Assisti Dois Papas (The Two Popes) na estréia no cinema, mais de três semanas atrás. Não sei por qual motivo retardei tanto a resenha, nesse tempo todo, ele já foi lançado na Netflix e indicado para quatro Globos de Ouro com uma grande omissão, o diretor, o brasileiro Fernando Meirelles. Espero que o Oscar corrija isso. Como o filme é muito bom e deve estar tendo audiência, ainda é possível assisti-lo no cinema em Brasília mesmo já estando na Netflix.
Dois Papas começa com o Conclave que elegeu Bento XVI (Anthony Hopkins), apresentando-o como um momento crucial para definir o destino da Igreja Católica, se a manutenção de uma política conservadora, ou uma reforma que a colocasse definitivamente em sintonia com o século XXI. Depois desse começo e de uma sucessão de noticias aceleradas sobre os problemas do pontificado de Bento XVI, o filme avança para aquilo que é o centro da narrativa, a relação entre os dois papas, o atual, e aquele que se tornará o papa Francisco (Jonathan Pryce).
Os conclaves já foram mais divertidos. |
Para quem não sabe, Conclave é a reunião dos cardeais para deliberarem quem será o novo papa. A história desse tipo de reunião, de como passou a ser feita à portas fechadas, já é em si muito interessante. Vemos no filme os eclesiásticos se trancando por dentro para deliberar, na sua origem, o primeiro conclave foi o inverso, não havia consenso político para eleger um papa, a coisa estava se retardando fazia tempo, e um príncipe, o futuro Filipe V, rei da França, montou uma armadilha e resolveu a questão trancando os cardeais, sem comida e água, até que se decidissem. Foi rápido e escolhido foi um candidato que não parecesse perigoso para nenhuma facção e parecesse estar com o pé na cova. Deu ruim, claro, e a igreja quase se esfacelou.
Ele queria o poder. |
O primeiro conclave do filme, mostra a eleição de Ratzinger como Bento XVI, um cardeal conhecido como intelectual, conservador e que tinha sido o grande responsável por sufocar a Teologia da Libertação, uma das expressões mais importantes do pensamento teológico católico do século XX e surgida na América Latina. Na época da eleição, eu realmente acreditei que alguém tão poderoso como ele, afinal, era o chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, vulgo Inquisição para quem não sabe, fosse querer ser papa. Mas ele queria.
Primeiro encontro. Francisco teve que se paramentar cardeal para ser recebido pelo papa. |
Desde o primeiro momento, o filme nos faz simpatizar com Francisco (*isso, claro, se você já não gostasse dele antes, como eu*). Ele é pintado com todas as virtudes, a simpatia encarnada, atencioso e amoroso com os necessitados, de hábitos simples, amante do futebol e capaz de assoviar Dancing Queen do ABBA nos corredores e banheiros do Vaticano. Mais tarde, o filme nos mostra o quanto Bergoglio precisou se deixar transformar (*pela vontade de Deus*) para se tornar essa pessoa legal. Ele tem um passado e coisas feias nele.
Eles discordam em quase tudo, quase... |
Eu definiria Ratzinger/Bento XVI como uma personagem "lawful evil" e segue uma definição adaptada do TV Tropes, trata-se de um personagem do mal que tenta impor ou defender um sistema legal sem levar em consideração os desejos de outras pessoas e/ou abraça integralmente um código específico. Esse tipo de personagem acredita na ordem, mas principalmente porque acreditam que é a melhor maneira de realizar seus desejos (*maus*). Eles obedecerão à letra da lei, mas não ao seu espírito, e geralmente são muito cuidadosos ao dar sua palavra. Esse tipo de personagem pode acreditar, também, que é realmente uma pessoa boa e que ao impor a sua vontade estaria fazendo prevalecer o bem comum.
Fiz um monte de bobagens, mas vou largar tudo na tua mão e só ficar observando o circo pegar fogo. |
Personagens lawful evil são muito perigosas e muito inteligentes. São capazes, também, de serem amigos fiéis. Quando Bento XVI se aproxima de Francisco, isso fica muito evidente. Temos um primeiro confronto, afinal, para Bento XVI, e isso está no trailer, Francisco o afronta com seu jeito de ser. O apego à pobreza, a preocupação com os marginalizados, a disposição em dobrar as regras para conseguir chegar aos corações das pessoas.
Segredo é importante no Vaticano. |
Bergoglio não quer aceitar a tarefa, ele nunca desejou ser papa, aliás, queria se encaminhar (*segundo o filme*) para a aposentadoria. Com o embate e, mais tarde, a amizade entre ele e Bento XVI, o que vai ficar exposto é o passado do atual papa e o filme não o poupa de críticas, ainda que tudo seja coroado com o perdão. Ao ser eleito papa, Jorge Bergoglio não era uma unanimidade na Argentina, tinha inclusive sido acusado de colaborar com a sangrenta ditadura (1976-1983) do país. Já outros defendiam que ele fez o possível para salvar pessoas, escondê-las, dar-lhes fuga. Essa parte do filme é muito importante e marcada por flashbacks e passagens que eu não esperava ver neste filme, mas que o tornaram ainda mais especial e importante.
Muitas conversas e muitos passeios. |
Mesmo nos momentos terríveis do filme, os flashbacks da ditadura argentina, quando Bergoglio é levado a perceber o quão impotente estava diante da violência dos militares, Dois Papas consegue passar simpatia e esperança. O filme fala de reconciliação com o passado. Fala de perdão. Fala de tentar compreender as diferenças e usá-las a favor da coletividade. Claro, é um filme apologético, tanto para com Francisco, quanto para com Bento XVI, mas é um excelente filme.
Juan Minujín tem muito tempo em tela. |
Uma coisa interessante é que é um filme falado em várias línguas. Latim, claro, e temos as piadas de que somente 30% dos cardeais conseguiam ficar realmente com raiva de Ratzinger, porque os outros não sabem latim o suficiente. por exemplo, a cena da abdicação é uma delícia, aliás, o humor do filme é finíssimo. Fala-se francês, muito italiano e até português em dois momentos, se bem me lembro. Acredito que tenha sido nas aparições do Cardeal Cláudio Hummes (Luis Gnecco). Agora, Francisco dizendo dizendo que está cansado de falar inglês no Vaticano, bem, só porque o filme é para a Netflix, porque ele e Ratzinger não teriam motivo para conversar nessa língua.
Os verdadeiros. |
Terminando, não temos o cumprimento da Bechdel Rule. Temos algumas mulheres, mas pensem que o Vaticano é um lugar masculino por excelência, logo, a ausência é justificada. Dentre os papéis femininos, o destaque vai para a atriz María Ucedo, que interpreta Esther Ballestrino, amiga de Francisco, uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio e vítima da ditadura argentina.
Assistindo Argentina e Alemanha, até a Dilma aparece entregando a taça. |
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