Hoje, depois de vários meses, revi Mulan mais uma vez com a Júlia. Eu assisti ao filme no cinema e lembrava que tinha gostado, mas até voltar a rever a animação por causa da Júlia, não conseguia perceber por qual motivo Mulan era, e é ainda, tão importante. Já pensei em escrever uma resenha sobre o filme várias vezes e com a iminente estreia do live action, não posso adiar mais.
Já falei sobre Mulan no blog antes, normalmente algo relacionado à releitura, porque remake não será mesmo, com atores de carne e osso, ou o mito da donzela guerreira, as duas coisas juntas, provavelmente. Enfim, cada vez que revejo Mulan consigo observar coisas novas, alguma cena parece estar sendo assistida pela primeira vez. E, sim, acredito que Mulan tem um dos roteiros mais redondinhos que a Disney já colocou em um filme de animação e a trilha sonora beira a perfeição.
Mulan precisa ser formatada para arrumar um marido. |
Mulan, desesperada com a possibilidade de perder o pai, questiona o funcionário do imperador que vem trazer a convocação diante dos vizinhos, dos soldados, enfim, em público. Sua atitude não era adequada a uma mulher e seu pai se sente humilhado, Mulan é duramente repreendida. Envergonhada, mas ciente de que deve fazer alguma coisa, ela corta seus cabelos, pega a armadura e a espada do pai e parte para o ponto de alistamento.
O primeiro ponto de virada do filme. |
No exército, Mulan assume a identidade de Ping e seus dias são amargos à princípio, pois é rejeitada pelos outros recrutas. Apesar de tudo, ela consegue mostrar seu valor e termina se apaixonando pelo capitão Li Shang. Só que quando sua identidade feminina é descoberta, todos os seus feitos parecem ter perdido o valor e ela terá que mostrar-se ainda mais forte para honrar seu pai e conseguir impedir que a China seja conquistada pelos bárbaros.
Soldado Ping. |
Como Freud pegou uma das versões da história de Édipo e transformou em base para uma de suas teorias mais famosas, todas as outras variações parecem nulas. Lembro quando estava fazendo uma matéria optativa de Grécia na faculdade a Prof.ª Regina Cândido nos disse que havia quase duas dezenas de variações do mito de Édipo. Algumas se perderam, sobraram menções em outras obras, outras, bem, foram esquecidas por conta do sucesso da teoria de Freud. O que isso tem a ver com Mulan? A animação da Disney não foi a primeira a mudar a temporalidade da história, ou o nome de família da protagonista. Ainda que os chineses possam não ter gostado da releitura da Disney quando a animação foi lançada em 1998, não existe uma Mulan verdadeira, mas, claro, há uma versão que é mais popular, mais conhecida, decorada na escola etc. Como no caso do mito de Édipo.
A segunda personagem feminina mais importante de um filme quase sem mulheres é a avó de Mulan. |
Vi essa ideia, a de que o inimigo é o sistema, em um texto muito bom do site Nó de Oito chamado "Entendendo Machismo Sistêmico Através de Mulan". Dou o crédito, porque não fui eu quem percebeu que o vilão de Mulan não são os hunos, ou Chi Fu, o burocrata-eunuco misógino, mas o patriarcado em si. Agora, como já estou fazendo, trocaria "machismo" por patriarcado e explicarei mais adiante que o filme mostra machismo e misoginia dentro da história. Sim, são coisas bem diferentes. De qualquer forma, Mulan é uma animação que se engaja desde o início em mostrar o quanto o patriarcado e suas hierarquias são opressivas. No caso de Mulan, a coisa é óbvia, ela precisa casar, porque este é o destino de toda mulher. Para isso, ela tem que se adequar a um modelo de feminilidade, e se precisa aprender a ser mulher naquela sociedade é porque ninguém nasce mulher.
Mulan não se encaixa. |
Ela é magra demais, diz a casamenteira, e em algumas sociedades ainda hoje moças são submetidas a um regime de engorda para se tornarem noivas ideais. Ela tem cadeiras estreitas, não serve para ter filhos. Essa história de cadeiras estreitas é algo que povoa o imaginário de várias culturas e, ainda hoje, aparece entre as justificativas para uma cesariana desnecessária. No caso de Mulan, naquela época, cadeiras estreitas poderia ser uma sentença de morte adiantada. De qualquer forma, um sistema só se mantém com a colaboração de todos, se os homens são os principais beneficiados com o patriarcado, as mulheres não podem ficar de fora, elas precisam acreditar que o sistema é justo, é bom e garante a sua sobrevivência. Para isso, aliás, temos as velhas.
O eunuco era outra figura muito importante e poderosa. |
Vale no Japão, na Índia, na China, no mundo muçulmano, no Cáucaso, em rincões da Itália, ou do Nordeste brasileiro. A sogra é uma figura constantemente pintada como terrível em relação à nora, porque na maioria das sociedades é a jovem noiva que vai morar perto do clã do marido e, não, vice-versa. A sogra, ou madrasta dos contos de fada, porque em francês antigo era a mesma palavra, tem ascendência sobre o filho homem. E, no caso da China, não adianta o Confucionismo dizer que a mãe viúva deve obediência ao filho, porque uma das estratégias de poder que resta às mulheres é se fazer útil, importante e garantir sua influência, em troca, ela tem o dever de manter as outras mulheres na linha.
Agente do patriarcado. Veja que talvez a piada com a barba seja por conta disso. |
Voltando, porque este texto está ficando longo. Quando Mulan vai para o exército, ela descobre que não é somente ela, uma mulher, que precisa aprender a ser homem, todos aqueles recrutas estão abaixo das expectativas do capitão Li-Shang. Eles precisam aprender qual a ideia de masculinidade é considerada correta naquela China imaginária que a Disney nos oferece. De novo, temos a música colocando as coisas nos seus devidos lugares. Li Shang é o modelo de homem perfeito e o filme não nos poupa de mostrar que como jovem está sob imensa pressão. Ele precisa atender às expectativas dos homens mais velhos. Não pode falhar, ou ele, também, trará vergonha para sua família.
Chi Fu é a segunda personagem masculina mais importante do filme. Ele só está, de fato, abaixo do imperador. |
Esses eunucos tinham pouco, ou nenhum, contato com as mulheres (*salvo se enviados para haréns*), eram treinados desde a infância para suas funções, eram bombardeados com ideias misóginas, afinal, somente homens poderiam ocupar os postos de destaque que eles almejavam. Eles estavam à serviço da ordem, abriam, ou eram obrigados, a abrir mão de sua genitália (*ou parte dela*), da possibilidade de terem filhos, mas ganhavam status e poder, alguns chegavam a dominar os mestres (*imperadores, reis, sultões etc.*) a quem deveriam servir. Ora, se era essa sociedade patriarcal que lhes garantia os privilégios, que lhes assegurava que mesmo eunucos eles eram homens e muito mais importantes que as mulheres, eles precisavam garantir sua manutenção.
Mushu avida Mulan que, agora, quando ela voltou a ser mulher (*e jovem e solteira*), voltou a ser invisível. Ninguém vai ouvi-la. |
O conto original de Mulan é uma típica narrativa da donzela guerreira. Nunca ouviu falar da lenda da donzela guerreira? Com certeza, sim, veja os ingredientes básicos: temos uma moça que é filha única, ou caçula. Seu elo principal é com o pai, mesmo que ele a rejeite, ou esteja ausente, é a ele que ela quer impressionar, honrar, enfim. Essa moça, tendo, ou não, recebido uma educação masculina (*saber usar as armas de sua época*), um dia renega tudo aquilo que a caracteriza como mulher e parte em uma missão. Pode ser a guerra, pode ser uma vingança. Ninguém sabe que ela é mulher, ela passa a integrar um grupo de guerreiros, prova sua coragem, consegue a admiração de todos. Em alguns casos, passa anos incógnita. Há versões do conto de Mulan que falam que ela viveu como homem por mais de uma década.
O imperador lista os males causados por Mulan, mas o bem maior prevalece. |
O desenho da Disney, expõe magnificamente que o patriarcado é sistêmico e opressor, mas mantém o final de Mulan na maioria das versões. Ela tem seu valor reconhecido pelo imperador, pelos seus companheiros de armas, mas prefere voltar para a casa paterna. Lembrem, tudo o que ela fez não foi por orgulho pessoal, não foi para se destacar entre as mulheres, mas foi para honrar o pai. Quando o imperador lista os erros de Mulan, já no finalzinho do filme, ele pontua que apesar dos seus desvios, ela se tornou justa, porque o bem que causou foi maior. Essa lógica do filme se coaduna com o princípio confuciano do bem comum. A ideia, aliás, não é justificar a permanência do patriarcado, mas não cabe ao filme, e isso é mérito, não demérito aos meus olhos, vender uma super idealização de ruptura.
Se Mulan é uma exceção, ela só confirma a regra. |
Alguém pode me lembrar que existe Mulan II, mas eu estou falando do filme do cinema, aquele que é feito para ir para o mundo inteiro. Na continuação, vemos que Mulan está trabalhando ativamente para fazer uma revolução na vida das mulheres através da educação. Sim, o segundo filme é legal, merece ser assistido. Talvez, o resenhe no futuro. Agora, o Mulan original é magnífico para discutir como o patriarcado é estrutural e legitima o machismo e a misoginia. Li Shang e os soldados são machistas, se consideram superiores às mulheres, mas não as odeiam, sabem que, de alguma forma, elas lhes são úteis e/ou trazem algum benefício, já Chi Fu, ele é misógino, ele despreza as mulheres e tudo o que é supostamente feminino. Só que ele não precisa delas, nem para o prazer, nem para a reprodução, muito menos para companhia.
No fim das contas, tudo foi feito pelo pai, por causa dele, para honrá-lo. |
É um momento que soa humorístico, mas representa o maior risco para a donzela guerreira. Ela pode ser descoberta e, bem, sua vida não iria valer nada. Algo que aconteceria, com certeza, em uma situação realista, seria o estupro coletivo. No entanto, quando falei em penetrar na intimidade dos homens, falo não de ver a sua nudez física, mas de penetrar na alma desses companheiros que por crerem que a donzela guerreira é um deles, abrem seu coração. No caso de Mulan, de novo temos uma música que ilustra bem isso, aquela na qual os soldados falam da mulher ideal e perfeita para eles. Uma mulher idealizada, subalterna, uma mulher que Mulan não quer ser.
Na continuação, que é criação da Disney, a protagonista quer fazer diferença na vida das meninas. |
Não estou antecipando nada a respeito do novo filme, ele pode, inclusive, ser muito bom. Simplesmente, não será a Mulan que a gente assistiu em 1998. Talvez, ele entregue aquilo que muita gente deseja, uma Mulan que não volte para casa, que não tenha um homem bonitão batendo na sua porta e que honre o pai de outra forma. Veja, ainda assim, teremos a Mulan de 1998 e tantas outras Mulans, porque, enfim, Mulan não pertence a um estúdio, ela é uma ideia: mulheres e homens não nascem com um destino, se não forem castrados pelo sistema, elas e eles poderão fazer coisas que nunca tinham sonhado que seriam capazes. E, sim, uma das melhores cenas de Mulan é quando a heroína sobe no mastro, inesquecível e muito poderosa.
Eu adoro Mulan. É o meu filme favorito da Disney. Aí não sei se estou muito animada sobre esse live action. Achei o trailer bem genérico. Não vejo pq o Li Shang não pode estar no filme... A minha impressão é que só estão pensando no público chinês. Espero estar enganada, mas quando mexem com algo que a gente gosta muito é difícil conseguir desfazer o ranço que a gente já pega antes de assistir. Mas eu quebrei a cara com Aladdin então vou tentar ir ao cinema de peito aberto pra assistir.
ResponderExcluir