sábado, 28 de setembro de 2019

Comentando Branca Como a Neve (França/2019): E se Branca de Neve fosse um Mangá Harém com tempero francês?


Quinta-feira, fui com umas amigas assistir o filme francês Branca como a Neve (Blanche comme Neige), uma releitura do conto clássico dos Irmãos Grimm, Branca de Neve.  Primeira coisa que devo informar, as sinopses do filme estão um pouco erradas.  O amante da madrasta má não é mais jovem que ela, ou se é, não aparenta.  Segunda informação, trata-se de uma comédia, é verdade, mas um tanto trash e com forte conteúdo erótico, algo que não fica evidente na sinopse e só é sugerido trailer.  Terceira informação, me diverti muito, muito mesmo com esse filme.  Enfim, se você gosta de mangá harém, mas acha que a protagonista deveria tirar uma casquinha de todos os rapazes da história, este filme é para você.

Comecemos com uma sinopse decente do filme: Claire (Lou de Laâge) é uma bela jovem que trabalha no hotel do seu falecido pai, agora administrado por sua madrasta Maud (Isabelle Huppert). A madrasta é muito severa com Claire, que vive para o trabalho, e sempre repete que o pai da moça detestava gente preguiçosa e que ela precisava se esforçar mais.  O problema começa quando o amante de Maude, Bernard (Charles Berling), se apaixona por Claire. 


A cena do espelho se remete ao conto clássico.
Maud presencia uma das investidas do sujeito e é tomada por ciúmes e decide se livrar da enteada.  A madrasta contrata uma assassina (Agata Buzek), que sequestra a moça e a leva para uma montanha distante.  Claire termina sendo resgatada e sua vida dá uma completa guinada ao se tornar o centro da vida de sete "anões" muito estranhos.

Me surpreendi um tanto com esse filme de Anne Fontaine, que dirige e assina com outras pessoas o roteiro.  Escrevo isso, porque conheço a diretora do tenso e dramático Agnus Dei, um dos melhores filmes que assisti em 2016, não imaginava a diretora fazendo um filme nesses moldes, só que não vi nada mais nada dela, então não tenho como discutir se é um ponto fora da curva, ou não.  Só sei que é um filme divertido e que consegue, ainda que mantendo a relação problemática entre a madrasta e a Branca de Neve, uma releitura feminista descompromissada do conto original.


Claire espera que Pierre tome a iniciativa, mas ele não vem.
Mais uma vez, a diretora escalou a competente e bonita Lou de Laâge como protagonista.  Ela parece bem mais jovem em Branca como a Neve do que em Agnus Dei e passa por uma grande mudança ao longo do filme.  Começa como a inocente e reprimida "Branca de Neve" e termina descobrindo a sexualidade e tomando as rédeas de sua vida.  Logo no início, quando é resgatada por Pierre (Damien Bonnard), ela parece que estará em uma relação de submissão em relação ao sujeito, mas a situação se reverte rapidamente e Claire passa a ser o elemento dominante da relação.

Pierre, um homem rústico e de poucas palavras, mora em uma casa isolada com seu irmão gêmeo, François (Damien Bonnard), e o hipocondríaco Vincent (Vincent Macaigne).  O sujeito já teve problemas com a polícia (*e o filme não entre em detalhes sobre isso*) e não quer procurar ajuda das autoridades, estabelece-se de imediato uma tensão erótica entre Claire e ele. Ele a manda embora, ela o enfrenta e esbofeteia, ele termina por beijá-la.  Depois disso, Claire espera que ele tome a iniciativa, como nada acontece, ela vai atrás dele, o problema é que ela não consegue discernir entre um gêmeo e outro.  Mas quem se importa, não é mesmo?


A única diferença entre os gêmeos é que um é gago.
O humor de Branca como a Neve, se baseia exatamente nas confusões que a presença da jovem mulher causa na vida de um bando de sujeitos problemáticos de uma cidade do interior.  Pierre e seu irmão gago, François, que eu decidi chamar de Zangado e Dunga, terminam ambos se relacionando com Claire e em dado momento, ainda que não vejamos nada, rola até uma orgia lá entre os três.

E é através de Vincent, o violoncelista hipocondríaco, que Claire conhece o resto da vila.  Vincent Macaigne estava no elenco de Agnus Dei e lá ele também fazia uma espécie de par romântico da personagem de Lou de Laâge.  A primeira pessoa que Claire encontra é o veterinário Sam (Jonathan Cohen) cuida de Chernobyl, o cachorro de Vincent, que toma antidepressivos por culpa do dono.  Sam é o mais perturbado do grupo de homens, inseguro, neurótico e ciumento, e se o filme fosse um tano mais realista, Claire deveria manter distância dele.  


Vincent e Chernobyl.
De todos os sujeitos, Sam me parece o mais instável e propenso à violência, ainda que Claire termine por domá-lo, também.  Vou dar spoilers, quando eles transam dentro do carro, há uma piada com Branca de Neve da Disney, porque ele acredita que está sendo observado, na verdade, um monte de bichos vem para o para-brisa do carro para olhar o que os dois estão fazendo. No outro dia, Sam dá um celular para Claire.  Ela recusa e diz que não aceitaria ser controlada por ninguém. Ela quer ser livre, se ele a quiser, terá que ser desse jeito.  Ele parece se conformar.

Vincent também apresenta Claire ao padre da cidadezinha, Guilbald (Richard Fréchette), dono de uma moto espetacular, e ao livreiro Charles (Benoît Poelvoorde), que tenta de cara seduzir Claire, sem grandes resultados.  Poelvoorde meio que repete o mesmo papel que fez em Banho de Vida.  Ele é bonachão, mulherengo, meio inconveniente e pouco confiável.  Mais tarde, descobrimos que é masoquista e gosta de apanhar de mulheres... 


O padre e o livreiro.
Charles tem um filho, Clément (Pablo Pauly), que é professor de Karatê, Taekwondo e "daquela dança brasileira"... O moço explica para Claire que é capoeira.  É usando um golpe de capoeira que ele salva Claire de um sujeito que a assedia, enquanto Sam estava encolhido no canto com medo de apanhar.  Clément é o mais jovem dos anões e um sujeito muito tímido, travado e que tem vergonha do comportamento do pai.  Nada é dito, mas apostaria que era virgem, também, até se entender com Claire.

Fora Claire, a única mulher com falas na cidadezinha é Muriel (Aurore Broutin), dona do pequeno restaurante local e que tem nome de mulher.  Georgette, acredito.  É Vincent que a apresenta ao lugar e quando Claire pergunta se Muriel é a tal Georgette, ela diz de forma seca que este era o nome de sua amada que foi embora sem dizer adeus.  Cheguei a pensar que Muriel se tornaria um dos anões, mas ela vai ser a patroa de Claire, que logo arruma um emprego e vai ficando.


Clément finalmente se entrega para Claire.
Na cidadezinha, que tem um santuário famoso por seus milagres, Claire descobre a alegria de viver que tinha perdido ainda na adolescência, quando sua mãe morrera em um acidente.  A nova vida é cheia de uma sensualidade que ela nunca tinha vivido.  E é o padre Guilbald que acaba se tornando seu confidente, apesar de Claire não ser religiosa, e não a condena por suas aventuras amorosas, mesmo as mais estranhas.  É bom dizer que o filme tem uma boa quantidade de cenas de sexo, mas nada é explícito, ou grosseiro, as coisas simplesmente acontecem para representar que Claire está viva e feliz. Dento da lógica do filme, talvez o padre também faça amor com ela quando ouve suas histórias.

Mas de todas as cenas de sexo, talvez a mais intensa tenha sido a que aconteceu com Vincent, porque, bem, não há sexo nenhum.  O sujeito, que não consegue tocar em Claire (*ou qualquer mulher, como ele bem explica*) por ter medo de germes, dá de presente para a moça um violino.  Ela tinha parado de tocar quando a mãe morreu e tenta recusar.  No fim das contas, ela volta a praticar, redescobre a paixão pela música, e os dois terminam executando um belo dueto de violoncelo e violino.  É intenso, é bonito, é sensual e eles estão vestidos e não se tocam.  Foi uma das melhores sequências do filme.


Graças a Vincent, Claire recupera a paixão pela música.
Mas falemos da madrasta, pois a resenha está ficando longa demais. Isabelle Huppert, que parece feita de gelo, é a mulher de meia idade que descobre, de repente, que não é mais jovem e passa a invejar a mulher na flor da idade que tem ao seu lado.  Apesar de todo o seu esforço por anular Claire, termina vendo seu amante olhar para a moça e desejá-la, enquanto ela mesma é colocada em segundo plano.  As mulheres são adestradas para competirem entre si e verem na beleza seu maior bem, nesse aspecto, não há ruptura com o conto original.  

Maud decide então se livrar de Claire, mas não tem ideia de como fazer isso.  A sugestão do assassinato parte da personagem de Agata Buzek que é, talvez, a coisa mais surreal do filme.  Ela é terapeuta holística, meio bruxa e, bem, nas horas vagas também fazia bicos como assassina.  Ela termina se dando mal, mas quando Claire consegue dar notícias, Maud parte para as montanhas com o intuito de terminar o que começou.  Falando nisso, as locações são lindas e a fotografia do filme é muito boa, um deleite para os olhos.


O figurino da madrasta é um dos pontos altos do filme.
Isabelle Huppert coloca muita frieza em Maud, toda a sua gentileza parece falsa, calculada.  E o figurino da personagem acompanha essa ideia e é uma das melhores coisas do filme.  Quando ela vai terminar o serviço, o lenço em torno de sua cabeça lembra a indumentária da madrasta da Branca de Neve da Disney.  É proposital.  Maud é elegante e, ao mesmo tempo, lembra uma vilã de novela mexicana.  Na cidade, a madrasta conhece primeiro o livreiro, que não deixa de cantá-la, mas não se dispõe a servir-lhe de guia pela cidade.  Maud termina por se hospedar no santuário. É através do padre que ela descobre Claire e tenta passar para  Guilbald que a jovem é uma criatura perturbada e que fugiu da família.  

Quando a madrasta percebe o efeito que Claire tem sobre os homens da cidade, um poder que ela mesma não tem mais, Maud decide que é ainda mais urgente se livrar da moça, pois a felicidade da jovem é sua maior fonte de sofrimento.  A partir daí, temos algumas tentativas frustradas de assassinar Claire.  De uma vez, é o padre que a salva.  De outra, o jovem Clément impede que a protagonista coma uma maçã envenenada.  Essa cena da maçã rende o maior momento de humor involuntário do filme, quando um esquilinho, coitado, morde a fruta e morre em segundos.  Foi tosco, muito mesmo.


Sam, o veterinário meio doido, tem
que aceitar os termos de Claire, ou perdê-la.
Como no conto original, a madrasta consegue seu intento.  Depois dos vários planos frustrados, Maud envolve uma embriagada Claire em uma dança sensual.  E, sim, um dos momentos mais eróticos do filme é entre as duas, o que me fez perguntar por qual motivo a diretora não foi além na transgressão e colocou a madrasta também desejando Claire, ainda que lutasse contra seus sentimentos.  Mas é a Branca de Neve, então, vocês sabem que tudo vai terminar bem para Claire e muito mal para a madrasta.

Branca como a Neve não é um grande filme, mas é um entretenimento muito satisfatório.  Não vai mudar a vida de ninguém, mas é corajoso ao defender o direito de uma mulher ser livre, inclusive para transar com quantos homens ela quiser.  Claro que a vida louca de Claire, que passa a fumar e beber, poderia não terminar bem, mas o filme não é realista.  Em uma situação normal, Claire ficaria grávida sem saber quem era o pai da criança e aqueles homens acabariam se matando, ou tentando matá-la.   


Havia muita química entre
Lou de Laâge e Isabelle Huppert.
 Brinquei com a história de mangá harém, porque nos casos dos shoujo, mesmo que a mocinha fique em situações um tanto comprometedoras com mais de um sujeito, o comum é que saibamos desde o primeiro volume com quem ela vai ficar.  Yuuri pode ter encontrado ao longo de 28 volumes de Anatolia Story outros sujeitos tão bons quanto Kail, mas a gente sabe que é com ele que ela vai ficar no fim, os outros caras que se conformem.  Miaka tinha o imperador (Hotohori) aos seus pés, um monte de caras dispostos a se sacrificar por ela em Fushigi Yuugi, mas desde o início ela estava destinada à Tamahome.  

Haruhi, de Ouran Host Club, tem um harém orbitando ao seu redor, mas se ela for ficar com alguém, seria com Tamaki e isso estava meio evidente desde o primeiro barraco.  Fora isso, as mocinhas de shoujo harém podem ser sequestradas, quase estupradas, assediadas, até beijadas por outros, mas elas só são capazes de amar um sujeito, não raro o cidadão que lhes deu o primeiro beijo lá no começo do mangá.  A questão sempre é como eles vão ficar juntos, como superar os obstáculos.  Enfim, Claire quer todos os anões e ela não quer ser propriedade de nenhum deles.  Sim, pode não ser seu sonho, mas a mensagem é empoderadora. 


A sequência da dança entre a madrasta e Claire é
uma das mais sensuais do filme.
 filme cumpre a Bechdel Rule? Sim, mesmo não tendo tantas personagens femininas, ele se sai bem nesse aspecto.  E o considero um filme feminista, porque uma mulher fazer sexo como Claire faz, com quem deseja e sem culpa só se tornou viável com o movimento de emancipação das mulheres.  Uma das amigas que estava comigo no cinema, fala que se demorasse mais um pouco o filme, Claire daria para mais algum homem que aparecesse, eu a corrigi dizendo que ela não deu para ninguém, foi ela que comeu todos os sujeitos.  Sim, para maiores discussões deem uma olhada no meu texto sobre a entrevista da Maria Zilda.  

Concluindo, digo o seguinte, as resenhas negativas que li são de homens e, bem, acredito que a forma como o filme é conduzido e os homens são retratados talvez tenha gerado algum desconforto em certos críticos.  Afinal, deve ser meio intimidador ver o mundinho patriarcal sendo girado de ponta a cabeça com uma mulher tomando a iniciativa, colecionando amantes e ditando as regras do relacionamento.  Agora, se você quiser um filme mais denso e inegavelmente superior da diretora de Branca como a Neve, procure Agnus Dei, mas faça isso por sua conta e risco.

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