Enquanto o Flamengo jogava ontem e vencia o River Plate nos últimos minutos, eu estava corrigindo provas (*elas se multiplicam, ainda tenho coisa para corrigir*) e assistindo a minissérie brasileira Revolta dos Malês, disponível no site da TV Sesc. A série tem os pés bem firmes na História, mas fazia tempo que não ficava tão decepcionada com o destino de uma personagem. A palavra certa, seria raiva mesmo de quem montou o roteiro, criou uma personagem tão forte como a Guilhermina (Shirley Cruz) só para destruí-la da forma mais cruel.
Como fiz um post inteiro sobre o lançamento da minissérie, peço que o visitem para ter uma explicação mais estendida da revolta, mas vamos para uma curtinha: Ocorrida em 1835, a Revolta dos Malês, muçulmanos escravizados de origem nagô, foi a maior revolta urbana de escravos das Américas. Tudo foi combinado por escrito em árabe e o objetivo era tomar o poder em Salvador, estender o levante ao Recôncavo Baiano, matar todos os brancos e criar um estado islâmico na região. Mas houve uma denúncia e as autoridades estavam preparadas para resistir.
Homens são apresentados como lideranças, mulheres, como apoiadoras. |
Como pontuei lá no início, a parte histórica da série, que só tem cinco capítulos, é muito consistente. Ela mostra as diferenças entre os vários grupos de escravizados, mesmo os que eram muçulmanos. É um erro acreditar, como muita gente repete, que os africanos formavam um grupo homogêneo e que não tinham suas rivalidades, ou não podiam tê-las por terem sido escravizados. Esta visão simplificada, seja para desqualificar, ou para exaltar supostas identidades, não se sustenta diante das fontes.
A prisão de Licutan precipita a revolta. |
O estopim para a revolta foi a prisão de Pacífico Licutan (André Ramiro), grande líder espiritual do grupo, e o levante ocorreria no dia 25 de janeiro de 1835, enquanto os católicos comemoravam, na igreja do Bonfim, a festa de Nossa Senhora da Guia, negros africanos celebravam o fim do Ramadã. Guilhermina, a protagonista, participa ativamente dos planos, ela é próxima de Victório (Raphael Logam), que viera da África no mesmo navio negreiro. Ela inclusive consegue que um dos homens a ensine a lutar usando facão e faca para ser mais útil.
Guilhermina quer salvar a filha. |
Quando Cida (Tatigua Tiburcion), que é escrava de seu antigo senhor avisa que o fazendeiro pretende abusar de Teresa, Guilhermina decide tomar uma atitude. Sim, ela é a traidora, mas ela é uma criação do roteiro, Guilhermina nunca existiu. Eu realmente não esperava e fiquei decepcionada com o roteiro. Constroem uma protagonista forte, como mãe desesperada e malê, para destruí-la nos últimos dois capítulos. Mas vamos fechar a resenha e sinalizo onde começo a liberar a raiva do meu coração.
As imagens da série na rede são poucas e ruins. |
Nesse ponto, eles poderiam seguir as vertentes historiográficas que pintam o movimento como muito mais nagô do que islâmico, mas, vá lá. Seria a minha escolha. A série, mesmo tendo uma protagonista, Guilhermina, deu visibilidade às lideranças malês históricas: Pacífico Licutan, Ahuna (Rodrigo dos Santos) e Manuel Calafate. Queria que uma mulher histórica, a mãe de Luiz Gama, Luísa Mahin, aparecesse. Ela era negra de tabuleiro, as ancestrais das atuais baianas, elas aparecem no minissérie, peças importantes na articulação do movimento. Foi citada no samba enredo da Mangueira. Ela tomou parte na Revolta dos Malês, o movimento negro lhe atribui uma posição de liderança, e a série opta por excluí-la. Por que será?
Esses livrinhos aparecem na minissérie. |
Se você está aqui, não se importa com spoilers e não falo do fato da revolta ter sido derrotada, mas de Guilhermina ser a traidora. Quando estávamos no capítulo #3, imaginei que a traidora fosse uma mulher que não queria levar o bilhete aos seus companheiros de senzala. Há a lenda de que uma malê contou para sua senhora que haveria a revolta e que os brancos seriam mortos para salvá-la e seus filhos. Curiosamente, no filme indiano Mangal Pandey, que fala da Revolta dos Cipaios (1857-1859), usa do mesmo expediente.
Penso que uma das ideias que agradam aos memorialistas e historiadores para preencher suas lacunas é culpar alguma mulher pela traição, mesmo que por motivos nobres e até justos. É, também, uma forma de reafirmar a ideia assentada em várias culturas de que mulheres são emocionais (*se afeiçoam até aos inimigos*), sem a capacidade de operar politicamente e pouco confiáveis (*Eva, Pandora, Malinche etc.*). Pois bem, Revolta dos Malês embarca com os dois pés nessa ideia misógina ancestral, o problema é que escolhe a protagonista, uma personagem simpática, como a traidora.
"A vitória vem de Alá!", dizia o fragmento em árabe encontrado dentro de um amuleto malê confiscado pela polícia |
O que ela queria? Garantir a liberdade de sua filha, uma menina de onze anos. Nenhum dos camaradas odeia Teresa, a criança, estão, inclusive, dispostos a protegê-la. Aqui, não entra, por exemplo, um justificável desejo de vingança. Se Guilhermina traiu para salvar a filha, melhor seria tirar-lhe a razão do seu ato ignominioso. Pois bem, Teresa termina livre, trata-se da penúltima cena da minissérie. Agora, sua liberdade é frágil, pois a mãe a despacha para o Rio de Janeiro, com sua carta de alforria e dinheiro que tinha sido tirado (*porque me recuso a ver esse ato como roubo*) do patrão.
Guilhermina era uma negra de tabuleiro. |
Enfim, eu passei o capítulo #4 e #5 parando os episódios para praguejar e fiquei muito furiosa com o resultado final. Belisario Franca e Jeferson De deveriam ter falado dos homens e não criado uma personagem feminina e dado-lhe o protagonismo para massacrá-la e reforçar esse mito da mulher traidora sem ao menos garantir que ela foi bem sucedida em seu intento de salvar a filha. Coloquei no final o vídeo da Lilian Schwarcz sobre a Revolta dos Malês.
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