Se você está vivendo no Brasil, você já deve ter ouvido que um racista foi colocado para gerir a Fundação Palmares. As falas do cidadão (*não colocarei o seu nome*) são um eco de coisas que estão em abundância nos livros e vídeos da série História Politicamente Incorreta amplificadas pelo rancor e a ignorância. Só que isso acaba potencializando as reações à esquerda em relação à afirmações como "Zumbi tinha escravos", que a escravidão foi benéfica para os africanos e africanas e coisas do gênero.
Se você assistiu ao documentário "Legado Negado: a escravidão no Brasil em um guia incorreto", lançado no Dia da Consciência Negra (20 de novembro), você deve estar ciente que a afirmação, assim como outras, carecem de fontes históricas que as sustentem. Ainda que muita gente não saiba, ou queira saber, historiadores e historiadoras podem usar sua imaginação até para levantar hipóteses de pesquisa, não são neutros, mas precisam se pautar em fontes. Elas são mais importantes, inclusive que um quadro teórico consistente, isto é, uma teoria e conceitos que possam guiar a análise. Explicito isso, porque eu posso construir um monte de hipóteses lindas usando minha teoria super articulada, que se eu não tiver as fontes, já era. Você não vai conseguir produzir nada que mereça ser chamado de relevante em termos científicos.
Por exemplo, há fontes mais que suficientes sobre o Tráfico Atlântico e que foi o Brasil que mais recebeu escravizados de todas as regiões da América. Sabemos, também, que o tráfico persistiu com a conivência do Estado mesmo depois da sua abolição em 1831. Há, também, fontes suficientes sobre a dinâmica da escravidão nas diversas regiões da África antes e depois do contato com os europeus. Por outro lado, não temos fontes suficientes para afirmar que Zumbi assassinou o tio (Ganga-Zumba), ou que o líder símbolo do movimento negro brasileiro tinha escravos no Quilombo de Palmares. Aliás, esta última questão é muito bem discutida no documentário do canal Leitura ObrigaHistória. Essas duas informações vieram de um livro muito conhecido de um jornalista de (extrema) direita, que distorceu fontes históricas, e que é utilizado largamente por gente que quer desqualificar quaisquer movimentos sociais e demandas populares.
Por exemplo, há fontes mais que suficientes sobre o Tráfico Atlântico e que foi o Brasil que mais recebeu escravizados de todas as regiões da América. Sabemos, também, que o tráfico persistiu com a conivência do Estado mesmo depois da sua abolição em 1831. Há, também, fontes suficientes sobre a dinâmica da escravidão nas diversas regiões da África antes e depois do contato com os europeus. Por outro lado, não temos fontes suficientes para afirmar que Zumbi assassinou o tio (Ganga-Zumba), ou que o líder símbolo do movimento negro brasileiro tinha escravos no Quilombo de Palmares. Aliás, esta última questão é muito bem discutida no documentário do canal Leitura ObrigaHistória. Essas duas informações vieram de um livro muito conhecido de um jornalista de (extrema) direita, que distorceu fontes históricas, e que é utilizado largamente por gente que quer desqualificar quaisquer movimentos sociais e demandas populares.
Zumbi (1927), pintura de Antonio Parreiras (1860-1937). |
Meu primeiro convite é que, como pessoas do século XXI, precisamos começar concordando que a escravidão é SEMPRE ruim, SEMPRE uma violência, SEMPRE uma forma de opressão. Pouco importa nesse caso se ela é movida por rivalidade entre povos vizinhos, guerras de conquista, tradição de dependência de uma população em relação a outra ou impulsionada por motivos econômicos. Dizer, por exemplo, que em alguns casos ela "não era tão ruim", porque era temporária e, por isso, menos violenta, ou que o casamento com o "senhor" era comum e os escravos passavam a ser parte do clã, não diminui isso.
O ataque a Zumbi é um ataque ao movimento negro e às políticas afirmativas e compensatórias. |
Os filhos nascidos eram bem vindos, tinham amplos direitos, e as mulheres envolvidas nesse tipo de aliança, sejam elas forçadas, ou fruto de estratégias de quem queria sobreviver, vide Roxelana que se casou com o sultão Soleimão, o Magnifico, poderiam ganhar relevância política, chegando mesmo a governar. Isso, claro, assim como ministros e generais escravos no mundo muçulmano não eram a regra, mas são exceções bem mais comuns do que uma Chica da Silva no Brasil. Fora que os filhos do Contratador com Chica da Silva enfrentaram, a despeito da grande riqueza do pai, muitos entraves para ocuparem lugares de destaque na sociedade luso-brasileira do século XVIII e fazerem casamentos compatíveis com o lugar social que seu pai ocupava. Na América, a escravidão tem cor e houve, sim, um esforço para marcar a diferença, na verdade o abismo, entre os senhores brancos (*ou assim percebidos*) e os escravizados negros.
Roxelana, ou Hurren, seu nome turco. Quadro atribuído à Ticiano. Acredita-se ser uma cópia de 1560 do original feito quase três décadas antes. |
Voltando ao ponto, a escravidão já era encarada como negócio lucrativo bem antes das Grandes Navegações (séc. XV-XVI). Os muçulmanos já compravam escravizados na África, assim como faziam razias na Europa cristã mediterrânea. A Rebelião Zanje (869-883), ocorrida na Península Arábica, foi liderada por escravizados negros submetidos à condições terríveis de exploração em terras muçulmanas. O medievalista francês Jacques Heers, em um livro escrito nos anos 1970, já alertava para o silêncio em relação à escravidão africana no mundo árabe-muçulmano e a dificuldade de estimar em números o comércio de gente do Mediterrâneo e da África para o mundo Árabe-Muçulmano. Ao que parece essa situação não mudou muito, basta atentar para os escritos do antropólogo senegalês Tidiane N'Diaye.
Uma jovem de 16 anos traficada da Guiné foi oferecida à equipe da BBC. |
Dia desses, a BBC colocou no ar um mini documentário sobre o comércio de escravas domésticas na Península Arábica ainda hoje. Tudo ilegal, mas amplamente praticado. O que Heers alerta na introdução do livro Escravos e Domésticos na Idade Média é o uso político desse silêncio sobre a escravidão no mundo islâmico. O Mundo Árabe-Muçulmano sofreu e sofre com o Imperialismo ocidental? Sem dúvida! Só que os muçulmanos agiram como opressores de outros povos, negros na África, Eslavos na Europa, Asiáticos, enfim.
Rotas africanas medievais de escravos. |
Outra coisa, vi em um vídeo de um historiador que acompanho e respeito, a comparação entre a escravidão tradicional e a romana em oposição à Atlântica, foi aliás esse vídeo que me impulsionou a escrever esse post imenso. É preciso parar de falar que a escravidão romana tinha um padrão semelhante à africana, como se em Roma não houvesse uma escravidão mercantilizada. É fácil encontrar material sobre isso, muito material, aliás. Escravos em Roma formavam uma massa muito heterogênea e o comércio poderia ser altamente especializado, mas eles e elas eram vistos como coisas. Mesmo depois de libertos, mesmo se ricos (*alguns foram tornados herdeiros de seus senhores*), nunca teriam o mesmo status de um cidadão nascido livre, só para começo de conversa. Já no final do Império do Ocidente, a liberdade em troca da fixação à terra (*uma das origens da servidão medieval*) foi a opção de muitos senhores para garantir a mão-de-obra e algum crescimento demográfico.
Imagem erotizada de um mercado de escravos romano. Não sei se é do seriado Roma, ou Spartacus: Blood and Sand. |
Agora, a escravidão nas Américas tem cor desde o seu início e isso é, talvez, o fator mais importante do processo inteiro, pelo menos, para mim, uma leiga. A coisa é tão forte, que é difícil desconstruir na cabeça de um aluno, ou aluna, que em vários momentos da história escravidão não tinha cor. Qualquer um poderia ser escravo. E, claro, a indignação de alguns ao saber que os muçulmanos (*e mesmo os cristãos mediterrâneos*) escravizavam pessoas brancas deriva disso. “Como assim? Isso é uma violência!”. Por que? Porque escravo tem cor e a cor é negra.
A Escrava Isaura só desperta a piedade coletiva por ser lida como branca. Aí reside toda a força e toda a fraqueza do romance original que foi magnificamente adaptado para a TV. |
Ainda que um determinado povo, ou etnia (*os eslavos, por exemplo*) pudesse estar associado à escravidão em um determinado contexto, o fato dos negros como um todo serem associados à escravidão fez com que se criasse um sistema de discriminações, exclusões e violência nas Américas. Como a escravidão negra envolveu os europeus, acredito que essa ideia de que a escravidão tem cor seja forte em vários países que participaram do tráfico: Portugal, Holanda, Espanha, França, Inglaterra, Dinamarca (*Sim! Temos que lembrar deles*). A escravidão romana está muito longe, a islâmica é pouco ou mal estudada, mas a dos povos negros está bem mais viva.
O Brasil recebeu a maioria dos escravos. |
[1]Encontrei o resumo da história: "Raptado por turcos, Teodoro é vendido ao senhor Américo Abate, de Trápani, ao tempo em que era rei da Sicília a Guilherme. Ali, cresce como criado mas vivendo qual fosse um filho. Apaixona-se pela filha do seu dono, Violante, que dele fica grávida. Dando à luz, a criança é condenada à morte cruel, e Teodoro é levado sob açoite para a forca. Passando diante de um hotel, embaixadores do rei da Armênia enviados ao papa se inteiram de tudo, e Teodoro é por um deles reconhecido como seu filho. Libertado, casa-se com sua amada."
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