A psicanálise era um campo novo no início do século XX. Normalmente, os que se enveredavam nessa carreira eram médicos, homens e brancos. Mesmo hoje, homens negros são minoria nessa área, tente projetar isso para o início do século XX. Mulheres eram a minoria da minoria, se negras, então, nem se fala... Por esses dias, apareceu uma personagem na novela Éramos Seis, da Globo, chamada Dr.ª Selma. Psicanalista, ela foi contratada por Adelaide, a filha feminista de Emília, para tratar de Justina. Um detalhe mais que importante é que além de ser mulher, Selma, interpretada pela atriz Aline Borges, é negra. Talvez, alguém tenha dito que a personagem seria impossível. Não, isso não é verdade.
Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) foi uma das pioneiras da psicanálise no Brasil. Ela foi, também, socióloga e a primeira pessoa a defender uma tese sobre as relações raciais no Brasil (Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo), foi o primeiro trabalho acadêmico em Ciências Sociais em nosso país a abordar o tema, além disso, ela foi o primeiro psicanalista não-médico a clinicar no Brasil. Filha de uma imigrante italiana branca e de um homem negro, Bicudo era neta de escravizados e enfrentou toda sorte de obstáculos em sua carreira e, claro, o esquecimento, o último recurso quando se trata de esconder as contribuições de mulheres e não-brancos para a ciência.
Confrontada pelo racismo, Virginia tomou um choque e decidiu estudá-lo. |
Um artigo de Ana Paula Musatti Braga cita trechos de entrevistas com Vírginia Bicudo dadas em 1983 e 1998 e eles são bem ilustrativos do que a cientista enfrentou: “Eu fui criada fechada em casa. Quando saí, foi para ir à escola, e foi quando, pela primeira vez, a criançada começou: ‘negrinha, negrinha’. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então, eu levei um susto.” (1983), exatamente por isso, ela disse “Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E, na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história” (1998).
Segundo Isildinha Baptista Nogueira, doutora em psicologia clínica pela USP (Universidade de São Paulo), especialista no estudo das questões raciais, "Quando era estudante, nunca soube da Virgínia. Não há essa informação nas escolas de psicanálise, nem de psicologia, nem de psicologia social. Se você for a uma livraria, não vai encontrar os textos dela.". Se o pioneiro de uma área de conhecimento fosse um homem branco, será que ele seria esquecido? Para essa discussão, recomendo o artigo do HuffPost e agradeço ao Miguel por ter me lembrado dele, tinha pensado em comentar sobre a questão, mas tinha esquecido.
Virginia Bicudo é lembrada, também como divulgadora das ideias científicas. |
É muito interessante que a novela tenha trazido essa personagem e a colocado em cena para discutir racismo, não para passar a ideia de que ele não existia e que a cor era fator sem importância, algo que eu tinha criticado antes. Obviamente, Emília tem um mordomo negro e não colocaram nessa novela a cena na qual a tia rica de Lola dizia que não contratava negros. Agora, ter uma médica mulher e negra atendendo sua filha é outra história, porque não se trata de um subalterno, mas de alguém que transgrediu dois limites. Ainda assim, a rejeição da personagem é cortina de fumaça para esconder os motivos da doença da filha. Na novela de 1977, a cena está no Youtube, mas não tenho como encontrar agora, o psicanalista era homem e branco. Um avanço, então. Espero que a Dr.ª Selma permaneça na trama de alguma forma.
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