sábado, 18 de janeiro de 2020

Comentando Retrato de uma Jovem em Chamas (França/2019): um elogio à sororidade e ao amor entre duas mulheres


Ontem, porque terminei depois da meia noite, assisti ao filme Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu) belo filme de amor feito por mulheres (diretora, roteirista, produtoras etc.) e com mulheres.  Fazia muito, muito tempo que não assistia a um filme no qual todas as personagens são mulheres, que a história é delas para elas.  A película foi a primeira dirigida por uma mulher, Céline Sciamma, a receber o prêmio Queer do Festival de Cannes e recebeu, também, o prêmio de melhor roteiro no festival.  E, cabe destacar, Schiamma, que tem extenso currículo, é a grande responsável pela qualidade de Retrato de uma Jovem em Chamas, um filme delicado, discreto, mas cheio de sentimentos conflituosos, turbulentos como a praia da ilhazinha da Bretanha onde se passa a história, que me tocou profundamente, e valoriza a sororidade e o amor entre mulheres.

O filme se passa na França, em algum momento do final do século XVIII.  A ação começa em uma aula de pintura.  Uma professora dá lições para um grupo de adolescentes.  Uma delas trouxe para a sala de aula o quadro da professora que dá nome ao filme, Retrato de uma Jovem em Chamas.  A partir daí, Marianne (Noémie Merlant) se recorda de quando foi contratada por uma condessa (Valeria Golino) para pintar um retrato de sua filha, Héloïse (Adèle Haenel), em uma remota ilha da Bretanha.

O primeiro retrato de Marianne, feito às escondidas.
A jovem tinha sido retirada do convento contra sua vontade para substituir a irmã, que iria se casar com um nobre da cidade de Milão.  A irmã de Héloïse tinha cometido suicídio por motivos não explicados e a moça é mantida reclusa em casa pela mãe que teme perder outra filha.  Marianne é apresentada à jovem noiva como sua acompanhante por alguns dias, mas tem a ordem de pintar em segredo um retrato da moça.  Héloïse se recusa a ser pintada, trata-se de única resistência possível a ela contra um casamento que não deseja.  Desde o primeiro momento, estabelece-se um elo de amizade e confiança entre Marianne e a solitária Héloïse e, ao longo do filme, observamos o romance impossível entre ambas.

Portrait de la jeune fille en feu é um filme denso e que se constrói a partir da relação entre quatro mulheres.  Marianne e Héloïse, que vivem um romance intenso durante os poucos dias dos quais dispõe, Sophie (Luàna Bajrami), a jovem criada grávida e que recebe apoio das duas, e a Condessa, cuja presença representa a manutenção de uma ordem social de privilégios e exclusões.  Quando a personagem de Valeria Golino se ausenta, as três jovens desenvolvem uma relação de amizade que seria impossível em virtude das barreiras de classe, seu retorno significa que a ordem foi restaurada e a partida de Marianne estava próxima.

Venta muito na ilha e as moças precisavam
cobrir o rosto para caminhar pela praia em alguns dias. 
Marianne, a professora, representa um tipo de mulher artesã que não era incomum no século XVIII e mesmo antes dele.  Ela herda o ofício do pai e seus clientes, já no final do filme, ela está expondo seus quadros usando o nome do pai, afinal, ela era um prolongamento dele. Uma mulher talvez não conseguisse expor seus quadros. Marianne se mantém solteira, garantindo uma certa liberdade, mas precisa da proteção da nobreza e da alta burguesia a quem precisa agradar.   Usei o termo artesã, porque, segundo Norbert Elias em sua biografia de Mozart, o artista estava nascendo nessa época.  Marianne pinta o que lhe mandam pintar, precisa seguir uma série de convenções pré-determinadas e que atendam ao gosto dos seus clientes.  

Há um momento interessante do filme sobre a discussão das restrições impostas às mulheres artistas.  Héloïse pergunta para Marianne se ela desenha nus.  A pintora diz que, sim, mas somente de mulheres, pois não permitem que as pintoras usem modelos nus masculinos e estudem anatomia. "Por causa do pudor?", pergunta Héloïse.  "Não, para que não possamos fazer arte de grande qualidade.", responde Marianne, "Mas eu treino às escondidas.".  Ao longo dos séculos, colocaram toda uma sorte de obstáculos às mulheres.  As que conseguiam vencer o faziam, ou por contarem com apoio decisivo de alguma personagem importante, ou por lutarem e produzirem material de tão grande qualidade, que não poderia ser ignorado por ninguém.  Normalmente, e isso é mostrado no filme, pintoras de retratos eram aceitas, mas eram excluídas de outras formas de expressão.

Héloïse é cheia de raiva dentro de si.  É alguém que
acredita que sua vida lhe está sendo roubada.
A pintura que dá nome ao filme não foi encomendada e, por isso, ela rompe com os padrões estéticos dominantes e expressa não somente o potencial artístico de Marianne, mas a alma atormentada da modelo, Héloïse, uma jovem que carrega muita raiva e vontade de viver dentro de si.  O caso de Héloïse, retirada do convento para ocupar o lugar da irmã, não era incomum, mesmo homens passavam por isso.  Diferente do que a maioria dos filmes e novelas gosta de vender, para Héloïse o convento era um lugar de acolhimento.  Lá ela podia ler, ouvir música de qualidade e mesmo produzi-la.  

A visão da vida religiosa feminina como algo sempre ruim, com mulheres reprimidas, aprisionadas, torturadas, foi reforçada na época do Iluminismo, especialmente por causa da obra A Religiosa, de Diderot.  Nesse livro, que tem uma versão relativamente recente para o cinema, temos uma jovem nobre, que é colocada no convento por ser fruto de um adultério da mãe.  Ela recebe uma excelente educação, melhor do que qualquer uma de suas irmãs, mas ela não tem vocação, ela deseja se casar e ter filhos.  Como ela resiste e acontece um escândalo, a mãe lhe revela a verdade e ela termina condenada, de fato, à vida religiosa que será marcada pela esterilidade, afinal, a jovem deseja casar e procriar e pelos abusos sexuais por parte de uma superiora lésbica e, posteriormente, de um padre sedutor. 

Marianne raramente sorri.
Percebam que há o discurso anticlerical, inclusive da ideia de que o convento atentaria contra a natureza das mulheres, mas, ao fazê-lo, reforçasse a ideia de que uma mulher só é feliz, plena e realizada se ela se casa com um homem.  Essa narrativa é hegemônica até hoje e se presta entre outras coisas ao reforço da heteronormatividade.  Como as freiras poderiam ser felizes se não tinham homens por perto?  Eu que estudei as religiosas franciscanas no século XIII e tive que ler muito sobre vida religiosa feminina no geral, tenho plena consciência do quanto a ideia de que o convento é uma prisão na qual as mulheres perdem sua vida é uma narrativa dissociada das fontes, ou baseada em uma seleção de fontes com o objetivo único de confirmar a hipótese.  

Havia freiras feitas à força?  Muitas.  Mas o espaço do convento era visto como refúgio para mulheres que não queriam casar, ou recasar, para jovens que desejavam se dedicar aos estudos e/ou a Deus.  O único lar para meninas órfãs que tinham nas irmãs a sua família.  Algumas abadessas tinham tanto poder quanto os nobres mais poderosos, poderiam até não ter ido parar no convento por escolha, mas muitas jamais abririam mão de sua posição por um marido, ou amante.  Não raro, as comunidades religiosas criavam suas próprias regras que iam de encontro aquilo que as autoridades masculinas desejavam.  Como sabemos disso, pela quantidade enorme de textos tentando colocar freio nas mulheres, seja na austeridade religiosa de algumas, seja na forma livre que outras pretendiam viver dentro dos conventos.

A criada Sophie tem um grande papel na trama.
Héloïse teve no convento uma experiência libertadora, não, castradora.  É em casa, uma propriedade rica em uma região erma da França, sem companhia de gente de sua idade e posição, carente de livros, tanto que a primeira coisa que ela pergunta para Marianne é que ela trouxe livros, que a moça se sente prisioneira.  O casamento não é uma escolha, mas uma imposição, uma nova prisão.  Marianne, que teve uma experiência ruim na escola do convento, pois queria desenhar em todos os lugares e horas possíveis e era punida pelas irmãs, tenta convencer Héloïse de que o casamento será uma situação satisfatória, que Milão é uma bela cidade, cheia de arte e de música.

Na verdade, essa insistência de Marianne é uma forma de tentar mascarar seus sentimentos pela outra moça, a sua modelo.  Em dado momento, quando a condessa teve que se ausentar por alguns dias da mansão, Héloïse pergunta para Marianne se ela já amou.  Marianne diz que sim, não por ter amado um homem anteriormente, mas por estar amando naquele momento.  Aqui, cabe explicar que o que aproxima Héloïse e Marianne da criada, Sophie, e conduz a essa conversa sobre amores passados, é o fato da criada adolescente estar grávida.  

Héloïse aceita posar para Marianne e as duas terminam se aproximando
 ainda mais.  A tensão erótica entre as duas é grande.
O filme mostra de forma muito natural como no século XVIII, antes do Estado se meter na questão e da Igreja se tornar tão enfática em relação à proibição do aborto, a gravidez indesejada e as formas de se livrar dela eram um assunto de mulheres, resolvido de forma sigilosa, mas sem escândalo, ou recriminações. Lembrei-me de uma parenta distante dizendo para uma das minhas primas em Sergipe, lá no longínquo ano de 1994, que estava feliz porque o chá que tomara fizera seu problema acabar.  “Desceu, graças a Deus!”  Minha mãe ficou horrorizada, mas guardou para si sua indignação.  Eu, na época, tinha pouca reflexão sobre o tema, mas as práticas daquelas mulheres, sua sororidade, pouco diferiam da do filme que se passa no século XVIII.  

A questão é do interesse das mulheres, tudo acontece dentro dos seus corpos, se a gravidez progride é sua vida que está em risco, são elas que perdem seus empregos, que são chamadas de “puta” pela vizinhança, e, claro, se solteiras, cabe a elas criar a criança.  Marianne é muito prática e pergunta para Sophie se ela deseja a criança.  A garota diz que não, que não pode ter o bebê.  A partir daí, as três jovens vão se empenhar em conseguir ervas e levar adiante umas medidas estranhas para que Sophie aborte.  Superstições, mais do que qualquer conhecimento científico.  Por fim, as moças acompanham a menina até a Fazedora de Anjos (Christel Baras), que termina por resolver o problema de Sophie em uma sequência que é carregada de poesia, mas, também, de angústia.  Mais tarde, a pedido de Héloïse, Marianne faz um esboço da cena.  

Marianne chega a ter uma crise de ciúmes, mas Héloïse
não aceita que lhe atirem uma culpa que não tem.
A presença de Marianne na mansão foi prolongada, porque o primeiro retrato pintado da jovem noiva é rejeitado por ela.  Marianne não consegue mentir, conversa com a condessa e diz que precisa mostrar o retrato antes para Héloïse.  A pintura seguia todas as convenções do gênero, ela era aquilo que a condessa tinha pedido, uma carta de apresentação para o noivo.  Héloïse repudia o retrato, porque ele nada dizia sobre ela, sobre seus sentimentos, sua alma, sua raiva.  Marianne recomeça do zero e isso possibilita que elas permaneçam mais tempo juntas.

O romance entre as duas é desenvolvido de forma delicada e erótica, também.  Há pouca nudez no filme, nenhuma cena de sexo, mas tudo é visível para a audiência.  O afeto, os beijos, a paixão, enfim, elas passam a compartilhar a mesma cama.  Algo que não existe no filme é a culpa pela relação lesbiana.  Elas se amam, elas concretizam seu desejo, elas sabem que não há futuro.  Em nenhum momento o roteiro tenta criar uma fantasia cor de rosa de que Marianne e Héloïse poderiam fugir para viver seu amor em paz, cada uma tem um papel a cumprir nessa sociedade.  Uma continuará pintora e dependente das migalhas da nobreza, a outra deve se casar e ter filhos para garantir a descendência do marido.  O que elas viveram, no entanto, durará para sempre.

A condessa não é uma vilã, mas ela representa a ordem, o dever.
Um tema presente no filme é a analogia entre a relação das duas moças e mito de Orfeu e Eurídice.  Foi o marido que colocou a perder a vida de Eurídice, ou ela pediu que ele se virasse?  Ele foi egoísta, ou atendeu ao desejo da amada de ser vista?  Marianne é atormentada com o sonho de ver Héloïse em seu vestido de noiva, a moça a chama, ou ela se sente chamada, ao se virar, ela desaparece.  Uma crítica que tenho ao filme repousa aqui, o vestido de noiva de Héloïse era branco.  Vestidos de noiva brancos só se tornariam comuns depois da Rainha Vitória inovar e usar um dessa cor em seu casamento.  Noivas pobres e das camadas médias vestiam sua melhor roupa, as ricas alguma roupa elegante que pudesse ser usada novamente com alguma adaptação.  Normalmente, essas roupas tinham cor.

O fato é que as duas se separam, antes disso, Marianne desenha Héloïse em um formato pequeno, uma miniatura que seria guardada por ela como um tesouro.  A jovem noiva pede então que a amada se desenhe como estava naquele momento, nua, em uma página do livro que estava lendo.  Esse retrato na página 28 é a senha no final do filme para que Marianne saiba que nunca foi esquecida.  Na galeria de arte, há um retrato de Héloïse com sua filha (*imagino*), um retrato convencional, mas nas mãos da moça estava um livro com a beirada aberta na página 28.  Crítica dois, a roupa de Héloïse e sua filha pareciam bem modernas, já das vésperas da Revolução Francesa, só que ninguém mais em cena estava usando nada parecido com aqueles vestidos. Foi uma incoerência, por assim dizer.  

Essa roupa destoa do figurino do filme.
Mais tarde, Marianne vê de longe Héloïse no teatro assistindo uma apresentação das Quatro Estações de Vivaldi.  Marianne tinha tocado parte da obra para a amada quando estavam na mansão.  Talvez, tenha contado mais da trama do que devesse, mas o fato é que o filme estreou em um circuito bem restrito.  Queria ter visto o filme no cinema, não consegui. Retrato de uma Jovem em Chamas foi reconhecido como um dos melhores filmes de temática LGBTQ+ de 2019 e foi lembrado em várias premiações, inclusive, no Globo de Ouro.

Ela se destaca por vários fatores, mas dois deles vou reforçar: Primeiro, trata-se de um romance adulto entre duas mulheres apresentado de forma poética, erótica e inteligente, sem concessões baratas.  Não há nenhum sensacionalismo nas cenas de amor e sexo, não há fansevice sem função na trama, tudo está ajustado ao roteiro, que é da diretora do filme.  Segundo, o filme tem um elenco totalmente feminino e a equipe de produção é quase 100% composta por mulheres.  Isso é raro e, claro, ninguém em sã consciência pode apontar o dedo para Portrait de la jeune fille en feu e dizer que o filme é ruim.  Minhas únicas duas críticas estavam ligadas ao figurino, só tenho elogios a fazer e recomendo muito o filme mesmo.

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