manter a crença dos ideais já estabelecidos e conserva-los para o futuro.

Em tempo, parabéns pelo postagem! Tive contato só recentemente com LOGH e ver que uma obra do gênero possa levantar debates assim, me agrada muito.

Enfim, aconselho você a ler o texto original e reler o meu, em nenhum momento, disse que a república não era uma república. Quanto a entrar para as forças armadas nos EUA para ter melhores condições de vida, bem, isso não invalida o fato de os EUA terem educação pública e gratuita. Da mesma forma, não faz sentido algum afirmar que Reinhard quer começar uma nova ordem do ZERO. O zero que é um império e salvaguarda a nobreza? E, bem, Napoleão não é o modelo pra Reinhard, a série olha para Alexandre, o Grande e para o 2º Reich.

De resto, leia, se puder o texto que estou criticando, porque você está ponderando minhas colocações sem ter lido o artigo com o qual estou dialogando.

No mais, como historiadora que sou, digo que existem vários tipos de historiadores, inclusive, os revolucionários.

O que apreendo da série é semelhante ao seu comentário, mas só vi o remake, pretendo ver os OVAs ainda.
No início das novels, o autor critica ambas as formas de governo, destacando que a República, embora democraticamente eleita, havia se transformado numa oligarquia interessada exclusivamente em privilégios e disputas políticas. A Ditadura Imperial surge como uma resposta à degeneração vivida nessa República decadente. Todavia, uma resposta equivocada, uma vez que carrega vários efeitos colaterais – o autor chama ditadura de “droga poderosa”.
Nesse início da obra, há ênfase do autor em criticar que a humanidade tende a fugir da responsabilidade do seu destino, permitindo que seu controle seja exercido por indivíduos, o que vai na contramão do argumento proposto pelo texto que você comenta. Acho que o enfoque nos indivíduos da série, fazem parte de qualquer narrativa, não necessariamente uma visão conservadora como ele alega.
Enfim, o que percebo na série é esse pessimismo em relação à humanidade, que apesar do potencial enorme, teima em não aprender com os erros do passado.

Pra mim as mulheres estão bem desse jeito aí mesmo, pois os protagonistas são as estrelas da obra, todas elas tem sua participação e acho que são boas participações se o foco da obra é entre as batalhas dos protagonistas no fronte e também sobre e política interna de cada nação, levando em conta que tanto o império quanto a aliança são 2 exércitos militares, e que a participação feminina neste campo em nossa vida real é pequena também, e podemos levar em conta quando a obra foi feita onde a participação da mulher no exército era pouquíssimo ou obsoleto, então ao meu ver não tem nada de errado com a participação das mulheres na obra, isso é o mesmo que pedir mulheres no fronte em jogo que se passa na primeira ou segunda guerra mundial, e que busca o realismo histórico (sou meio leigo pra poder me expressar bem, mais acho que deu pra entender)

Vamos lá, Vann, LOGH se passa em um futuro distante, então, vamos supor que a participação feminina poderia ser mais plural do que a série apresentou. Quanto à mulheres no front, recomendo o livro A Guerra não tem rosto de mulher, há resenha no blog, que fala dos mais de 1 milhão de mulheres em todas as funções possíveis no front oriental na 2ª Guerra. Com um pouquinho mais de boa vontade, você encontraria mulheres combatentes em outras guerras e outros continentes fora o europeu. Eu escrevo como alguém que gosta muito de LOGH, mas que, como historiadora e feminista não pode deixar essas "bobagenzinhas" passarem em branco.

Gente como não vi esta matéria? Aplaudindo de pé, Parabéns Valéria. Concordo sobre as mulheres e isso foi algo frustrante pra mim na série. Do lado do Império até entendo a figura ser patriarcal, houve um "retrocesso" gigante com a fundação do Império e a mulher nada mais era do que um simples objeto. Tanto que nem permitiam em hipótese nenhuma uma mulher militar. A primeira a vestir um uniforme e ter algum cargo militar foi Hilda. Reinhard quebrou esta barreira, mas ainda há muito chão para o Império trazer mais mulheres. Hilda pra mim, representou muito, ela foi capaz de se impor e ser aceita neste ambiente tão masculino. Reinhard no fundo sabia disso e de certa forma ela era a escolha perfeita para governar ao seu lado. No fim sabemos que ela prossegue governando e isso é representativo, sinais de mudança no Império? É o que espero.
Quanto a Aliança ai não tem desculpa, mulheres já estão lá, porque nenhuma está no poder, porque nenhuma é almirante, porque não temos mais kateroses, isso sempre me incomodou.
Bom minha teoria sobre isso é que o livro foi escrito na decada de 80 e o autor é um japonês, e no Japão o machismo impera forte, quanto mais para trás vamos nos anos pior é. Enfim a obra é maravilhosa, sou super fã, mas tem seus problemas.
Vou colocar esta matéria no grupo de LoGH do facebook em português. Obrigada novamente pelo texto Valéria.

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