terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Caso de adolescente paquistanesa sequestrada gera comoção e apelo ao Papa Francisco


Antes que o dia termine, preciso comentar o caso de uma menina de 14 anos, católica, chamada Huma Younus, que foi sequestrada, convertida à força e obrigada a se casar no Paquistão.  A família levou o caso à justiça do distrito de  Sindh e o júri afirmou que o casamento não poderia ser desfeito, porque segundo a Sharia (*Lei Muçulmana*), a garota já tivera sua primeira menstruação e estava apta a se casar.  A família, mesmo sendo ameaçada, vai levar o caso à Suprema Corte do país, será a primeira vez que isso acontece, pelo que entendi.  Eu olhei para a foto da menina, dos pais e pensei, "ela poderia ser minha filha".  Sim, acho que senti um pouco da tristeza e da raiva daquela família.

Mais de uma década atrás, li pela primeira vez sobre um crime comum no Paquistão, mulheres, normalmente adolescentes, cristãs e hindus, são sequestradas, obrigadas a se converter e casadas com homens muçulmanos. A conversão para o Islã não deve ser forçada, você não vai encontrar nenhum muçulmano sério que defenda isso, porém, é algo muito fácil de se fazer.   Basta recitar a Sharada diante de testemunhas.  

Será a primeira vez que o caso vai à Suprema Corte.
Já os casamentos resultantes desses sequestros, bem, eles são difíceis de desfazer, porque os oficiais (*polícia, justiça*) tendem a ficar do lado dos agressores e as famílias das meninas geralmente são muito pobres o que dificulta o acesso à justiça.  Recentemente o Paquistão passou uma legislação mais rígida em relação à idade de casamento, exigindo 18 anos para moças e rapazes, mas, ainda assim, especialmente na província em questão, a prática persiste.  Na verdade, erradicar os casamentos infantis é algo muito difícil dentro do Islã, principalmente por causa da própria biografia do fundador da religião.  

Segundo a Unicef, 3% das meninas paquistanesas se casam antes dos 15 anos, 21% antes dos 18 anos.  Lembrando que casamento infantil para a ONU é qualquer que envolva menor de 18 anos. Agora, na província onde ocorreu o sequestro de Huna, Sindh, esse número salta para 72% entre as meninas e 25% entre os rapazes.  As meninas são as mais vulneráveis quando se trata de casamentos precoces e, como apontei no texto, muitas uniões são feitas à força.  Aliás, foi exatamente nessa província que as leis mais duras contra casamentos infantis foram aprovadas primeiro.  Sim, as leis existem, mas não há esforço em implementá-las.

Uma das últimas fotos de Huna.
Na verdade, poucos os países islâmicos que conseguiram criar políticas consistentes contra a prática, vide o caso da Turquia.  Ainda assim, os arranjos ainda se fazem às margens da lei e os partidos religiosos tentam a todo custo mudar a legislação para abrir exceções inclusive para que estupradores possam se casar com suas vítimas.

Antes de continuar, melhor esclarecer uma coisa.  Ainda é comum na Ásia Central (*e Paquistão fica perto, mas não está lá*), casamentos mediante sequestro.  Há casos em que se trata de violência e outros que são uma forma dos jovens de obrigar as famílias a aceitarem um casamento indesejado para elas.  A moça e o moço se gostam, no Islã quem paga o dote é o noivo, ele é pobre, os dois conseguem combinar e fugir.  Ou a coisa termina em tragédia, com honra lavada em sangue, ou a família aceita a situação, afinal, uma noiva devolvida nessa situação é como um objeto danificado.  

Huna estudava em uma escola católica.
No caso desses sequestros de meninas no Paquistão, é diferente.  Normalmente, são meninas não-muçulmanas levadas à força e casadas, não raro com homens bem mais velhos.  Imagino até que existam olheiros que selecionem as possíveis candidatas.  O caso que estou comentando me sugere isso.  O pai de Huna saiu para o trabalho, sua mãe teve que resolver assuntos na rua, a garota estava sozinha em casa e foi abduzida.  A polícia se recusou a aceitar a queixa, provavelmente, por não ter transcorrido um tempo mínimo.  

Dias depois, a família recebeu de um emissário uma cópia da declaração de conversão e o certificado de casamento de Huna.  O detalhe, e isso é que deve servir de argumento na Suprema Corte, é que a data é a mesma do sequestro, só que Karachi, o lugar de origem dos documentos, fica cerca de 600 quilômetros de distância.  Os documentos são falsos.  A jovem sequer apareceu no julgamento, em muitos casos, usam um vídeo da menina confirmando que tudo foi de sua livre vontade, neste, nem isso.  Os pais de Huna temem que ela possa estar morta.  

Manifestação pedindo justiça para Huna.
A família só conseguiu recursos para lutar pela filha, que sequer apareceu no julgamento local, porque está sendo ajudada por outros cristãos, pela arquidiocese e por ONGs que lutam contra esse tipo de prática.  O advogado da família apelou para que os católicos do mundo pressionem o Paquistão, "Hoje, aconteceu com Huna, amanhã, pode ser qualquer outra garota.".  Há um clamor para que até o Papa Francisco entre na confusão, mas não acredito que a ajuda dele terá algum efeito nesse caso.  Espero estar sendo só pessimista.

Quando foi fundado o Paquistão tinha leis que não se pautavam pela Sharia, as questões religiosas eram aplicadas em âmbito privado.  O modelo desse estado era a Turquia, muito provavelmente.  Só que uma coisa é você ter um Estado pretensamente laico e outra é convencer a população de que isso é bom e justo.  Em um país tão desigual e com tanta gente excluída de educação formal, é algo muito difícil. (*Vejam o caso do Brasil neste exato momento*)  Pois bem, em 1978, o ditador de então começou a colocar elementos religiosos na legislação com o apoio das lideranças religiosas e parte da população.  

Protesto contra as Hudood Ordinances.
Em 1979, vieram as famigeradas Hudood Ordinances, que aboliram parte do código penal herdado dos ingleses e introduziram a Sharia.  Para se ter uma ideia, essa legislação trata da mesma maneira estupro e fornicação e adultério, ou seja, se uma mulher for violentada, e o caso chegar à corte, ela precisa de quatro testemunhas a seu favor, ou oito, se forem mulheres.  Ora, quem ficaria assistindo um estupro e não tentaria impedi-lo?  Se não tentaram, são cúmplices.  

Desde 2006, essa legislação vem sendo reformada, porém, o consenso jurídico ainda é que a Sharia está acima da lei civil quando existe conflito.  Daí, o caso da menina Huna e tantas outras ficarem impunes.  Espero que a família consiga resolver o impasse provando que os documentos foram falsificados.

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