Sexta-feira passada, assisti a um filme que estava realmente esperando muito que estreasse, Filhas do Sol (Les filles du soleil), uma produção francesa (*na verdade de vários países*) acompanhando um batalhão curdo feminino na sua luta contra o Estado Islâmico. Um batalhão muito especial, formado por mulheres da minoria yazidi e que tinham sido prisioneiras do Estado Islâmico. Valeu esperar e sei que quando tiver que eleger os melhores filmes do ano, Filhas do Sol estará no meu top 10.
Filhas do Sol se passa em algum lugar do Curdistão e começamos com uma repórter de guerra francesa, Mathilde (Emmanuelle Bercot), em sua jornada até onde está um batalhão feminino conhecido por sua coragem e por ser composto somente por ex-prisioneiras do ISIS. Lá ela conhece Bahar (Golshifteh Farahani), a comandante, uma mulher experimentada nas batalhas e com um olhar triste e duro. Mathilde passará somente três dias com as Filhas do Sol e acompanhará a tentativa dos curdos de tomarem uma importante posição do Estado Islâmico.
Bahar passa a confiar em Mathilde. |
Filhas do Sol é um filme de mulheres, diretora e roteirista (Eva Husson) e praticamente todos os postos da produção da película são ocupados por elas. É, também, um filme sobre mulheres e tudo gira em torno delas, suas esperanças, tristezas, lutas e superação. Quem for para o cinema acreditando que irá assistir a um filme de guerra convencional, e li umas críticas negativas de homens (*surpresa?*) que assim pensaram, vai se decepcionar. O filme é sobre como mulheres unidas deixam de ser vítimas, passam a ter esperança e tomam posse das chaves para um futuro melhor.
Juntas somos mais fortes. |
Esse grupo, que tem séculos de história, não é muçulmano, nem cristão, mas pratica uma religião sincrética que mistura zoroastrismo e outros cultos da antiga Mesopotâmia, infiéis, portanto. O ISIS ou ISIL, ou qualquer nome que essa aberração assuma, estava no seu auge e atacou os yazidi de surpresa. Matou todos os homens de imediato, capturou milhares (*sim, milhares*) de mulheres e crianças. Separou os meninos que tinham idade para serem treinados como leõezinhos do califado, como são chamados. Matou as velhas e as demais mulheres e crianças foram vendidas como escravas sexuais.
Mathilde passou vinte anos cobrindo conflitos e perdeu um olho quando estava no Iraque. |
Sim, é desse tipo de coisa que o filme vai falar, ele não foi feito para mostrar somente o quanto aquelas mulheres são guerreiras destemidas (*"fodonas" como muita gente gosta de dizer*). Elas são, mas elas são humanas e sentem medo, tem angústias, mas querem ser mães não de filhos e filhas, ou somente deles, mas de uma pátria livre. Na canção repetida algumas vezes no filme e que tem como refrão "Mulheres, Vida, Liberdade", elas falam que seu leite será vermelho e com ele adubarão o solo de um país livre.
"seu amigo morreu." "Ele está no paraíso!" "Não, não está. Ele foi morto por uma mulher!" Para os jihadistas, ser morto por uma mulher os impediria de ir para o paraíso. |
Os EUA retiraram as tropas e dois dias depois o ataque turco começou. Há cheiro de traição no ar e podemos ter mais um genocídio a caminho. E se você não se preocupa com os curdos, pense que se eles forem enfraquecidos, o Estado Islâmico poderá avançar de novo. Pense, também, nas novas ondas de refugiados chegando na Europa e outros lugares do mundo, porque é o desdobramento natural desse tipo de tragédia. Aliás, Erdogan, presidente (*quase ditador*) da Turquia, ameaçou abrir as fronteiras e deixar os refugiados inundarem a Europa, caso houvesse alguma sanção.
Bahar quando advogada, de classe média alta, feliz e, aparentemente, protegida. |
Mathilde também tem uma filha, uma menina do tamanho da minha, mas ela se obriga a deixar a criança para trás e ir para onde está a ação, porque alguém precisa mostrar para o mundo a verdade. Mesmo com crises, ela perdeu o marido recentemente, ele estava como repórter de guerra na Líbia, o exemplo daquelas mulheres lhe dá forças para continuar e voltar a acreditar que seu trabalho é importante. Vejam, não é a maternidade o motor, mas a sororidade, alguém precisava contar aquela história e melhor seria se fosse uma mulher a falar sobre mulheres.
A fuga perigosa e desesperada. |
Talvez, alguém aponte que cinematograficamente o filme é cheio de defeitos técnicos. Pode ser que, realmente, não seja um filme notável como cinema, mas ele é brilhante ao penetrar na intimidade das mulheres soldados curdas e denunciar os crimes do Estado Islâmico contra a humanidade, especialmente, contra nós, mulheres. Eu quero que minha filha possa assisti-lo quando tiver idade e vou tentar arruma ruma cópia para quando o momento chegar.
Vejam bem, eu seria uma das velhas mortas pelo ISIS, minha filha seria levada, seria vendida e estuprada por homens adultos, talvez oriundos de sociedades abastadas e modernas nas quais esse tipo de crime não seria admitido. Eu consigo me ver naquele filme e sentir a dor daquelas mulheres, assim como na das ex-prisioneiras da Torre das Donzelas e, pelo que vi, o filme falou com as outras pessoas que estavam naquela sala de exibição. Velhos e jovens, homens e mulheres, aparentemente, todos entenderam.
Soldados curdas reais. |
Nenhuma das soldados curdas é um Rambo. Elas têm medo. Algumas choram antes da batalha. Bahar não consegue dormir, só cochilar. Elas se apoiam, cantam e dançam para conseguirem ter forças para seguir adiante. Algumas delas usam lenços coloridos na cabeça, uma pequena vaidade que poderia custar-lhes a vida eu só lembrava da sniper soviética morta por não abrir mão da echarpe vermelha durante a 2ª Guerra. E, sim, se você pegar as fotos das soldados curdas reais, você verá esses lenços, elas usam mesmo.
As Filhas do Sol avançam sobre território inimigo. |
A primeira vez que vi esse papo de acusar quem resgata gente em condição de escravidão, seja ela qual for, de patrocinar o terrorismo, aconteceu muitos anos atrás, quando li sobre missionários americanos e canadenses no Sudão. Eles muitas vezes compravam gente do atual Sudão do Sul capturada das milícias jihadistas do norte. "Ah, eles estão criando um mercado de escravos!" O mercado de escravos já existe, eles estão fazendo o que podem, com os meios que tem. O que eu não sabia é que sujeitos ligados ao Estado Islâmico aceitavam suborno para libertar mulheres. Trabalho muito perigoso esse, independentemente do pagamento, vamos combinar.
Homens e mulheres lutam juntos na frente de batalha e se respeitam. |
De que adiantaria avançar, perder homens e mulheres, tomar uma posição das mãos do inimigo para perdê-la depois? Nesse sentido, Filhas do Sol faz um trabalho muito bom ao mostrar que a guerra pode e precisa ser vista por vários ângulos. Há quem está na frente de combate, há quem tenha que pensar em estratégias de médio e longo prazo, enfim... E uma das coisas mais importantes das cenas de combate era tirar a bandeira negra do ISIS e colocar a do Curdistão livre. Uma das partes bonitas, por assim dizer.
Guerrilheira curda real com seu lenço bem verde. Atrás, outra soldado com lenço vermelho. |
O filme é falado em várias línguas e isso acaba colocando a gente nas mãos dos tradutores. Temos francês (*Bahar é fluente e estudou na França*); inglês que é a língua que Mathilde usa com a intérprete que a leva até o general; turco, que é falado pelo general em alguns momentos, inclusive para criticar a presença da jornalista (*a intérprete avisa que Mathilde sabe turco*), curdo e árabe. Talvez tenhamos mais algum dialeto.
Algo da tradução é que uma única vez aparece a palavra "companheira", nas outras, a opção é por "colega" nas conversas entre as soldados. Ora, "companheira" deve ser o mais correto o tempo inteiro, mas isso é indício de algo que talvez tenham tentado omitir, que os grupos de combatentes tem fortes laços com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), um partido comunista, ou outros partidos de esquerda.
Bahar entra em conflito com o general, ele quer esperar, ela quer avançar. |
Antes do fim, queria reforçar, para quem não entendeu, que eu tenho lado e ele não é o do Estado Islâmico, um grupo que considero criminoso e inimigo das mulheres. Não me venha ninguém nos comentários falar "Os EUA criaram o ISIS!" "Israel, isso, ou aquilo!". Independentemente de qualquer elo de origem, o ISIS é uma organização criminosa e facínoras são todos aqueles que saíram de suas pátrias, alguns de países europeus, para lutar pelo estabelecimento de um Estado que tem total desprezo pelos direitos humanos e particular prazer em torturar mulheres e meninas.
Polícia feminina do califado. (*imagem real*) |
Mesmo o ISIS, assim como o Talebã antes dele, precisavam de mulheres para algumas funções, inclusive policiar outras mulheres, nem todas eram simplesmente noivas da jihad. As policiais usavam niqab (*que o ISIS queria impôr para todas as mulheres*), luvas negras, meias negras e fuzis de assalto. Essas mulheres precisam ser punidas, também. Elas fizeram uma escolha e muitas vezes se regozijaram dela. Acredito inclusive que as penas aplicadas aos jihadistas europeus são brandas, visto que incluem assassinato, tortura, tráfico de pessoas, estupro, pedofilia e, talvez, muito mais coisas.
A parceria entre Bahar e Mathilde é fundamental no filme. Cada uma no seu lugar. |
E, repetindo, Filhas do Sol não é um filme de guerra, é um filme sobre mulheres que se unem para resistir e que se recusam a ser simplesmente vítimas. Esta pode não ser a minha melhor resenha, mas tenham certeza que Filhas do Sol foi um dos melhores filmes que assiste este ano e um dos mais feministas que vi na minha vida.
1 pessoas comentaram:
Qdo vi o anúncio, pensava ser um documentário sobre essas mulheres, que acompanhava por reportagens. Foi nelas que pensei após as primeiras notícias sobre o ataque dos turcos àquela região. Uma pena que seja um filme com circulação tão restrita.
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