Faz um bom tempo que não posto sobre discussões feministas de forma direta, mas chegou a hora. Já passou da hora, aliás. Para quem nunca leu nenhum dos meus posts sobre questões de gênero, ou leu sobre a questão, começo explicando que "gênero" são papéis sociais, o comportamento esperado de homens e mulheres em uma dada sociedade. Esses papéis não são fixos, mas dinâmicos, são historicamente localizados e nada tem a ver com o exercício da sexualidade-desejo, isto é, ser hetero, bi, homo etc. Além disso, papéis de gênero normalmente são hierarquizados. Sendo assim, em sociedades patriarcais, ser homem é sempre mais importante do que ser mulher, ainda que tanto homens, quanto mulheres estejam pressionados a se encaixar em modelos de masculinidade e feminilidade que não escolheram, mas são produtos da sociedade na qual nasceram.
"Homem não chora!" "Fale feito homem!" " Você parece uma menininha!" Espera-se que um homem seja forte, em muitos aspectos a violência masculina seria aceitável, porque seria expressão "natural" dessa força. Isso pode significar falar alto e grosso, socar outros homens, abrir caminho no mundo do trabalho usando de grande agressividade e assediar mulheres, claro. Somente assim um homem será visto como homem de verdade pelos seus pares e mesmo algumas mulheres, afinal, existe a dinâmica desses papéis e o feminino e o masculino se relacionam no mesmo sistema. Tais comportamentos seriam justificados com apelos à (*suposta*) natureza. Testosterona, vocês sabem. No entanto, quem nunca viu um pai, ou mãe, ou madrinha, ou avô, whatever estimulando um bebê de colo a piscar para as meninas, a namorá-las. Ele está sendo ensinado a ser homem, porque isso, se aprende no social.
Quando falamos em masculinidade tóxica, estamos nos remetendo a um modelo de "ser homem" que estaria ancorado na agressividade e na crença de uma superioridade dos homens sobre as mulheres e outros tipos de homem que não conseguem performar as características masculinas fundamentais. Um homem que não atinge esse ideal de masculinidade seria menos homem, estaria se colocando no lugar que é das mulheres, se efeminando. Ao fazer isso, ele traria vergonha para si e para todos os homens coletivamente. A homofobia tem as suas raízes nesse sentimento de ofensa à coletividade, afinal, por qual motivo um homem se colocaria na posição de mulher? Enfim, vamos aos dois casos reais agora.
O humorista Marcelo Adnet, e não estou perguntando se você gosta dele, ou não, falou publicamente sobre o abuso sexual que sofreu na infância. Ele tinha sete anos quando foi violentado por um homem adulto, mais tarde, aos 11, foi abusado de novo por um garoto mais velho. O ator comentou da dor, da vergonha, da humilhação, sobre 25 anos de silêncio. Ter uma personalidade falando sobre o tema é importante, porque serve para que outros homens tenham coragem de comentar sobre violências sofridas e meninos tenham força para pedir ajuda. Ao confessar publicamente o ocorrido, tocou em um tema que é muito difícil para os homens, porque, bem, as vítimas de estupro sempre são mulheres, ou homens que não foram homens o suficiente.
Fazia tempo, aliás, que não via um homem tocando no assunto se não fosse para justificar um abuso sexual cometido por ele mesmo, tipo "Violentei aquela mulher/criança, porque fui abusado na infância.", ou em algum testemunho de um "ex-homossexual", "Me tornei gay, porque fui abusado na infância.". O testemunho de Adnet não tinha o intuito de justificar nada, mas de desabafar a alertar para algo que ocorre e que é silenciado, pois quando um homem fala sobre o tema, ele se arrisca a ser alvo de toda sorte de agressão, porque, bem, a classe dos homens se protege, mas é muito cruel com aqueles que se rebaixam e se colocam na posição feminina. Nesse momento, na cabeça do sujeito que está atrelado à masculinidade tóxica, é preciso condenar a vítima para reafirmar sua própria identidade masculina.
Homem, que é homem, não é abusado sexualmente! |
E foi o que aconteceu com Marcelo Adnet. Ele recebeu uma série de agressões, provavelmente, de gente que é a favor da moral e dos bons costumes e que se diz a favor das piores penas para um estuprador. Sabe aquele sujeito que deseja que o homem acusado de estupro vira "mulherzinha" na prisão? Pois é... Um desses que foi para a internet agredir Adnet é um militar da Marinha, parece que será punido por ter agredido o ator nas redes sociais. Ele não foi o único. O caso me fez lembrar do excelente filme O Príncipe das Marés, no qual o protagonista é estuprado junto com a mãe e a irmã, quando tinha 13 anos. por bandidos que invadiram sua casa, que ficava em um local isolado. O irmão mais velho chegou e, armado, matou os sujeitos. Não vou dar detalhes aqui, mas focar no seguinte, a mãe exigiu o silêncio. Vinte ou mais anos sem poder comentar, pedir ajuda. Quando o protagonista adulto, interpretado por Nick Nolte, consegue contar para a terapeuta da irmã, que tinha histórico de tentativa de suicídios, o que tinha ocorrido, ele, que era um machão típico, desaba e só consegue repetir "Não se faz isso com um menino." Leia nas entrelinhas e entenda que não se faz isso com meninos, mas é aceitável que se faça isso com mulheres e meninas e somente com elas.
Essa campanha ficou excelente. |
Falei no título em milhares que podem morrer por causa da masculinidade tóxica e preciso explicar. O professor Robin Dembroff, da Universidade de Yale, analisou a postura de Donald Trump e Bolsonaro diante da pandemia do COVID-19. Eles resistem a admitir a necessidade do isolamento, a dar valor à ciência (*quando as conclusões os contradizem*), a mostrar empatia pelos que sofrem e estão morrendo. Segundo o especialista, "Nos encontramos em um momento que exige traços tradicionalmente 'femininos', como empatia, solidariedade e compaixão", essas características não podem ser exercitadas pelo machista tóxico, porque bem, são coisa de mulher.
Nesse sentido, talvez você tenha tropeçado em matérias que enfatizam o quanto mulheres chefe de estado tem lidado com a pandemia de forma bem eficaz. Percebem os papéis de gênero operando? Espera-se que elas, por serem mulheres, tenham essa predisposição para cuidar das pessoas e compreender suas necessidades. Mulheres devem cuidar da nação, do seu bem estar. Não se trata de atributo natural, claro, é algo que a maioria das mulheres são obrigadas a aprender desde que recebem sua primeira boneca e alguém lhes diz que é seu bebê e que você precisa cuidar dele. Uma mulher pode ser insensível, pode emular a masculinidade tóxica, mas terá que assumir as consequências psicológicas e sociais de seus atos. No caso das mulheres à frente de Estados europeus, Taiwan e Nova Zelândia durante a pandemia, e mesmo a Rainha Elizabeth II, que fez um inédito pronunciamento de Páscoa, elas tem servido de exemplo positivo de bom exemplo quando se trata de medidas que visem a preservação de vidas.
A primeira-ministra da Nova Zelândia vem fazendo um excelente trabalho. |
Retornando, o machista tóxico tem muita dificuldade em romper com a ideia de que o corpo masculino é naturalmente forte, impermeável às doenças. O corpo doente é o corpo feminino, aprendemos isso desde nossa infância com as campanhas insistentes sobre toda sorte de moléstia que podem nos acometer simplesmente por sermos mulheres. Câncer de mama e de colo de útero, osteoporosis (*só mulheres parecem ter ossos*) e outros. Somos sempre conclamadas a nos cuidar para poder cuidar dos outros. Enquanto isso, silêncio sobre doenças que podem acometer somente os homens, daí, quando eles procuram os cuidados médicos, não raro, é tarde demais. Agora, tentem lembrar das diversas piadas sobre exame de próstata que você já ouviu. Os próprios homens sexualizam um exame médico, afinal, o corpo de um homem não deve ser penetrado jamais sem que isso seja motivo de humilhação, ou riso.
É engraçado, não é? |
Claro, eu acrescentaria um detalhe da cultura bolsonarista, o culto à morte (*do outro, do oponente*). Isso vem de longe, mas várias falas do presidente apontam para a naturalização das mortes dos que se contaminarem com o COVID-19. “Alguns vão morrer, lamento, essa é a vida”, se é assim, nada precisa ser feito? Voltem ao trabalho. Solidariedade? Empatia? Nenhuma. Em uma live na Páscoa, o presidente se comparou ao próprio Jesus, como se tivesse voltado da morte com a facada. Alguns são especiais, se você não é, conforme-se. Nas ruas, também no fim de semana, os seguidores do presidente simularam um funeral e desejaram a morte do governador do estado de São Paulo.
Um dos líderes da manifestação na Paulista. Depois, ele se desculpou. |
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