Não ia resenhar Abominável, aliás, não tenho resenhado boa parte dos desenhos animados que assisti com Júlia no cinema este ano, mas como parece que o filme está fazendo boa bilheteria, acho que vale a pena comentar um tiquinho, mas é pouco mesmo. Quando assisti com Júlia na semana de estreia, uma frase girava na minha mente "Isso é filme feito para o Oscar". E deve ser mesmo, parece feito para isso. De resto, ficou piegas o título, mas espero explicá-lo ao longo do texto.
Uma criação da DreamWorks Animation e chinês Pearl Studio, Abominável conta a história de Yi (Chloe Bennet), uma adolescente que descobre um yeti morando no telhado do prédio de sua família em Xangai. A garota dá o nome ao yeti de "Everest", ao descobrir que ele tinha vindo de lá. A trama mostra as tentativas de Yi de levar o yeti para sua casa, com a ajuda de seus amigos Jin (Tenzing Trainor) e Peng (Albert Tsai). Tentando impedir que o yeti volte para casa, estão o magnata colecionador de criaturas exóticas, Burnish (Eddie Izzard), e a zoóloga Dr.ª Zara (Sarah Paulson).
A menina desenvolve um elo muito forte com Everest. |
Diferente de Ugly Dolls e Os Brinquedos Mágicos (Toys & Pets), as duas outras animações chinesas que assisti com Júlia, Abominável mostra desde os primeiros segundos que há muito dinheiro envolvido na produção. O visual é realmente impactante, um desenho de primeira linha e feito para conquistar quem está acostumado com as produções da Disney e outros grandes estúdios. Apesar do diretor e roteirista norte americanos, o DNA de Abominável é chinês, desde o trailer, isso fica bem marcado.
Como tem acontecido com mais frequência, a protagonista é uma garota. Isso é bom, claro, mas se olharmos o elenco, temos a heroína e a Dr.ª Zara com peso na história e o resto do elenco importante são homens, começando por Everest. O que quero dizer é que o protagonismo é feminino está garantido e isso é bom, mas não há equidade na distribuição dos papéis ainda. Outras personagens femininas com falas são a avó, chamada de Nai Nai (Tsai Chin), e a mãe de Yi (Michelle Wong). Cumprida com folga a Bechdel Rule, mas eu preciso pontuar algumas questões.
Após a morte do pai, Yi evita conviver com a mãe e a avó e não divide seus sonhos, ansiedades e tristezas com elas. |
Como em outras animações recentes, como O Parque dos Sonhos (*que não resenhei*) e Next Gen (*que Júlia estava revendo na Netflix*), temos uma menina deprimida pela perda do pai, ou da mãe. Em O Parque dos Sonhos, a mãe está ausente para um tratamento de saúde, mas em Next Gen e Abominável, a morte do pai deixa um grande vazio na vida da filha.
Em Abominável é evidente que o vínculo maior era com o pai e ele, mesmo morto, motiva as ações da filha, isto é, economizar dinheiro para fazer a viagem que os dois (*não a família*), tinha sonhado. Yi sequer conta para a avó e a mãe, ela faz tudo em segredo, alienando as duas de sua vida. Claro, o filme trata de restaurar os laços familiares e da comunidade, porque a aventura reaproxima Yi dos vizinhos (Jin e Peng), mas é interessante como essas animações com influência chinesa parecem diminuir o papel da mãe na vida de uma filha, enfim...
O grupo é perseguido pelos interiores da China pelos vilões. |
Em Next Gen, até é compreensível, pois a mãe se afasta da filha e é viciada em tecnologia. Em Abominável, Nai Nai, a avó, e a mãe, que sequer tem nome, são amorosas e preocupadas com a menina. Vejam, o comportamento de Yi, sua dor e a dificuldade de lidar com ela, não são incoerentes, o que me saltou aos olhos é essa aparente regularidade. Perde-se o pai, fica a mãe, é uma menina, há um vazio enorme como se a mãe não fosse realmente importante. De resto, o fato de Yi ser menina tem pouco peso na história, poderia ser um garoto e a história se manteria praticamente a mesma.
O filme, aliás, reforça poucos estereótipos de gênero, e o único de impacto sobre as crianças é reforçar a ideia de que meninos - Peng e Abominável - são cabeças ocas, um tanto sujos e imprevidentes. Everest e Peng são pré-adolescentes, talvez o yeti seja ainda mais jovem, e Yi os trata com complacência por serem meninos e crianças, enquanto Jin, que com 18 anos se considera adulto, os vê como moleques.
A mágica do yeti proporciona imagens lindas. |
Há a crítica à artificialidade das relações virtuais utilizando Jin, o vizinho que acabou de ser aprovado na universidade e só pensa em likes e parecer interessante em suas redes sociais. Jin precisa se desconstruir, abrir mão de suas vaidades e egoísmo, para acompanhar Everest, Peng e Yi na viagem. Como tem se tornado comum, o possível romance entre Jin e Yi é absolutamente anulado. Fosse um anime, eles formariam um casal, com certeza.
Abominável, como pontuei lá em cima, é um desenho visualmente bonito. Algumas imagens são poéticas até, como quando Yi volta a tocar seu violino. Mais adiante, ele passa a ter parte da mágica do yeti e quando a menina toca, coisas muito bonitas acontecem. Nota dez para abominável nesse quesito.
Longe da cidade, eles apreciam as estrelas depois de muito tempo. |
Agora, houve duas coisas que realmente me irritaram em Abominável. A primeira é que os moleques e o yeti passam dias sem comer nada, subindo montanha, fugindo dos vilões e por aí vai, sem perder a energia. Se você viu o trailer deve lembrar da cena com mirtilos, é a única vez em que eles comem. Depois, há uma única cena de Peng reclamando de fome e nada mais que isso.
Já o yeti, ainda que alguém queira argumentar que a magia lhe tirava a fome, estava faminto enquanto escondido no terraço do prédio de Yi. A menina, que recusava comer, passa a encher a bolsa com os bao (pãozinho recheado) que sua avó preparava, para alimentar Everest. Agora, depois, quando começa a se agastar da cidade grande e do laboratório de onde fugiu, o yeti parece não precisar mais comer, mas e as crianças?
Os valores familiares são restaurados. |
O outro problema são as roupinhas leves subindo a montanha. Só bem lá no final, eles recebem roupas mais quentes, mas, ainda assim, é coisa muito leve para subir o Everest, fora que tudo acontece bem rápido. Não estou pedindo realismo, mas os japoneses ou mesmo a Disney não fariam melhor. Por exemplo, Ana troca de roupa para ir atrás da irmã na montanha e essa necessidade de se proteger do frio recebe a atenção devida em Frozen. Em Abominável, isso passa meio batido.
Acredito que Abominável entre na seleção final do Oscar, é um desenho bonito visualmente, aquece nosso coração com suas sequências poéticas e a ênfase na restauração da família e da amizade e outros valores perdidos, nesse caso, usando o vilão. A jornada do filme não é somente do yeti, mas é uma jornada de restauração interior de Yi, além de um passeio por belas paisagens da China. Agora, o filme poderia ter um roteiro mais robusto.
Yi volta a ser capaz de ver a beleza no mundo e em si mesma e de criar beleza, também. |
Não acredito que vai ganhar o Oscar, vai pegar coisas como Frozen 2 pela frente, mas tirou de Downton Abbey, que tinha derrotado Rambo na semana de estreia dos dois, o primeiro lugar nas bilheterias dos EUA. Enfim, o filme estreou primeiro aqui e, duas semanas mais tarde nos Estados Unidos.
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