Em 30 de março, faz tempo já, fiz um post no Facebook e prometi para minha amiga Lina que o traria para o Shoujo Café. Enfim, sigo alguns canais sobre História da Moda no Youtube, além do site Frock Flicks, que vivo citando em quase toda resenha de filme, ou série, de época. Antes de engravidar da Júlia (Janeiro/2013), estava pensando em fazer uma especialização em História Social da Moda. Quem sabe, um dia.
Não sou especialista no tema, que fique claro, mas sou historiadora e minha área são estudos feministas e de gênero e os discursos atrelados a eles. Pois bem, um dos canais de moda que eu acompanho fez um vídeo "desmistificando" a perseguição ao espartilho. Faz tempo que já notei que algumas das mulheres interessadas em história da moda fazem uma espécie de defesa dessa peça de vestuário, como se ela tivesse sido demonizada sem razão, quando, na verdade, era benéfica para as mulheres. Muito bem, segue o vídeo, está em inglês, mas acredito que tenha legendas até em português. Em seguida, meus comentários.
Logo de início aparece o meme da Nazaré confusa. É realmente interessante ver o quanto ele se difundiu pelo mundo e confesso que foi exatamente por causa dele que eu persisti assistindo até o fim. O primeiro argumento da autora do vídeo é que a cultura popular estigmatizou os espartilhos como algo torturante para as mulheres. Ela cita diretamente E o Vento Levou, uma espécie de marco nessa difamação dos espartilhos, e fala que o livro foi escrito pelo menos vinte anos depois (*ele é de 1936*) do abandono da peça de roupa. Segundo a autora do vídeo, ninguém lembrava como era usá-los quando o filme foi lançado.
Muito ingênuo da parte dela, afirmar isso, porque os espartilhos começaram a ser abandonados na década de dez e havia um número considerável de mulheres, se estamos falando da palavra delas, vivas nos anos 1930 e que tinham vivido a era dos espartilhos. Fora, claro, que havia muitas revistas de moda do século XIX que deveriam ser acessíveis naquele momento, disponíveis em coleções particulares e em bibliotecas. E falo de revistas, fashion plates, não dos cartuns satíricos utilizados no vídeo.
Muito ingênuo da parte dela, afirmar isso, porque os espartilhos começaram a ser abandonados na década de dez e havia um número considerável de mulheres, se estamos falando da palavra delas, vivas nos anos 1930 e que tinham vivido a era dos espartilhos. Fora, claro, que havia muitas revistas de moda do século XIX que deveriam ser acessíveis naquele momento, disponíveis em coleções particulares e em bibliotecas. E falo de revistas, fashion plates, não dos cartuns satíricos utilizados no vídeo.
Downton Abbey mostra o fim da era dos espartilhos e várias mudanças na silhueta feminina IDEAL ao longo das décadas de 1910 e 1920. |
Aliás, há uma cena no livro E o Vento Levou, não no filme, vejam bem, que mostra como Scarlet O'Hara era uma tomboy e pulava cercas e corria, mas que era duramente repreendida por isso pela mãe e pela ama escrava. Esse papel, aliás, o da repressão e da doutrinação das crianças, é principalmente das mulheres mais velhas. Que uma dama não pode pular uma cerca para cortar caminho, ela deve caminhar toda a distância com elegância. Scarlet se conforma para conseguir ser socialmente aceita, isso, claro, antes da guerra. O que eu quero deixar claro é que a coisa vai muito além do espartilho peça de roupa.
Muita gente odeia E o Vento Levou... por motivos diferentes. Scarlet fica em choque ao descobrir, NO FILME, que não tem mais uma cintura ideal (18 inches/45,72 cm) depois de ter sua filha. |
O enfaixamento dos pés das meninas chinesas era imposto inclusive às camponesas, porque uma mulher com pés grandes, isto é, normais, não conseguiria casamento, ou, pelo menos, um bom casamento. Os modelos de beleza criados pelas classes ou grupos dominantes tendem a ser imitados por toda a sociedade. O enfaixamento começava na infância, logo que a menina começava a andar, ou até os seis anos, no máximo. As mulheres sentiam dor, algumas ficavam aleijadas no processo, mas que alternativas elas tinham?
Isso não era natural, isso deveria doer muito, e não somente no processo de deformação, mas por toda a vida. |
Lembrei, também, da época em que eu fazia parte de um grupo sobre mulheres no Islã o Orkut e a discussão era sobre a questão das roupas, uns paquistaneses, que sempre invadiam esses espaços para dar suas opiniões, vieram dizer que era ridículo estarmos dizendo que o niqab, o chador, a burqa restringia o movimento das mulheres. "Há iranianas que praticam montanhismo usando chador!". As iranianas, claro, vieram dizer que elas não tinham opção, ou era assim, ou elas não poderiam praticar o esporte. A lei impunha um código de vestimenta e, bem, você tinha que improvisar. Vale o mesmo para as montanhistas que aparecem no vídeo. Elas não tinham escolha. Pelo vídeo parece ser muito fácil para uma mulher se recusar a usar algo que se esperava que todas usassem em uma dada sociedade. Até Maria Antonieta se viu obrigada a adotar o modelo de corpete francês, intimada que foi pela própria mãe a seguir a etiqueta da corte de sua nova prática. O espartilho francês era diferente do austríaco e causava incômodos à adolescente. Ela não teve escolha.
Propaganda de espartilho infantil, feito industrialmente, 1883. |
Percebam que não foi uma escolha minha, não era uma escolha de nenhuma menina, mesmo que ela acreditasse nisso. E a propaganda de sutiã mais famosa dos anos 1980, era, na verdade, um grande fanservice usando uma atriz menor de idade, Patricia Lucchesi. Era uma propaganda que mostrava para as meninas como elas se tornariam interessantes (*sexualmente*) se usassem a peça, para os meninos e homens, bem, era uma forma de reforçar o padrão de mulher (*menina, na verdade*) desejável, mas pouco acessível para a maioria deles.
Outro argumento da moça do vídeo é que espartilhos não causam nenhum problema físico e que não há esqueletos de mulheres deformados por eles (*mas há outras evidências*). Outra coisa que ela diz é que os espartilhos faziam bem à saúde, especialmente, para a coluna. Não apresentou a palavra de nenhum médico, ou médica, para reforçar essa ideia, mas a ideia de que os médicos mentiram sobre o espartilho é uma das vigas mestras do vídeo.
O vídeo afirma, e há outras fontes que fazem o mesmo, que o "tie lacing", esse uso do espartilho excessivamente apertado, era exceção, um fetiche masculino usado nas sátiras à vaidade das mulheres e ao espartilho como peça de vestuário. E convém separar as duas coisas, porque elas são diferentes e, normalmente, aparecem em momentos distintos do século XIX. As sátiras à vaidade, no início do século XIX, às críticas ao espartilho, já no final desse século, ou início do século XX. Outra ideia defendida no vídeo é que nenhuma mulher vitoriana faria cirurgia para retirar costelas, algo que é contado e recontado em livros e documentários, porque era perigoso demais.
Vocês sabem, pessoas não fazem coisas perigosas para atingirem um ideal de beleza almejado por elas. Quando ela fala dos médicos é para dizer que eles mentiam sobre os males causados pelos espartilhos. Médicos mentem e se enganam, mas não o tempo inteiro e sobre tudo. Só que a ciência é, também, uma disputa de narrativas, além de ser dinâmica, isto é, novas descobertas, novas pesquisas, podem mudar velhas crenças e atitudes diante de práticas sociais sedimentadas.
Raio X de 1908. É do link que está no parágrafo acima. O médico autor desse estudo não defendia o fim dos espartilhos, mas um uso que fosse menos daninho à saúde. |
Vocês sabem, pessoas não fazem coisas perigosas para atingirem um ideal de beleza almejado por elas. Quando ela fala dos médicos é para dizer que eles mentiam sobre os males causados pelos espartilhos. Médicos mentem e se enganam, mas não o tempo inteiro e sobre tudo. Só que a ciência é, também, uma disputa de narrativas, além de ser dinâmica, isto é, novas descobertas, novas pesquisas, podem mudar velhas crenças e atitudes diante de práticas sociais sedimentadas.
Caricatura satírica de 1830 à vaidade feminina, não ao espartilho em si. |
Preparando minhas aulas sobre Revolução Americana, encontrei a informação, que era usada como ofensa, de que Thomas Paine, um dos nomes mais importantes do movimento, era fabricante de espartilhos. Isso, no século XVIII. Em uma página dedicada à Paine, é explicado que ele pouco se dedicou ao ofício, seu pai fabricava stays, mas que o herdou do pai (*não da mãe, vejam bem*), que era desse ramo. É importante estudar a importância das mulheres na indústria da moda e como seus nomes apagados, mas é fundamental não tentar romantizar as coisas, também.
Propaganda de espartilhos de vários tipos e para várias idades, inclusive bebês, de 1886. |
Um espartilho dos anos 1880 e uma propaganda da virada para o século XX. |
Nunca vi uma imagem sequer de homens espartilhados em situação normal, em um quadro, por exemplo, ou mesmo foto. Um quadro, por exemplo, propaganda de jornal, ou revista para cavalheiros. Nada. Até achei alguma coisa em revistas, mas nada efetivamente que me convencesse de que o uso dos espartilhos entre os homens fosse corrente no século XIX.
Laura Ingalls Wilder (Little Town on the Prairie).
Mudança no formato do corpo ideal feminino ao longo de quase meio século. |
Já perto do fim, ela fala que muitas fotos com cinturas finíssimas eram retocadas e que os quadros não correspondiam à realidade. Pode ser novidade para muita gente? Talvez. Editar fotos era algo corrente desde os primórdios da fotografia, especialmente para afinar ainda mais as cinturas de vedetes e atrizes que já eram famosas por terem essa característica, mas duvido que as fotos da Rainha Mary, avó de Elizabeth II,tivessem sido retocadas.
Final do século XIX, uma das fotos deve ter sido retocada, a outra foi feita para o consumo masculino. |
Claro, estou falando das mulheres ricas, a situação das mulheres pobres poderia ser bem outra. O seu Júlio de Éramos Seis não estava sendo somente tacanha ao dizer, no livro, que era muito perigoso para uma moça pobre, no caso sua filha Isabel, ser tão bonita. Ele conhecia bem a si mesmo, ou outros homens e o mundo no qual vivia. Voltando, veja que ainda que as mulheres pudessem se torturar para atingir altos padrões de beleza e perfeição, esses modelos estavam atrelados aos interesses masculinos. Elas não estavam se vestindo para si, ainda que pudessem fazê-lo, também, ou acreditar que o estavam fazendo.
Mary of Teck e sua cintura perfeitamente natural, o espartilho nada tem a ver com isso. |
Mulheres desmaiavam mais não somente por causa de espartilhos super apertados. Eu, se fosse fazer um vídeo desmistificando essa ideia de que espartilhos eram toda essa fonte de tortura, nunca me esqueceria de comentar esse aspecto da dieta feminina. Aliás, um dos fatores que conduziu à morte da Princesa Charlotte, e possibilitou a existência de uma Rainha Vitória, foi a dieta de fome imposta à jovem no final de sua gravidez. Mas, enfim, fica para outro texto.
Mary of Teck e sua mãe, que era obesa desde a juventude, mas se esforçava por seguir a moda do espartilho apertado. |
E lá pelas tantas, bem no final do vídeo, ela fala que, sim, havia mulheres que criticavam o espartilho (!!!!) e que, sim, ele produzia alterações anatômicas similares ao de uma gravidez, isto é, meio que rearranjando seus órgãos internos. Fora isso, alguns músculos ficavam fracos o que inviabilizaria o abandono do espartilho de uma vez só. Como as mulheres girafas da Tailândia e seus pescoços artificialmente alongados. Mas ela só diz isso no final, bem, no final MESMO, ou seja, boa parte do vídeo empilha uma série de argumentos para justificar algo que, bem, era uma imposição e que, sim, causava limitações e alterações ao corpo feminino, tanto quanto o uso prolongado de sapatos altos.
O uso do espartilho funcionava de forma semelhante ao das argolas das mulheres girafa da Tailândia. |
3 pessoas comentaram:
Eu assisti recentemente um vídeo de uma historiadora - Eneida Queiroz - que trata disso. Ela entende que eles não eram exatamente desconfortáveis, mas também não eram algo "bom" para as mulheres, por diminuir a capacidade respiratória e impedir que a mulher tivesse rendimentos tão bons quantos os homens, entre outras coisas. Vale a pena assistir. Bjs de uma fã sua, Valéria!
Diana
Eu acompanho o canal da Eneida, alguns vídeos dela são muito bons e o trabalho que ela faz é excelente no geral. Agora, esse porém que ela parece abrir em relação ao espartilho, tipo ele não é tão ruim assim, me parece mais coisa de quem não quer desagradar parte da sua audiência que é de gente como a moça que fez esse vídeo que eu comentei. Percebe?
Entendo sim, Valéria, é possível. Confesso que não tenho conhecimento suficiente para opinar mais a fundo =/
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