segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Comentando Parasite (Coreia do Sul/2019): É bom e funciona, mas está longe de ser genial



Finalmente, assisti Parasita (기생충/Gisaengchung), filme do diretor Bong Joon-ho, um dos queridinhos de 2019, e que recebeu o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro.  Era barbada, unanimidade, acredito.  Caso muito parecido com Amour, filme francês realmente memorável que recebeu indicações em cinco categorias principais no Oscar de 2013.  Parasita, que venceu o festival de Cannes ano passado, deve ser indicado a pelo menos três categorias, eu acredito, filme em língua estrangeira, diretor e roteiro.  

Gostei do filme?  Sim, há sequências que são excelentes, mas Parasita não me causou o impacto que teve sobre muita gente boa que conheço.  E digo mais, há uns pontos do filme que foram bem problemáticos para mim, porque lembraram recurso ruim de novela, o problema é que eu vejo novela, a maioria dos críticos de cinema, não.  Então, como não vou me conter, façamos o seguinte, depois do trailer, eu comento esses pontos problemáticos, dois deles pelo menos, o outro não posso encarar como um spoiler em si, precisa estar no texto.

A história de duas famílias.
Seul é uma cidade conhecida pela tecnologia, pela modernidade, por uma prosperidade que é vendida como cartão postal da Coreia do Sul e de um modelo bem sucedido de capitalismo para o mundo inteiro.  O diretor, no entanto, nos conduz para seus subúrbios miseráveis e fétidos onde a família Kim mora em um porão.  Pai (Song Kang-ho), mãe (Chang Hyae-jin), que um dia brilho como atleta no lançamento de martelo, filho (Choi Woo-shik) e filha (Park So-dam) vivem de bicos e pequenos golpes, sem nenhuma expectativa de melhorar de vida.  São tão pobres que tentam pegar o wi-fi de vizinhos e o único lugar onde isso é possível é o cantinho fétido perto da privada.

Um dia, Min-hyuk (Park Seo-joon), um amigo do filho lhe dá uma grande pedra que tem como objetivo garantir prosperidade e lhe oferece um emprego dos sonhos para alguém em situação tão desesperadora, ser tutor de língua inglesa da filha adolescente (Jeong Ji-so) de uma família riquíssima.  O rapaz estava de partida para o exterior, os patrões precisam de um substituto.  Só que para conseguir o trabalho, Kim Ki-woo precisa, além da recomendação do outro sujeito, de documentos que provem que ele está na universidade.  

Seriam os pobres os verdadeiros parasitas do filme?
A irmã, Kim Ki-jeong, consegue criar os tais comprovantes falsos em uma lan house e o jovem fica com o trabalho.  A partir daí, ele começa a manobrar para que cada um dos membros da família possa ser contratado pelos Park.  Ki-jeong como arte terapista do filho caçula, o pai como motorista e a mãe, Kim Chung-sook, a mãe, como governanta.  Sem nenhum escrúpulo, eles se infiltram na casa dos ricos tal e qual parasitas, o problema é que não é possível ter controle de todos os acontecimentos e a Fortuna é uma divindade que um dia está aqui, outro dia pode voar para outro lugar.

Parasita é um filme que tem excelentes sequências e, como bem colocou o diretor no Globo de Ouro, é um filme sobre o capitalismo, sistema baseado nas desigualdades e nas exclusões.  Parasita defende vigorosamente que em uma sociedade capitalista como a sul coreana, tanto quem está no topo da pirâmide, caso da família Park, quanto quem está na base, passa por um processo de desumanização.  Os ricos veem os pobres como elementos descartáveis, mesmo que os tratem com aparente gentileza e civilidade, e os pobres devem agarrar todas as possibilidades e abrir mão de qualquer escrúpulo para sobreviver e, se possível, ir além disso.  Sim, é um filme sobre sobrevivência e um parasita bem sucedido é aquele que aproveita ao máximo do que seu hospedeiro pode oferecer sem matá-lo.

Kim Ki-woo não tem pena de eliminar quem estiver
no caminho e usar quem está ao alcance da mão.
Em Parasita há críticas sutis, ou nem tanto, ao sistema capitalista e às desigualdades de gênero. Tudo apresentado de forma consistente, dentro da lógica da narrativa, a virada que marca aa metade do filme, metade mesmo, porque o filme tem duas horas e dez minutos, realmente pega todo mundo de surpresa e está ligada à ideia do sistema que favorece o descarte dos mais fracos. Agora, não vi essa maravilha toda de roteiro que as pessoas estão elogiando.  Há uma série de reviravoltas que estão sendo apontadas como geniais, mas que se fossem postas em uma novela da Globo, ou da Record, o povo estaria descendo a lenha por serem absurdos demais.  Exemplos?  Vamos lá!

A mãe da família Park, Yeon-gyo (Cho Yeo-jeong) é de uma ingenuidade absolutamente surreal.  Ela parece viver em um mundo a parte, parece drogada, sem estar drogada.  É enganada sabe-se lá quantas vezes sem que tenha a mínima desconfiança.  Demite a governanta fiel (Lee Jung-eun), uma pessoa de sua total confiança, sem sequer se questionar a respeito da história de sua doença.  Certo, isso pode até estar de acordo com o que eu escrevi dois parágrafos acima, para os ricos os pobres são invisíveis, ainda assim, me pareceu tudo muito forçado, a armação dos parasitas é super mirabolante e cola.  Falando na governanta, o filho se emprega como tutor, a filha como arte terapista, o pai vira motorista depois da demissão do ocupante anterior do cargo por armação dos parasitas.  OK, foi convincente, mas chegamos na governanta e me pareceu absolutamente rocambolesco a história da alergia a pêssegos e de Kim-pai convencer a patroa que a mulher tinha tuberculose.

Kim Ki-jeong é a pessoa mais inteligente e cruel de sua família. 
Mas fiquei feliz de não terem usado o clichê
da empregada que seduz o patrão.
Sabe quando você parece estica demais a corda?  Sim, este é o ponto.  Outra coisa, é que o filme tem uns clichês tão, mas tão utilizados que, bem, fica difícil para mim ver algo de genial em um filme que recorra a eles.  Vamos lá, em uma situação como essa, espera-se que o tutor seduza a aluna. Está no filme. E o que se espera que os parasitas façam quando os donos da casa saem em viagem? Que realizem um festim na mansão.  Bingo.  Está no filme.  Claro, este é o ponto de virada de Parasita, quando ele entra na sua segunda hora frenética e se impõe ao público, fazendo-nos perder o fôlego em alguns momentos.  A reviravolta em si é excelente, mas chegamos até ela usando de métodos bem batidos.  Outra coisa, como alguém com aquela casa absurdamente grande só tem UMA funcionária.  

Pensem comigo, além de governanta e motorista, deveria haver um jardineiro, mesmo que não fosse exclusivo dos Park, e uma outra criada para ajudar no serviço. Fora Uma babá,  talvez.  Uma governanta normalmente comanda outros criados, ela não é única funcionária de uma mansão. Neste caso, não se trata de um exemplo de como o capitalismo na Coreia do Sul é super explorador, mas de outro expediente capenga.  Se a casa tivesse vários funcionários, o que seria lógico, seria muito difícil que a família Kim conseguisse aplicar o seu golpe e que a reviravolta fantástica acontecesse.  Se eu reclamo de coisas assim em telenovelas, por qual motivo iria achar maravilhoso em um filme?  Não, Parasita não conseguiu me impressionar, ainda que tenha seus momentos.

A história do pêssego seria rocambolesca até em uma  novela.
A partir da reviravolta, eu fiquei esperando a tragédia.  Que iria morrer gente, era mais que óbvio.  Chegou um momento em que me perguntei se alguém terminaria vivo.  É depois da virada que a insensibilidade dos patrões começa a ficar evidente, também.  Marido (Lee Sun-kyun) e mulher comentam como Kim, o motorista, fede.  "Cheiro de velho?", a esposa pondera entre risinhos.  O marido a corrige dizendo que era cheiro de metrô, cheiro de gente pobre e que esse cheiro não deveria poder invadir o espaço dos patrões.  A pobreza no Brasil tem cor, na Coreia do Sul talvez tenha odor.  Cheiro dos bairros pobres, com sistema de esgoto ineficiente, de sabonete barato.  Cheiro de gente que nunca vai conseguir se aposentar e tem que se submeter a situações humilhantes.

De qualquer forma, os patrões não veem os criados como gente como eles são.  Isso grita na sequência mais dramática do filme, não por acaso, a mais sangrenta.  O valor de um dos nossos, seja família, seja gente da mesma classe social, não é o mesmo valor dos pobres que trabalham para nós.  O Sr. Park chega a reclamar que o motorista não parece entusiasmado em um dado momento da festa no jardim  Estava fazendo hora extra no domingo, sua folga, tinha passado por uma experiência terrível, mas o patrão não quer saber.  "Estou lhe pagando, deveria estar feliz."  Não estava, porque a fortuna tinha abandonado os Kim fazia algum tempo.

Song Kang-ho está excelente como Kim-pai.  Nesta cena, ele já tinha
percebido que estava sem saída e o quanto os patrões o desprezavam.
Não posso entregar a reviravolta do filme, mas queria discutir algumas questões de gênero, afinal, este é um blog feminista. Entre os pobres, aqueles que nada tem, as relações pareciam bem igualitárias entre homens e mulheres.  Kim é o pai da família, tratado com alguma deferência, mas a esposa está quase nivelada com ele e o golpista tem tanto apreço pelo filho, quanto pela filha, que ele considera o elemento mais talentoso da família.  Agora, que fique claro que é talento para praticar golpes e pequenas fraudes.  

Quando vamos para a família Park, o quadro é bem diferente.  A esposa, como pontuei, é tratada como uma cabeça de vento pelo marido.  O Sr. Park delega para ela algumas tarefas domésticas importantes, porque é assim que deve ser, mas, também, por elas serem chatas, exigirem pouca imaginação.  A empresa do Sr. Park, alguma coisa do ramo da tecnologia, é um lugar que borbulha com vida e imaginação.  Se a esposa é tratada com complacência que você dedica aos menos capazes, quando se trata dos filhos a diferença é bem brutal.  O caçula (Jung Hyeon-jun) é o rei da casa.  Ele pode fazer tudo, ele é visto como um pequeno gênio digno de toda sorte de benefícios e privilégios. A mãe o mima, o pai não é diferente e faz todas as suas vontades.   Já a filha, bem, ela ocupa um lugar claramente inferior.  

Pensem em uma personagem ingênua? 
Parecia drogada sem estar drogada.
Uma cena marcante nesse sentido é que a mãe, depois da viagem, oferece jantar para o filho e o marido.  Ambos recusam.  Ela come tudo sozinha e simplesmente esquece que existe a filha.  Quando a menina reclama, sua insatisfação é vista como bobagem, coisa sem importância.  A Coreia do Sul não está em uma situação tão dramática como a Índia e a China, mas é um daqueles países que fazem parte do grupo dos que apresentam um grande desequilíbrio entre a população masculina e feminina, porque, sim, as famílias preferem um filho homem, neste momento, a coisa já escalou além disso, porque o país tem uma das piores taxas de natalidade do mundo. E, como não poderia deixar de ser, o machismo presente nas relações sociais e exerce um papel fundamental nessa equação. Quanto à Bechdel Rule, o filme cumpre, sem problema.

Que mais dizer?  Não pensem que o filme pinta os pobres como criaturas boazinhas.  Em sua situação de desespero e exclusão, eles perdem parte de sua humanidade e são capazes das piores coisas, inclusive com outros miseráveis como eles.  São o lupemproletariado, capaz de qualquer coisa, porque precisa desesperadamente sobreviver.  Ainda assim, dentro da família, há gradações.  O pai, Kim, parece tentar se agarrar a alguns valores, enquanto a filha está no extremo oposto sendo implacável, de qualquer forma, todos são canalhas e agem de forma insensível.  Eles maltratam até os cachorrinhos da família Park e, bem, quem faz isso boa pessoa não é.  

Demitiram a governanta e madame colocou a
mão na massa?  Parasita força a mão aqui.
Agora, questiono-me se os parasitas, e acredito que no original estivesse no plural mesmo, são os miseráveis, ou os ricos que deles se aproveitam, retirando o máximo possível.  Esta, a meu ver, é uma das questões fundamentais do filme.  Agora, vou esperar as indicações do Oscar para ver se acertei em relação à Parasita.  Vai levar filme estrangeiro, com certeza.  Não deve ganhar diretor e não merece roteiro, apesar de ter sido indicado para o prêmio da Sindicato dos Roteiristas, o WGA Awards.  Obviamente, se for para sar melhor roteiro para o Tarantino, como foi no Globo de Ouro, que leve Parasita.  De qualquer forma, o filme conseguiu grande reconhecimento de pública e crítica no mundo inteiro e, o que nem sempre acontece, isso se materializou em lucros, o que faz com que Parasita não possa ser ignorado.


Se você está aqui, assistiu ao filme, ou não se importa com spoilers.  Enfim, Parasita tem uma barriga no final, nada sério, mas acredito que ficaria mais impactante se tudo terminasse na cena do jardim.  Sem um depois, sem alguma esperança.  Preferia mesmo um corte ali, na tragédia.  A meu ver, era o que o filme pedia, sem concessões.

Você está sendo pago para se vestir de índio na sua folga.  SORRIA!
Como o diretor/roteirista decide nos oferecer esperança, Kim Ki-woo, o primeiro a conseguir emprego com os Park, sobrevive.  Quando o sujeito levou com a pedra na cabeça duas vezes, aquele pedregulho imenso, não havia outra possibilidade a não ser a morte.  "Ah, mas conheço casos de gente que sobreviveu em situações parecidas, ou piores"  Sim, mas a maioria morre.  Aliás, meu avó materno morreu aos 28 anos depois de cair e bater com a têmpora no chão.  Teve hemorragia interna.  Segundo minha mãe, que tinha cinco anos, o pai só tinha um único ferimento, uma mancha roxa.    E, naquela confusão toda, para quem seria a prioridade?  Para o Sr. Park, ou para o jovem professor de inglês?  Pensem que é um mundo de desigualdades o mostrado em Parasita.

Imagine alguém tacar essa pedra na sua
cabeça com vontade DUAS VEZES.
Quando permitem que o rapaz sobreviva, que ele tome conhecimento do destino do pai, o filme se estica para além do necessário e nos oferece mais uma reviravolta digna de novela.  E, bem, neste caso, não estou elogiando.  Em um folhetim, a regra é o final feliz, em um filme de humor negro, eu espero mais, especialmente, quando ele vem chancelado pelo prêmio principal em Cannes.  Claro, há a última piada sombria,   Kim Ki-woo não é capaz de criticar o sistema, mas ele decide que vai vencer dentro das regras do capitalismo.  Como fará isso, a gente não sabe, mas é o que a personagem se propõe a fazer. Dentro do capitalismo, gente co o os Kim não têm chance.

O filme deveria terminar com a festa no jardim.
Será que o diretor o salvou da morte para isso, para ilustrar que o capitalismo se perpetua, porque aprendemos a vê-lo como a única possibilidade?  Ou nos adaptamos ao sistema, o parasitamos, ou somos eliminados?  Só que, enfim, o rapaz tinha tido uma dura lição de como o sistema é feito para perpetuar exclusões e desigualdades, então, não me senti plenamente convencida.  De resto, a ideia do bunker era interessante, ainda que dificilmente eu me convença de que alguém compraria uma casa daquelas sem ser comunicado desse lugar secreto. Já a sua segunda utilização, ainda que pareça uma saída de mestre, me pareceu uma tentativa de arrumar o que estava perdido.

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