Como historiadora (*sim, com graduação, mestrado e doutorado na área*), me incomoda um tanto o uso do termo “revisionismo” aplicado à História, como se fosse uma ciência em permanente "revisionismo", porque, efetivamente, o termo está associado no nosso imaginário social à adulteração do passado. A primeira coisa que vem nas nossas cabeças quando ouvimos a palavra "revisionismo" é negação do Holocausto. Sim ou não? E só de jogar a palavra revisionismo na internet, nem queiram saber as nojeiras que eu encontrei.
Estabelecido isso, quando a palavra “revisionismo” aparece, normalmente, não é por bons motivos. Por isso mesmo, eu prefiro dizer que a ciência histórica é dinâmica e, portanto, nenhum saber ou discurso sobre o passado é definitivo. Agora, por qual motivo ela é desse jeito? Porque podemos ter acesso a fontes novas, porque podemos ler as fontes antigas de uma forma diferente por motivos teórico-metodológicos, porque novos objetos de estudo possibilitam novas reflexões sobre o passado, porque os historiadores e historiadoras de cada época tem suas próprias perguntas, perguntas pautadas por novos interesses mesmo que as fontes já sejam conhecidas. Esta última ideia é de March Bloch em Apologia da História, mas não tenho a referência em mãos aqui.
A Idade Média é um período queridinho dos novos revisionistas de extrema-direita. |
O que esses picaretas que estrearam esta semana na TV Escola fazem é falsear a narrativa histórica omitindo fontes, impondo-lhes sentidos contemporâneos pautados pelo racismo, pela misoginia, por interesses de classe etc. É o que sugere, por exemplo, esse trecho da matéria da Folha de São Paulo: "No documentário, a história é narrada de forma a engrandecer o papel da Igreja Católica e da fé na empreitada de Portugal na chegada ao território que seria o Brasil. O genocídio indígena e a história dos negros escravizados são minimizados.".
A Folha erra ao dizer que é a História "com visão de direita". Há excelentes historiadores que podem ser vistos como de direita, mas não são falseadores da História, ainda que a abordagem das fontes e os objetos possam ser diferentes dos escolhidos por um historiador de esquerda, feminista, ou o que seja. Ser de direita não é ser reacionário, revisionista, muito menos negacionista, isto é, pessoas que rejeitam evidências científicas e/ou a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável.
O astrólogo que inspira esses documentários e suas opiniões sobre a Inquisição, que é muito anterior às Reformas Religiosas, e os protestantes. Como protestante acho muito curioso que muitos irmãos e irmãs consigam ignorar esse ódio todo contra nós, mas cada um com seu cada um. |
E mais uma coisa, os reacionários não se veem como revisionistas, mas como os portadores da verdade com “V” maiúsculo, ou seja, eles não estão propondo uma nova leitura, mas a leitura, a única possível, não raro recorrendo a argumentos religiosos. É gente que mente sem nem pensar duas vezes. Gente que inventa currículo (Ex.: "Tenho pós-graduação, fiz mestrado em Direito Internacional, mas não concluí.") para tentar chamar para si uma autoridade que eles não tem. E uso ELES, porque a maioria desses picaretas são homens mesmo e brancos e ricos e (pseudo)cristãos e com um discurso antiintelectualista.
Eles são os revisionistas e, não, os historiadores e historiadoras que fazem seu trabalho de forma honesta e pautada por parâmetros científicos que fazem revisionismo. Eu não me vejo como revisionista, me recuso a abraçar a ideia que a História como disciplina é por essência revisionista, porque quando profissionais sérios utilizam a palavra "revisionismo" normalmente é para nos remetemos ao falseamento daquilo que é verdadeiro por motivos desonestos. Como já escrevi aqui antes e várias vezes, o primeiro campo de batalha é o das palavras. Eu não vou usar uma palavra utilizada contra o inimigo para nominar o trabalho árduo e científico feito por historiadores e historiadoras dentro e fora da universidade.
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