Assisti Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (Onward) no dia seguinte à estreia. Quase três semanas atrás, portanto. Foi minha última ida ao cinema antes da crise do Coronavírus que obrigou todas as salas de Brasília a fechar. Medida justa e importante, que fique claro. Pois bem, se não fosse pela Júlia, minha filha de seis anos, eu não iria assistir Dois Irmãos. Não iria mesmo! O trailer não me disse nada, não me chamou para o cinema, não sinalizou de forma consistente o que eu poderia encontrar na película. Só digo o seguinte, ainda bem que ela me intimou a ir, porque o novo filme da Pixar é muito bom.
Não se enganem com a bilheteria, a pandemia teve forte impacto nas bilheterias e, provavelmente, o trailer ineficiente ajudou a afastar muitos adultos. Mas Dois Irmãos é um filme inteligente, divertido e cheio daqueles bons sentimentos que a gente precisa cultivar para uma boa vida em sociedade. É um filme que exalta os laços familiares, o desprendimento e a superação dos obstáculos sem ser piegas em nenhum momento e com personagens que são gostáveis. Mesmo as coadjuvantes menores conseguem ser interessantes e menos rasas do que a média.
Lauren, a mãe de Ian, é cheia de energia. |
Nesse novo mundo, a magia desapareceu, as fadas não sabem mais voar, unicórnios vagam pelas ruas comendo o lixo que os outros seres produzem. Pouca gente se lembra do passado e os que mantém a memória daqueles tempos sofrem com o deboche e o ostracismo. Somos então transportados para a cidade de New Mushroomton, onde mora a família Lightfoot. Eles são elfos, o pai faleceu e moram juntos a mãe e os dois filhos adolescentes. Barley, o mais velho, é fascinado por esse passado mágico, e vive se metendo em confusões, inclusive por tentar preservar monumentos desse tempo perdido, sendo chamado com deboche de "historiador". Seu irmão, Ian, é tímido, solitário e com algumas fobias como o medo de dirigir.
Ian é solitário, tímido e cheio de fobias. |
Como fui para o cinema imaginando que não iria gostar do filme, fiquei feliz em assistir uma película que me manteve atenta o tempo inteiro. Mesmo assistindo em um horário noturno, não me cochilei em nenhum momento, apesar de todo o meu cansaço. Em Dois Irmãos há discussões que estão ao alcance das crianças, não das menores de cinco anos, acredito, e mensagens para os adultos, também. Fala-se da importância de se ter um irmão, o fato do lugar de pai não necessariamente precisar ser ocupado por ele, e, ainda assim, a defesa de que ter um pai é importante e que ele faz falta na nossa vida, são questões presentes no filme.
Não vou explicar o motivo do pai estar assim, veja o filme. |
Só que dadas as diferenças entre os dois, a introversão de Ian, ele realmente acredita que existe um vazio em sua vida, uma lacuna deixada pelo pai que nunca conheceu. Não sei se para a maioria das crianças as discussões sobre morte, perda de um ente querido e a necessidade de continuar em frente ficaram claras. O fato é que o filme discute muito bem a necessidade de viver o luto e de superá-lo. Não sei se devo falar, mas o pai é uma personagem presente durante boa parte do filme, mas não de uma forma convencional, por assim dizer.
Barley acredita que somente a Mantícora poderá ajudá-los. |
Agora, há um porém nessa história de magia. Diferente da tecnologia, que todos podem usar, somente alguns tem o dom de fazer mágica. Ainda que exista o aprendizado, acredito que o filme tropece ao definir que para ser um mago é preciso ser "um dos escolhidos", fazer parte de uma elite. A tecnologia é democrática, todos podem usar, todos, com algum esforço e inventividade, podem criar coisas novas. Nesse sentido, o filme, ao privilegiar a magia, algo central na história, termina por defender um modelo de sociedade que é excludente.
As fadas motoqueiras me pareceram uma referência a Mad Max. |
De resto, o filme discute como superar a timidez e as fobias, a depressão (*Ian, para mim, era depressivo*), o bullying e outras coisas que tornam a nossa vida miserável. As inseguranças de Ian, sua incapacidade de encarar a vida de frente, ajudam a tornar a história muito realista. Lecionado para adolescentes, a gente percebe o quanto questões que são tratáveis podem evoluir para doenças reais. A cada ano, tenho um maior número de alunos e alunas com diagnósticos de depressão e com histórico de tentativas de suicídio. A solidão e a incapacidade de dialogar, ou de encontrar quem os ouça está na base de muitas tragédias. Ian consegue fazer as pazes consigo mesmo, se reaproximar do irmão e da mãe, além de compreender qual o lugar de seu pai em sua vida.
Lauren, o namorado policial e a Mantícora. |
Lauren, a mãe dos meninos, não é deixada para trás, ela parte em busca dos filhos para ajudá-los, mas seu papel é um reforço daquela ideia de que a maternidade é o que dá sentido à vida de uma mulher e que ela e capaz de tudo para proteger sua cria. E tudo é tudo mesmo. Já a Mantícora, ser mitológico com rosto de leão, asas de morcego e cauda de escorpião, fundamental para a missão dos rapazes, é uma das melhores personagens do filme. Através dela podemos discutir como abrimos mão dos nossos sonhos, daquilo que temos de melhor, para nos deixar domesticar pela sociedade. Não estou falando de papéis de gênero. A mantícora poderia ser uma personagem masculina na mesma situação, ou poderia ser outro ser mitológico qualquer, enfim. Por causa dessas duas cumpre-se a Bechdel Rule no filme. E parece que ao longo da produção muita coisa foi mudada, mas nunca no sentido de colocar uma adolescente como co-protagonista.
Essa personagem gerou polêmica. |
Enfim, Dois Irmãos já vai para streaming daqui a pouco por causa do coronavírus, se puder assistir no original, não perca a chance. Os principais dubladores são Tom Holland e Chris Pratt. Repito que não se espantem com a bilheteria baixa, a pandemia e um trailer ineficiente ajudaram. Não sei se minha resenha foi competente o suficiente para vender as virtudes de Dois Irmãos, mas acreditem que o filme é muito bom, surpreendentemente emocionante e comovente. E um dos filmes de elogio à família mais interessantes que eu assisti nos últimos tempos.
0 pessoas comentaram:
Postar um comentário