terça-feira, 15 de outubro de 2019

Comentando As Filhas do Sol (França/2019): Mulheres, Vida e Liberdade!


Sexta-feira passada, assisti a um filme que estava realmente esperando muito que estreasse, Filhas do Sol (Les filles du soleil), uma produção francesa (*na verdade de vários países*) acompanhando um batalhão curdo feminino na sua luta contra o Estado Islâmico.  Um batalhão muito especial, formado por mulheres da minoria yazidi e que tinham sido prisioneiras do Estado Islâmico.  Valeu esperar e sei que quando tiver que eleger os melhores filmes do ano, Filhas do Sol estará no meu top 10.

Filhas do Sol se passa em algum lugar do Curdistão e começamos com uma repórter de guerra francesa, Mathilde (Emmanuelle Bercot), em sua jornada até onde está um batalhão feminino conhecido por sua coragem e por ser composto somente por ex-prisioneiras do ISIS.  Lá ela conhece Bahar (Golshifteh Farahani), a comandante, uma mulher experimentada nas batalhas e com um olhar triste e duro.  Mathilde passará  somente três dias com as Filhas do Sol e acompanhará a tentativa dos curdos de tomarem uma importante posição do Estado Islâmico.


Bahar passa a confiar em Mathilde.
Nesse curto tempo, a jornalista conhece o dia-a-dia daquelas mulheres soldados, algumas delas mães com crianças pequenas, a sororidade, a esperança no futuro, a alegria nos pequenos momentos de paz, o medo da morte (*e ainda maior da vitória do califado*), a “fúria de viver” (*expressão utilizada no filme*) e, sim, a sede de justiça.  Em flashback conheceremos a história de Bahar, como foi aprisionada pelo Estado Islâmico e de sua fuga junto com outra companheira, Lamia (Zübeyde Bulut), responsável por levá-la para a frente de combate ao dizer que não queria mais ser vítima, mas construir um futuro melhor.

Filhas do Sol é um filme de mulheres, diretora e roteirista (Eva Husson) e praticamente todos os postos da produção da película são ocupados por elas.  É, também, um filme sobre mulheres e tudo gira em torno delas, suas esperanças, tristezas, lutas e superação.  Quem for para o cinema acreditando que irá assistir a um filme de guerra convencional, e li umas críticas negativas de homens (*surpresa?*) que assim pensaram, vai se decepcionar.  O filme é sobre como mulheres unidas deixam de ser vítimas, passam a ter esperança e tomam posse das chaves para um futuro melhor.


Juntas somos mais fortes.
E Filhas do Sol não é, também, um filme sobre maternidade, porque, sim, esse é um tema importante e, bem, a maioria das mulheres adultas de nosso mundinho são mães, ou tem que enfrentar a sociedade quando não o querem ser. Bahar quer resgatar o filho que está nas mãos do Estado Islâmico.  Para quem não sabe, e já me desculpo, porque este texto será longo, o filme teve como ponto de partida uma história real, os Massacres de Sinjar, ocorridos no Iraque, em 2014, contra a minoria curda chamada yazidi.  

Esse grupo, que tem séculos de história, não é muçulmano, nem cristão, mas pratica uma religião sincrética que mistura zoroastrismo e outros cultos da antiga Mesopotâmia, infiéis, portanto.  O ISIS ou ISIL, ou qualquer nome que essa aberração assuma, estava no seu auge e atacou os yazidi de surpresa.  Matou todos os homens de imediato, capturou milhares (*sim, milhares*) de mulheres e crianças.  Separou os meninos que tinham idade para serem treinados como leõezinhos do califado, como são chamados.  Matou as velhas e as demais mulheres e crianças foram vendidas como escravas sexuais.  


Mathilde passou vinte anos cobrindo conflitos
e perdeu um olho quando estava no Iraque.
E trata-se de um negócio global, como Bahar comenta em dado momento do filme, que envolve estrangeiros que vem de todas as partes do mundo para lutar pelo califado, com a certeza de que vão poder matar e estuprar mulheres e crianças sem nenhum problema com a lei, até porque a lei do ISIS lhes assegura esse direito.  Bahar perde o marido, tem seu filho tomado e e vendida para um estrangeiro junto com a irmã adolescente.  A menina, depois de estuprada de forma violenta, comete suicídio.  Bahar será revendida quatro vezes, porque, bem, ela já era considerada velha, os jihadistas preferem crianças de 9 e 10 anos.  

Sim, é desse tipo de coisa que o filme vai falar, ele não foi feito para mostrar somente o quanto aquelas mulheres são guerreiras destemidas (*"fodonas" como muita gente gosta de dizer*).  Elas são, mas elas são humanas e sentem medo, tem angústias, mas querem ser mães não de filhos e filhas, ou somente deles, mas de uma pátria livre.  Na canção repetida algumas vezes no filme e que tem como refrão "Mulheres, Vida, Liberdade", elas falam que seu leite será vermelho e com ele adubarão o solo de um país livre.  


"seu amigo morreu."  "Ele está no paraíso!" "Não, não está. 
Ele foi morto por uma mulher!" Para os jihadistas,
ser morto por uma mulher os impediria de ir para o paraíso.
Nesse momento, se você está acompanhando os noticiários, deve saber que a Turquia está bombardeando o Curdistão Sírio (*os curdos não tem um estado território, mas estão espalhados por Iraque, Irã, Turquia e Síria*) alegando lutar contra o terrorismo.  Os curdos, esses homens e mulheres que estavam derramando seu sangue, ou seu leite vermelho, para garantir a derrota do ISIS, porque bombardeio é bom, mas a luta se deu rua a rua, nos desertos e nos túneis, foi desamparado pelo seu principal aliado.  

Os EUA retiraram as tropas e dois dias depois o ataque turco começou.  Há cheiro de traição no ar e podemos ter mais um genocídio a caminho.  E se você não se preocupa com os curdos, pense que se eles forem enfraquecidos, o Estado Islâmico poderá avançar de novo.  Pense, também, nas novas ondas de refugiados chegando na Europa e outros lugares do mundo, porque é o desdobramento natural desse tipo de tragédia.  Aliás, Erdogan, presidente (*quase ditador*) da Turquia, ameaçou abrir as fronteiras e deixar os refugiados inundarem a Europa, caso houvesse alguma sanção.


Bahar quando advogada, de classe
média alta, feliz e, aparentemente, protegida.
Sim, assisti o filme em um momento ideal, porque ele fez par com Torre das Donzelas, que tinha assistido na véspera, e com o que está nos noticiários.  A ponte com Torre das Donzelas é simples, é um filme de mulheres, o olhar é feminino e coisas que para os homens (*pensados ambos como construtos sociais*) não importam, é fundamental para elas.  Li uma reclamação em uma resenha de que a atriz Emmanuelle Bercot, que faz a jornalista Mathilde, é mera testemunha e não faz nada no filme.  Não sei em que momento a pessoa dormiu, mas ela mesma recusa uma arma oferecida por Bahar para a sua proteção e diz que sua função não é essa, mas testemunhar, sua arma é sua câmera.

Mathilde também tem uma filha, uma menina do tamanho da minha, mas ela se obriga a deixar a criança para trás e ir para onde está a ação, porque alguém precisa mostrar para o mundo a verdade.  Mesmo com crises, ela perdeu o marido recentemente, ele estava como repórter de guerra na Líbia, o exemplo daquelas mulheres lhe dá forças para continuar e voltar a acreditar que seu trabalho é importante.  Vejam, não é a maternidade o motor, mas a sororidade, alguém precisava contar aquela história e melhor seria se fosse uma mulher a falar sobre mulheres.  


A fuga perigosa e desesperada.
Se vocês não perceberam ainda a grandeza desse filme, algo difícil, porque meu texto deve estar confuso e é sempre melhor que a gente assista uma película, só imaginem que quando o filme terminou, ninguém se mexeu da cadeira.  Quando Mathilde, porque ela abre e fecha o filme, essa personagem sem importância, termina seu monólogo falando da grandeza daquelas mulheres soldado e da necessidade de lutar contra o ISIS, porque ele é nosso inimigo (*das mulheres*) e está destruindo a vida das meninas, seus sonhos, seu futuro, todos ficaram congelados.  Esse foi o efeito do filme sobre a sala de cinema onde eu estava.  E sei que haveria muitas lágrimas, se o roteiro não tivesse feito uma pequena concessão.  Se você assistir ao filme, verá qual foi.

Talvez, alguém aponte que cinematograficamente o filme é cheio de defeitos técnicos.  Pode ser que, realmente, não seja um filme notável como cinema, mas ele é brilhante ao penetrar na intimidade das mulheres soldados curdas e denunciar os crimes do Estado Islâmico contra a humanidade, especialmente, contra nós, mulheres.  Eu quero que minha filha possa assisti-lo quando tiver idade e vou tentar arruma ruma cópia para quando o momento chegar.
Soldados curdas reais.
Vejam bem, eu seria uma das velhas mortas pelo ISIS, minha filha seria levada, seria vendida e estuprada por homens adultos, talvez oriundos de sociedades abastadas e modernas nas quais esse tipo de crime não seria admitido.  Eu consigo me ver naquele filme e sentir a dor daquelas mulheres, assim como na das ex-prisioneiras da Torre das Donzelas e, pelo que vi, o filme falou com as outras pessoas que estavam naquela sala de exibição.  Velhos e jovens, homens e mulheres, aparentemente, todos entenderam.

Nenhuma das soldados curdas é um Rambo.  Elas têm medo.  Algumas choram antes da batalha.  Bahar não consegue dormir, só cochilar.  Elas se apoiam, cantam e dançam para conseguirem ter forças para seguir adiante.  Algumas delas usam lenços coloridos na cabeça, uma pequena vaidade que poderia custar-lhes a vida eu só lembrava da sniper soviética morta por não abrir mão da echarpe vermelha durante a 2ª Guerra.  E, sim, se você pegar as fotos das soldados curdas reais, você verá esses lenços, elas usam mesmo.


As Filhas do Sol avançam sobre território inimigo.
Filhas do Sol, claro, cumpre a Bechdel Rule e é um filme feminista, com "F" maiúsculo.  Uma personagem importante do filme, especialmente, dos flashbacks de Bahar é sua antiga professora de direito, Dahlia (Behi Djanati Atai), uma militante que luta para libertar mulheres nas mãos do ISIS.  Em um dado momento, lhe é perguntado se ela, ao comprar mulheres cativas, não estaria financiando o terrorismo.  A advogada retruca com algo como "Você acha melhor que eu lave minhas mãos e deixe mulheres e crianças nas mãos de estupradores e assassinos?"  

A primeira vez que vi esse papo de acusar quem resgata gente em condição de escravidão, seja ela qual for, de patrocinar o terrorismo, aconteceu muitos anos atrás, quando li sobre missionários americanos e canadenses no Sudão.  Eles muitas vezes compravam gente do atual Sudão do Sul capturada das milícias jihadistas do norte.  "Ah, eles estão criando um mercado de escravos!"  O mercado de escravos já existe, eles estão fazendo o que podem, com os meios que tem.  O que eu não sabia é que sujeitos ligados ao Estado Islâmico aceitavam suborno para libertar mulheres.  Trabalho muito perigoso esse, independentemente do pagamento, vamos combinar.


Homens e mulheres lutam juntos na frente de batalha e se respeitam.
Há vários homens no filme, os militantes do ISIS, que não tem grande papel no filme a não ser representar essa ameaça real e misógina; temos os soldados curdos, que tratam suas companheiras como iguais; e há o general (Zirek), esse com mais falas e importância.  O general está naquele papel difícil de conter a fúria de Bahar, ela quer avançar, ele aguarda a chegada da coalização com o apoio aéreo.  Parece que ele está errado, sentado no seu tapete, com seus oficiais limpinhos e esperando uma ligação, mas o filme não o demoniza, aparentemente, ele reconhece, apesar das críticas de Bahar, que ele tem certa razão.  

De que adiantaria avançar, perder homens e mulheres, tomar uma posição das mãos do inimigo para perdê-la depois?  Nesse sentido, Filhas do Sol faz um trabalho muito bom ao mostrar que a guerra pode e precisa ser vista por vários ângulos.  Há quem está na frente de combate, há quem tenha que pensar em estratégias de médio e longo prazo, enfim... E uma das coisas mais importantes das cenas de combate era tirar a bandeira negra do ISIS e colocar a do Curdistão livre.  Uma das partes bonitas, por assim dizer.


Guerrilheira curda real com seu lenço bem verde. 
Atrás, outra soldado com lenço vermelho.
O que eu tenho mais a dizer?  O filme trabalha com cenas de flashbacks que vão se tornando mais longas conforme aumenta a intimidade e confiança entre Bahar e Mathilde.  Inclusive, haveria material para duas películas, uma contando a luta das Filhas do Sol para tomar a escola e os arredores nas mãos do Estado Islâmico e o drama do sequestro de Bahar e como ela, Lamia, e outra mulher e duas crianças fogem dos jihadistas.

O filme é falado em várias línguas e isso acaba colocando a gente nas mãos dos tradutores.  Temos francês (*Bahar é fluente e estudou na França*); inglês que é a língua que Mathilde usa com a intérprete que a leva até o general; turco, que é falado pelo general em alguns momentos, inclusive para criticar a presença da jornalista (*a intérprete avisa que Mathilde sabe turco*), curdo e árabe.  Talvez tenhamos mais algum dialeto.  


Bahar entra em conflito com o general,
ele quer esperar, ela quer avançar.
Algo da tradução é que uma única vez aparece a palavra "companheira", nas outras, a opção é por "colega" nas conversas entre as soldados.  Ora, "companheira" deve ser o mais correto o tempo inteiro, mas isso é indício de algo que talvez tenham tentado omitir, que os grupos de combatentes tem fortes laços com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), um partido comunista, ou outros partidos de esquerda.

Antes do fim, queria reforçar, para quem não entendeu, que eu tenho lado e ele não é o do Estado Islâmico, um grupo que considero criminoso e inimigo das mulheres.  Não me venha ninguém nos comentários falar "Os EUA criaram o ISIS!"  "Israel, isso, ou aquilo!".  Independentemente de qualquer elo de origem, o ISIS é uma organização criminosa e facínoras são todos aqueles que saíram de suas pátrias, alguns de países europeus, para lutar pelo estabelecimento de um Estado que tem total desprezo pelos direitos humanos e particular prazer em torturar mulheres e meninas.  


Polícia feminina do califado. (*imagem real*)
Outra coisa, o Estado Islâmico não representa todos os muçulmanos, da mesma maneira que os supremacistas brancos não representam todos os cristãos. Há islâmicos em armas contra o ISIS, isso é mostrado no filme, inclusive, uma das mulheres diz para um prisioneiro que ela também é muçulmana.  Agora, essas distorções fruto de uma leitura enviesada dos textos sagrados são uma praga presente em todas as religiões que conheço.  O problema é que o ISIS se constituiu em Estado e com adesão internacional.  Inclusive de mulheres ocidentais que saíram de sua pátria para se juntar aos jihadistas.  Algumas eram adolescentes, foram enganadas, como vários meninos o foram, outras, não mostram arrependimento algum.  

Mesmo o ISIS, assim como o Talebã antes dele, precisavam de mulheres para  algumas funções, inclusive policiar outras mulheres, nem todas eram simplesmente noivas da jihad. As policiais usavam niqab (*que o ISIS queria impôr para todas as mulheres*), luvas negras, meias negras e fuzis de assalto.  Essas mulheres precisam ser punidas, também.  Elas fizeram uma escolha e muitas vezes se regozijaram dela.  Acredito inclusive que as penas aplicadas aos jihadistas europeus são brandas, visto que incluem assassinato, tortura, tráfico de pessoas, estupro, pedofilia e, talvez, muito mais coisas.


A parceria entre Bahar e Mathilde é
fundamental no filme.  Cada uma no seu lugar.
Concluindo, raramente vi uma mulher tão bonita, com olhos tão expressivos, quanto Golshifteh Farahani.  E no filme ela aparece de várias formas, no inicio como uma mulher moderna, bem sucedida, passando pela prisioneira escrava-sexual maltratada, até a guerreira de olhos profundos e tristes.  Enfim, ela é uma das coisas mais impressionantes do filme que, como um todo, me marcou bastante.  Saí pensando em quanto os meus problemas são pequenos frente aos problemas enfrentados por outras mulheres.  Sim, são meus problemas, mas é bom para a gente dimensionar melhor as coisas e lembrar do quanto é privilegiada.  

E, repetindo, Filhas do Sol não é um filme de guerra, é um filme sobre mulheres que se unem para resistir e que se recusam a ser simplesmente vítimas.  Esta pode não ser a minha melhor resenha, mas tenham certeza que Filhas do Sol foi um dos melhores filmes que assiste este ano e um dos mais feministas que vi na minha vida.


1 pessoas comentaram:

Qdo vi o anúncio, pensava ser um documentário sobre essas mulheres, que acompanhava por reportagens. Foi nelas que pensei após as primeiras notícias sobre o ataque dos turcos àquela região. Uma pena que seja um filme com circulação tão restrita.

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